O STF, o TSE e a ‘noite polar’ – JOTA

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Eleições 2022
Nos insultos dirigidos pelo bolsonarismo às cortes, nunca a cultura eleitoral desceu tanto ao nível da sarjeta
“Não nos espera a floração do estio, mas, antes, uma noite polar, glacial, sombria e rude.”
Desde a ascensão do bolsonarismo ao poder, um movimento incapaz de valorizar o diálogo construtivo como procedimento para a resolução das diferenças políticas e da pluralidade que constitui uma sociedade democrática, o Judiciário brasileiro se encontra numa encruzilhada.
Por um lado, ele é o pilar de um Estado de Direito que, frente à amplitude das desigualdades e necessidades da sociedade após mais de duas décadas de ditadura, tenta atender às suas diferentes demandas sem, contudo, dispor de recursos orçamentários para tanto. Por outro, além de estarem sendo obrigados a tomar decisões num período em que um governo autocrata e irresponsável vem criando uma sucessão de conflitos institucionais para desgastar os órgãos de controle e corroer garantias democráticas, os tribunais ainda têm de julgar litígios num contexto social explosivo e cada vez mais distante da ideia de sociedade como pluralidade de cidadãos valorizados por sua individualidade.
É nesse cenário de degradação da democracia e desprezo aos direitos fundamentais por parte do bolsonarismo que pululam as sucessivas afrontas ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual cabe atuar como guardião da Constituição, e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a corte encarregada de promover a regulação e a fiscalização de todos os aspectos do processo eleitoral e da estrutura partidária. Nos insultos dirigidos pelo bolsonarismo às cortes, com sua visão tosca e binária da vida política, nunca a cultura eleitoral desceu tanto ao nível da sarjeta, como está ocorrendo, e nunca se falou tanta mentira, tanta falácia e tanta bobagem.
Esquecendo-se de que tribunais somente agem quando devidamente acionados, que a Constituição de 1988 ampliou significativamente as possibilidades de acesso à Justiça e que isso resultou numa explosão de litigiosidade, os críticos acusam os ministros do STF e do TSE de serem “ativistas judiciais”, de intervirem na vida social, como se estivessem se sobrepondo aos demais Poderes. Relegando para segundo plano o fato de que a Constituição tem um alto número de normas programáticas, que se expressam por meio de conceitos indeterminados, os críticos querem punir magistrados que não estariam interpretando literalmente as leis. Mas como essa “interpretação literal” é possível se normas programáticas são por princípio polissêmicas, tendo sido concebidas desse modo para permitir aos juízes a adequação de uma ordem jurídica lógico-formal a uma sociedade complexa e heterogênea?
Por fim, procuradores, um pequeno grupo de juízes e certos promotores da Justiça Militar que se deixam levar mais pelos valores estamentais das Forças Armadas do que pelas próprias regras constitucionais, aplaudem quando o presidente da República anuncia que não cumprirá decisões dessas duas cortes e alegam que a “juristocracia” está colocando em risco o regime democrático. Mas, ao acusarem integrantes do STF e do TSE de fazerem política e ao afirmarem que tentarão “freá-los”, esses críticos — alguns dos quais repetindo lugares comuns de um jornalista, ideólogo e astrólogo campineiro e revelando com isso algum desconhecimento de autores fundamentais entender o direito no mundo contemporâneo, como John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Alexy, Norberto Bobbio, Herbert Hart, Henry Steiner e David Trubek  — não cometem o mesmo pecado? Ou seja, em que medida esse pessoal não faz política e interpreta o Direito assumidamente enviesado, em termos ideológicos?
Neste período em que o medo vai se convertendo em ódio, em que a relação entre adversários no jogo político foi substituída pela guerra entre amigos versus inimigos e em que o bolsonarismo se mobiliza para investir contra a independência do Judiciário, da atuação do STF depende o Estado de Direito. Do mesmo modo, a atuação do TSE é decisiva para preservar o que sobrou da degeneração da representatividade da democracia brasileira. Independentemente das acusações infundadas que essas cortes têm sofrido, cabe a elas o dever constitucional de evitar a expansão de um autoritarismo dissimulado, cujo objetivo é perpetuar no poder falastrões populistas que por vezes recorrem a atributos da própria democracia para corroê-la.
Por isso, como pode o Judiciário ser bem-sucedido nessa empreitada, independentemente de quem vencer a eleição deste domingo (30)? Um ponto de partida para uma resposta é saber se os protagonistas da vida política, de um lado, e do sistema judicial, de outro, compreendem o atual desarranjo institucional a partir de seus componentes básicos: as relações de força, autoridade, mando e obediência. Outro ponto de partida é a ideia de que os prognósticos com relação ao futuro são inversamente proporcionais ao seu conhecimento. Quanto mais se fala do futuro, menos se sabe sobre ele. Um modo de compreender esse cenário de dubiedade é retomar uma passagem de um dos pais da sociologia, Max Weber (1864-1920), para quem os períodos civilizatórios podiam ser vistos como processos de racionalização, como o que forjou o mundo moderno.
Uma das características da modernidade está na crise de seus fundamentos nos planos do conhecimento, da moral e da política, dizia. A angústia despertada no homem moderno levou-o a uma busca obstinada por calculabilidade, previsibilidade e certeza, valorizando uma ordem jurídica elaborada racionalmente. Esse é o papel do Direito — a começar pela Constituição: assegurar as expectativas dos cidadãos, oferecendo-lhes garantias contra a arbitrariedade do Estado, e criar instituições capazes de zelar pelas regras do jogo, propiciando a conversão de paixões políticas em alternativas programáticas submetidas a escrutínio público, com base no voto direto e em pleitos periódicos, por meio dos quais a população exercita sua cidadania.
Foi isso que fez com que a segurança na vida política, econômica e social passasse a depender cada vez mais da determinação do jurídico. O problema é que as condições que forjaram o mundo moderno mudaram, exigindo nos dias de hoje uma ampla reconfiguração da política, na qual o Executivo é obrigado a coexistir ao lado de outras instituições fortes — como o TSE, encarregado da missão de resolver disputas com relação ao processo eleitoral, e o STF, que tem a de promover o controle abstrato da constitucionalidade das leis.
Contudo, para que sejam efetivos na decisão dos litígios que levaram a democracia brasileira a enfrentar uma profunda crise institucional, os órgãos de cúpula do Judiciário têm de estar cientes de qual é sua maior garantia, nestes tempos em que não nos espera a floração do estio, mas uma “noite polar e sombria”, para lembrar Weber. Se “a política é um esforço tenaz e enérgico para atravessar grossas vigas de madeira”, ela “exige, a um só tempo, paixão e senso de proporções”, afirmava o sociólogo.
No caso do STF e do TSE, sua força institucional, para que o país amanheça democraticamente após essa noite, está assentada em pelo menos seis pontos: na sua capacidade (i) de preservar a isenção, (ii) de resistir a pressões, (iii) de não fazer concessões, (iv) de saber escolher os meios adequados para alcançar determinados fins, (v) de avaliar as consequências de suas decisões e (vi) de agir com coragem na aplicação da Constituição.
José Eduardo Faria – Professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
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