O racismo impede que mais indígenas entrem na política, diz deputada eleita em MG – UOL

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Célia Xakriabá em frente ao Congresso Nacional Edgar Kanaykõ Xakriabá/Divulgação
A partir de 2023, o Congresso Nacional terá um número maior de candidatos eleitos que se autodeclararam indígenas —são sete, no total. Um deles será Célia Xakriabá (PSOL-MG), 32, que conquistou uma vaga na Câmara dos Deputados após receber 101.154 votos no domingo (2).
Ela, que conquistou a vaga na esteira de uma mobilização inédita, afirma que o maior obstáculo para os indígenas na política institucional é superar o que chama de “racismo da ausência” —a visão do homem branco de que “lugar de indígena é na aldeia”.
“Mas como vai ser na aldeia se existem conflitos territoriais? Nós decidimos que vamos para esse lugar também [da política institucional], mas não se trata somente de chegar de qualquer jeito, estamos construindo nossa ‘chegança'”, diz à Folha.
Xakriabá fará oposição à bancada ruralista, contra a qual reconhece estar em desvantagem na correlação de forças, e espera conseguir frear as pautas de impacto ambiental. Faz as contas de pelo menos 250 projetos atualmente em tramitação.
A política institucional não é totalmente estranha a ela, que foi coordenadora de educação indígena de Minas Gerais e atuou no gabinete da deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG). Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela UNB e doutoranda em Antropologia pela UFMG, ela defende que as escolas das aldeias tenham alto grau de autonomia.
E diz que seu apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições não será um cheque em branco.
“Bolsonaro escolheu os povos indígenas como inimigo número um […], mas é importante dizer que, se vier um governo Lula, nós vamos cobrar”, completa.
Por que o movimento indígena mudou sua postura de hesitar em entrar na política institucional? Na verdade, sempre houve candidaturas indígenas, mas às vezes ficavam invisíveis. Nós decidimos que vamos para esse lugar também [da política institucional], mas não se trata somente de chegar de qualquer jeito, estamos construindo nossa ‘chegança’. Entendemos que poder não é somente o poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A luta é o quarto poder. Nosso mandato é um instrumento para fortalecer a luta pela redemocratização da terra e para não morrer de um ecocídio, de um genocídio legislado, onde as pessoas usam a caneta para nos matar.

É importante estar no Congresso Nacional para provocar e construir outros processos de governança. O homem branco governa com paletó, nós vamos governar com a força do jenipapo e do urucum, vamos mulherizar e indigenizar a política. É urgente ocupar e reflorestar o salão verde com nossos corpos, porque o verde de lá é monocultural, e nós entendemos que toda monocultura mata.
O que impede que mais indígenas entrem na política institucional? Racismo. As pessoas acham bonito o nosso cocar, mas dizem que ‘lugar de indígena é no mato, na aldeia’. Mas como, se na aldeia existem os conflitos territoriais? Mesmo não sendo nem 1% da população brasileira, nós protegemos 80% da biodiversidade do mundo, segundo a ONU, que também disse que os indígenas são a principal solução para as mudanças climáticas. Se somos bons para isso, somos mais que bons para cuidar do Planalto. No entanto, nós precisamos superar esse racismo da ausência.
É possível fazer frente às bancadas que defendem, por exemplo, o garimpo? Sempre aprendi no território que democracia não é ouvir a maioria, é ouvir todos. A nossa bancada cresceu junto com a bancada dos partidos progressistas. Quando falamos de emergência climática, estamos falando inclusive para os nossos inimigos em relação a pautas ambientais. Então, mesmo a bancada ruralista sendo maior no Congresso, por interesses econômicos, temos que continuar fazendo o contraponto, porque se as pessoas realmente estão preocupadas com a economia, o ecossistema vai custar mais caro para a humanidade.
As pessoas precisam pensar em uma transição econômica e nós somos a última geração que pode fazer alguma coisa para barrar as mudanças climáticas. Se as pessoas não escutarem os povos indígenas agora, as chances vão acabar para nós, para eles, para as próximas gerações e para o planeta.
O que os povos indígenas perderam após mais de quatro anos sem novas demarcações de terra? Nós perdemos lideranças. Em 2019, foram 135 lideranças assassinadas. Em 2020, 185. Quem tem território tem lugar para voltar, tem mãe, tem colo e tem cura. Um povo tem sua existência ameaçada quando não tem a garantia do seu território, porque não se trata somente de viver, mas de manter de pé a nossa identidade. Não é uma língua que sustenta o território, mas o território que sustenta uma língua e uma tradição. Mas além de pensar quais os prejuízos para nós povos indígenas, temos que pensar qual o prejuízo para a humanidade. Por que onde tem território indígena, tem floresta de pé.
O que muda para os povos indígenas em caso de uma eleição de Lula ou Bolsonaro? Bolsonaro nos escolheu, povos indígenas, como seu inimigo número um, falando que não ia demarcar nenhum centímetro de terra; foi quando quadruplicaram os conflitos territoriais. Mas é importante dizer que, se vier um governo Lula, nós vamos cobrar. Existe um compromisso de criar o Ministério Indígena, mas é importante que ele seja presidido por indígenas e que a gente tenha autonomia para compor o ministério.
E não basta só isso, a Funai [Fundação Nacional do Índio] é importante, é importante ter indígenas também no Meio Ambiente. Nós entendemos que precisamos ter esses lugares de autonomia dentro de um projeto da política pública.
E a autonomia na educação indígena, que é uma de suas principais bandeiras? Lutamos por uma educação diferenciada e territorializada. Não se trata de sair capturando os conhecimentos para dentro da escola. Em Minas Gerais, criamos uma organização curricular específica para todas as escolas indígenas, cada uma parte da realidade de cada povo indígena: Xakriabá, Maxakali, Xukuru Kariri, Pataxó.
É urgente avançar por uma ciência que seja a transformação da consciência, uma educação que não seja violenta, que não reproduza simplesmente que quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral, que seja comprometida com o ensino da cultura e da história indígena e negra, e que os livros didáticos também traduzam essa diversidade. Toda monocultura mata, inclusive o pensamento.
Você defende uma separação entre a escola do homem branco e a indígena? Se as crianças hoje estão desinteressadas na educação, é porque a educação precisa dialogar com a vida. Os povos indígenas precisam de um amansamento da escola, que chegou para nós como algo colonizador. O nosso calendário não tem Carnaval, não tem Sete de Setembro. A escola precisa reconhecer a presença e o jeito de organizar a vida na aldeia, onde o calendário segue o tempo da seca e das águas. São os mais velhos que decidem o calendário.
Ao mesmo tempo, não vai mudar, por exemplo, a educação básica, mas temos que reconhecer o que outras pessoas trazem como conhecimento, não perder a capacidade de ler outra ciência, de ler a ciência tradicional e a nossa ciência ancestral. A gente luta para indigenizar o pensamento, entender a importância das epistemologias indígenas como ferramenta de cura.
Indígena da aldeia do Barro Preto, no norte de Minas Gerais, ela é mestre em Desenvolvimento Sustentável pela UNB e doutoranda em Antropologia pela UFMG. Trabalhou no gabinete da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG)
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
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