Do auge ao escândalo: como futebol islandês foi à Copa e caiu em desgraça – UOL

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Do UOL, em São Paulo
30/09/2022 04h00
O que um país de pouco mais de 300 mil habitantes e localizado no extremo norte do planeta pode fazer no futebol mundial? Até o início dos anos 2000, a resposta parecia óbvia: quase nada. E era o caso da Islândia.
Você pode estar se perguntando: “mas eles não disputaram a última Copa do Mundo?”. Para explicar o motivo de a resposta ser “sim”, o UOL Esporte conta, abaixo, um pouco da curiosa história de uma geração que encantou, mas que hoje caiu em desgraça por problemas que fogem das quatro linhas.

O fenômeno começou no início dos anos 2000. Cansada de ver o seu país ser um “saco de pancadas” no cenário europeu, a KSI (Federação Islandesa de Futebol) resolveu mudar o panorama futebolístico de maneira drástica — mesmo com o intenso e recorrente frio da ilha, que dificulta a prática do esporte.
Com ajuda financeira de 2 milhões de euros (cedidos pela Fifa), o trabalho começou: primeiro, foram feitos investimentos em tecnologia a partir da criação de gramados “indoor” e com temperatura controlada.
A profissionalização do futebol também afetou o lado humano: os treinadores locais, até então amadores, passaram a se adequar ao modelo utilizado pela Uefa.
O grande desafio, no entanto, consistiu na montagem de uma seleção robusta e preparada para “não sofrer” diante dos gigantes do continente.
A mágica não aconteceu do dia para a noite. Ao invés de forçar naturalizações de atletas nascidos em países próximos, a KSI apostou no longo prazo: reuniu um grupo de talentosos adolescentes que passou a jogar junto por anos.
Nascidos entre 1987 e 1990, os jovens que formavam o time de base da seleção no início do século tinham um ídolo em comum: o atacante Gudjohnsen, maior artilheiro seleção islandesa (ao lado de Sigthorsson).
Criado na capital Reykjavík, o jogador deixou o futebol local em 1998 e defendeu gigantes como Chelsea e Barcelona em sua carreira.
O sucesso a nível internacional de Gudjohnsen serviu de inspiração para os garotos Sigurdsson, Gunnarson, Saevarsson, Bjarnason, Sigthorsson e outros nomes da geração que viria a fazer história.
Entrosados, estes atletas cresceram e deram, finalmente, o primeiro grande passo futebolístico da Islândia.
Nas Eliminatórias da Eurocopa, disputadas entre 2014 e 2015, o país ficou em segundo lugar na sua chave e garantiu vaga direta no principal torneio do continente.
A campanha chamou a atenção: em dez jogos, a seleção tomou apenas seis gols e superou os pontos registrados por países como Turquia e Holanda, que faziam parte do mesmo grupo.
A classificação para a Euro foi a primeira da história daquela seleção, que começou a ganhar o coração da população.
A Eurocopa de 2016, disputada na França, consagrou de vez a ilha nórdica — a começar pelo apoio de seus torcedores.
No total, 26.985 habitantes da ilha requisitaram ingressos dos jogos formalmente à Uefa. Esse número indica que, na época, pelo menos 8% da população islandesa esteve no país para torcer pela seleção.
Posicionada no Grupo F ao lado de Portugal, Hungria e Áustria, a equipe não decepcionou o seu povo e avançou como a segunda melhor colocada da chave — à frente de Cristiano Ronaldo e companhia.
Pelas oitavas, em jogo realizado em Nice contra a Inglaterra, o drama começou: em pênalti, o consagrado britânico Wayne Rooney abriu o placar ainda aos quatro minutos.
“Eu me lembro que olhei para o meu irmão e não dissemos nada, mas estávamos pensando: ‘foi bom enquanto durou, foi um sonho incrível, mas acabou, vamos voltar para casa'”, relembrou Sesselja Trausta, professora que estava no estádio em Nice.
Era preciso virar para seguir no torneio, e o primeiro passo foi dado pouco tempo depois. O zagueiro Ragnar Sigurdsson — que não é parente próximo do meia famoso que também fazia parte do elenco —, balançou as redes após jogada de lançamento lateral (e treinada desde a formação daquela geração).
Pouco depois, em meio à pressão sobre os ingleses, o improvável aconteceu: o atacante Sigthorsson balançou as redes em lance trabalhado desde a intermediária e decretou a vitória islandesa por 2 a 1.
A eliminação veio uma semana depois, já nas quartas de final, quando os donos da casa aplicaram 5 a 2 nos nórdicos. A campanha, no entanto, foi considerada um sucesso.
Dois anos depois, a geração islandesa seguiu incomodando os gigantes e ganhou uma projeção ainda maior.
