Lei da SAF e a responsabilidade dos clubes por dívidas trabalhistas – Consultor Jurídico
Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes
A Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021, instituiu a Sociedade Anônima de Futebol (SAF) [1], conhecida como Lei da SAF. Tal novidade legislativa permite que os times de futebol se tornem clubes-empresas, possibilitando, assim, atrair investidores, realizar parcelamento de débitos e, ao final, obter proteção patrimonial.
Na Europa, por exemplo, já existem clubes-empresas, como são os casos do Chelsea e Paris Saint Germain [2]. Contudo, nem todos os grandes clubes do Velho Continente adotam esse formato de sociedade [3]. No Brasil, após a promulgação da lei, já foram criadas diversas Sociedades Anônimas de Futebol, sendo que há prognóstico de uma dilatação deste modelo [4].
De acordo com o artigo 2º [5], a Sociedade Anônima de Futebol poderá ser constituída: a) pela transformação do clube ou pessoa jurídica; b) pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica; e c) por iniciativa da pessoa natural, jurídica ou de fundo de investimento.
Entrementes, a inovação legislativa tem causado dúvidas e inquietações no que diz respeito, sobretudo, à responsabilidade pelo pagamento das dívidas trabalhistas que sejam anteriores à própria constituição desse modelo de empresa.
De um lado, a Lei nº 14.193/2021 estabelece no artigo 2º, §1º, inciso I, que a Sociedade Anônima de Futebol "sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração"; lado outro, o artigo 9º dispõe que a "Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição".
Aliás, interessante situação ocorrerá quando a SAF estiver cumprindo com os pagamentos oriundos de dívidas anteriores, uma vez que a lei traz uma vedação em relação à constrição do seu patrimônio [6]. Isso, em certa medida, é reforçado pelo artigo 10 [7], o qual dispõe que os débitos anteriores à constituição da SAF deverão ficar a cargo do clube ou da pessoa jurídica original.
Do ponto de vista normativo, a Consolidação das Leis do Trabalho traz nos seus artigos 10 [8] e 448 [9] a figura da sucessão da empresa, de forma que os direitos dos empregados não serão afetados no caso de mudança da estrutura empresarial. Acontece que a Lei nº 13.467/2017 introduziu o artigo 448-A, no qual consta expressa previsão de que, em havendo sucessão, as responsabilidades pelas obrigações trabalhistas passam a ser do sucessor [10].
No tocante à temática da sucessão trabalhista, oportunos são os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite [11]:
"Vê-se que o legislador inovou ao dispor que a sucessão trabalhista, em princípio, implica responsabilidade apenas do sucessor pelas obrigações trabalhistas, ainda que estas tenham sido contraídas à época em que os empregados prestavam serviços para a empresa sucedida.
Trata-se de clara violação do princípio da vedação do retrocesso social, na medida em que fragiliza o direito do trabalhador em ter a segurança de receber seus créditos, pois o empresário ou a sociedade empresária sucedida não será mais responsável pelas obrigações trabalhistas".
Noutro giro, um assunto que poderá ser objeto de conflitos na Justiça do Trabalho se refere ao prazo para pagamento das dívidas dos clubes. Isso porque a Lei nº 14.193/2021 criou o "Regime Centralizado de Execuções" a fim de evitar o bloqueio nas execuções judiciais, de modo que todas as dívidas são reunidas e os pagamentos são feitos em observância à fila credores. Aliás, a Lei da SAF também autoriza que o pagamento dessas obrigações seja efetuado por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei 11.101/2005 [12].
Recentemente, a SAF do Botafogo teve a sua condenação em primeira instância na Justiça do Trabalho, na qual deverá suportar, de forma solidária, a dívida trabalhista do clube [13]. Segundo tal entendimento esposado na reclamatória trabalhista, o trabalhador não precisaria entrar na fila de credores, conforme determina expressamente a Lei da SAF.
Em outro caso em primeiro grau de jurisdição, um treinador de goleiras, integrante da comissão técnica do time de futebol feminino do Cruzeiro, também ficou configurada a responsabilidade da entidade desportiva, tendo o juiz do trabalho responsável pela sentença decidido que "não pode o credor trabalhista ficar à mercê de eventual ausência de transferência ou repasse dos administradores para quitação das dívidas, sendo tal obrigação decorrente do contrato entre as rés que deverão fiscalizar entre si o cumprimento contratual" (0010052-44.2022.5.03.0012).