Classificada para a Copa de 2018 como líder de seu grupo nas Eliminatórias Europeias, a Islândia foi sorteada em um grupo duro: Argentina, Nigéria e Croácia.
Na estreia, mais um resultado que chocou — desta vez, o mundo: os comandados de Heimir Hallgrímsson arrancaram um empate em 1 a 1 com os sul-americanos e se transformaram na grande sensação do torneio.
O destaque ficou para o goleiro (e cineasta) Halldórsson, que defendeu um pênalti cobrado simplesmente pelo astro Lionel Messi.
Nas rodadas seguintes, os islandeses acabaram sucumbindo diante de Nigéria e Croácia e foram eliminados do Mundial. O apoio, apesar disto, seguiu inabalável por parte dos quase 400 mil habitantes — por algum tempo…
“Eu me lembro de cantarmos juntos no estádio, de abraçar desconhecidos, de celebrar as conquistas com aquele sabor de novidade… Acho que foi o ápice da identidade nacional islandesa. Sempre fomos patrióticos, de certa forma, e sempre tivemos orgulho de nós. Mas foi a primeira vez que o mundo nos aplaudiu”, disse Pétur Ólafsson, que acompanhou os jogos do elenco nórdico in loco.
O que era um conto de fadas virou pesadelo, e o dramático fim da geração que marcou a história do esporte islandês teve o seu primeiro passo dado ainda em 2020.
Em setembro daquele ano, a seleção local perdeu para a Hungria em jogo que decidiu uma das vagas para a Eurocopa — que acabou ocorrendo no ano seguinte.
Daí para frente, a situação só piorou e contou com elementos deploráveis fora dos campos. Em 2021, o principal astro da seleção, Gilfy Sigurdsson, chegou a ser preso pela polícia acusado de pedofilia. Ele atuava no Everton, da Inglaterra, que afastou o atleta imediatamente. O meia não teve vínculo renovado neste ano.
Além dele, dois símbolos daquela geração foram envolvidos em escândalos: Arnar Gunnarsson, frequente capitão da equipe, e Kolbeinn Sigthorsson, autor de gol sobre a Inglaterra na Eurocopa de 2016, acabaram acusados de abuso sexual.
Outros três atletas, que não tiveram nomes revelados pela imprensa europeia, também receberam denúncias e selaram o desmonte da equipe formada há 20 anos.
Sem contar com seus principais jogadores em alto nível, a seleção ruiu e ficou fora da Copa do Mundo de 2022, que começa em novembro, no Qatar. Para piorar, encerrou a Segunda Divisão da Liga das Nações sem qualquer vitória em quatro partidas.
Nas ruas islandesas, o sentimento de muitos torcedores em torno da seleção masculina é similar: arrependimento.
“Como é que eu vou torcer para a seleção sabendo que tem três possíveis estupradores em campo? Para mim, esse negócio de futebol acabou. É decepcionante além do que posso explicar. Esses são os casos que conhecemos, mas quantos outros jogadores não devem ter cometido abusos dos quais nunca vamos saber porque as vítimas têm medo de denunciar ou porque fizeram acordos com elas?”, disse María Kristjánsdottir, que largou o emprego de bartender para acompanhar a Islândia na Eurocopa de 2016.
“É tão maluco que, às vezes, sinto culpa. Sinto culpa de ter gastado meu dinheiro, meu tempo e minha disposição em uma coisa que virou o que virou…”, completou ela.
Professor de futebol infantil, Kristján Thór Júliusson não hesitou em afirmar que os escândalos “destruíram” as próximas gerações esportivas do país.
“Dou aula de futebol desde 1991 e digo com a maior certeza: nunca tivemos tantos garotos e garotas interessadas em praticar o esporte quanto entre 2014 e 2019. O futuro parecia brilhante e só dependia de lapidarmos bem esses talentos. Aí aconteceu tudo isso… Foram destruídas a geração atual e a seguinte. E possivelmente muitas mais. Quantos garotos não vão desistir do sonho depois de tudo isso? Além disso, a seleção nunca mais vai receber o mesmo apoio da população.”
Ása Gréta, torcedora do KR — um dos maiores times da Islândia —, reforçou a importância da segurança da mulher no país. Ela deixou de frequentar estádios em meio aos acontecimentos ocorridos nos últimos dois anos.
“Acho que fica a lição para nós, mulheres, sobre como é perigoso colocar tanto poder nas mãos de homens. Eu amava a seleção e tudo aquilo que vivemos entre 2014 e 2018. Mas se o preço para ter uma sociedade menos hostil com as mulheres e que condene veementemente o feminicídio é seleção desaparecer, por mim tudo bem.”
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