E por falar no Cruzeiro, o clube também não teve êxito em outro caso envolvendo um fisiologista integrante da comissão técnica, em decisão agora proferida em segundo grau de jurisdição, tendo o TRT-MG da 3ª Região mantido o decidido pelo magistrado sentenciante, o qual entendeu "que o segundo reclamado responde subsidiariamente pelos créditos reconhecidos ao autor, nos exatos termos previstos no art. 10 da Lei 13.143/21, sem prejuízo de eventual responsabilidade solidária em caso de fraude à execução ou não repasse das verbas previstas na Lei" (0010036-87.2022.5.03.0110).
É verdade que a Lei nº 14.193/2021 dispõe que o "Regime Centralizado de Execuções" será disciplinado pelo Poder Judiciário, por ato dos seus Tribunais Regionais Trabalhistas (TRTs), prevendo o prazo de seis anos para o pagamento destes credores. Na ausência desta regulamentação, a norma estabelece que a normativa deverá ser feita diretamente pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) [14].
Neste cenário, diante dos conflitos já identificados entre os Tribunais Regionais do Trabalho sobre a temática, a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho publicou um ato para uniformizar o pagamento de dívidas de clubes de futebol [15].
Por todo o exposto, verifica-se que a Lei da SAF trouxe mudanças com grandes impactos na esfera trabalhista esportiva, notadamente quanto às problemáticas envolvendo o instituto da sucessão empresarial e o "Regime Centralizado de Execuções", de sorte que apenas com o tempo teremos uma efetiva definição acerca de suas aplicações práticas na seara trabalhista.
[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em 18/10/2022.
[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/transformacao-no-futebol-entenda-como-funcionam-os-clubes-empresa-no-brasil/#:~:text=Manchester%20City%2C%20Paris%20Saint%20Germain,grandes%20times%20do%20futebol%20nacional. Acesso em 18/10/2022.
[3] Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rafael-reis/2021/12/22/todos-os-times-grandes-da-europa-sao-clubes-empresas-verdade-ou-lenda.htm. Acesso em 18/10/2022.
[4] Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2022/08/11/apos-um-ano-de-lei-brasil-ja-tem-24-clubes-saf-e-ha-previsao-de-expansao.htm. Acesso em 18/10/2022.
[5] Art. 2º A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída: I – pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol; II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;
III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
[6] Art. 12. Enquanto a Sociedade Anônima do Futebol cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas, com relação às obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol.
[7] Art. 10. O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente: I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei; II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.
[8] Art. 10 – Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados
[9] Art. 448 – A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados
[10] Art. 448-A. Caracterizada a sucessão empresarial ou de empregadores prevista nos arts. 10 e 448 desta Consolidação, as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor.
[11] Curso de Direito do Trabalho / Carlos Henrique Bezerra Leite. – 14ª ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. Página 336.
[12] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em 18/10/2022.
[13] Disponível em https://ge.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2022/10/01/botafogo-tem-primeira-condenacao-da-saf-na-justica-do-trabalho-decisao-cabe-recurso.ghtml. Acesso em 18/10/2022.
[14] Art. 15. O Poder Judiciário disciplinará o Regime Centralizado de Execuções, por meio de ato próprio dos seus tribunais, e conferirá o prazo de 6 (seis) anos para pagamento dos credores. § 1º. Na ausência da regulamentação prevista no caput deste artigo, competirá ao Tribunal Superior respectivo suprir a omissão.
[15] Disponível em https://www.tst.jus.br/-/sociedade-an%C3%B4nima-de-futebol-justi%C3%A7a-do-trabalho-uniformiza-prazos-para-pagamento-de-d%C3%ADvidas-de-clubes%C2%A0. Acesso em 18/10/2022.
Ricardo Calcini é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
Leandro Bocchi de Moraes é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”, da USP.
Revista Consultor Jurídico, 20 de outubro de 2022, 7h00
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