Lula aposta legado e futuro da esquerda em sua eleição mais importante – UOL

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O pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, 77, poderia estar aposentado, preparando uma galinhada e saboreando a fama de presidente mais popular da história recente do Brasil —deixou o Palácio do Planalto após oito anos, no primeiro dia de 2011, com aprovação de 83%.
Neste domingo (30), contudo, ele enfrenta a eleição mais difícil de sua carreira, contra um adversário aguerrido que o espelha quando o domínio é o de conexão com o eleitorado. Para horror do PT e do dito campo progressista, Jair Bolsonaro (PL) é tão odiado quanto popular.
Mas Lula não disputa só uma cadeira. O pleito se tornou um plebiscito de seu legado e acerca do futuro da esquerda brasileira, que orbita em torno do petista desde sua consolidação como líder de massas no primeiro dos seis pleitos presidenciais em que concorreu, ao ser derrotado por Fernando Collor em 1989.
“Não quero ser um Michael Schumacher”, repetia a quem quisesse ouvir Lula no começo de 2014, quando surgiu um movimento forte para que ele disputasse o Planalto no lugar de sua sucessora, Dilma Rousseff (PT). Menos do que apreço pela impopular aliada, o que havia era cálculo.
Naquele momento, o antipetismo ganhava corpo, após a agitação das ruas de 2013. Segundo um aliado próximo do ex-presidente, Lula pressentiu o que viria: mesmo que Dilma tivesse derrotado o PSDB, as forças que levaram ao impeachment da petista em 2016 já estavam em movimento. Era melhor esperar.
Mas havia também uma pulga atrás da orelha, que levou à comparação com o heptacampeão mundial de F-1, hoje em coma após acidente esquiando, que voltou às pistas de forma medíocre. O tal legado.

Animal político, contudo, Lula preferiu esquecer o pressentimento, apesar das advertências da história: tanto seu modelo Getúlio Vargas quanto o estadista maior do século 20, o britânico Winston Churchill, tiveram passagens desastradas ao voltar ao poder. Um se matou, o outro saiu desgastado.
A evolução da Operação Lava Jato e do consequente antipetismo e espírito antipolítico por ela despertado fez com que Lula novamente jogasse de forma tática. Fingiu ser candidato em 2018, sabendo que iria ser impedido pela legislação vigente —tinha a proverbial ficha suja.
Mas ao colocar na undécima hora o segredo de polichinelo à mostra, na forma da postulação de Fernando Haddad, garantiu musculatura para o PT se posicionar num jogo em que o PSDB já estava em implosão.
Viu o partido chegar ao segundo turno e formar uma gorda bancada federal, suficiente para atravessar o deserto da eleição municipal de 2020. Passou 580 dias preso, mas passou a colher vitórias legais que não só tornaram nulas suas sentenças como, em abril do ano passado, lhe devolveram os direitos políticos. Com Bolsonaro presidindo um desastre institucional e com a rejeição em alta, Lula decidiu ir em frente.

A questão é que havia a percepção de que o espírito da campanha Lula Livre se perpetuaria e que as acusações de corrupção que ressurgiram na campanha seriam passado. O mesmo aliado do ex-presidente afirma que poucos questionaram a sapiência do líder na sua frente, o que gerou o salto alto tão comum na política. O silêncio adotado sobre um eventual ministério apenas acalora as cotoveladas de bastidores.
Grupos históricos do PT estão incomodados com a proeminência de nomes que ganharam destaque, como o núcleo jurídico ligado ao grupo Prerrogativas, e novidades, como Geraldo Alckmin (PSB).
Tucano de quatro costados, o ex-governador paulista virou o José Alencar da vez, em referência ao vice empresário de Lula de 2003 a 2010. Não parece ter trazido nenhum voto conservador, e o desempenho do bolsonarismo em São Paulo prova isso, mas serviu de talismã para o PIB sempre arredio ao petista.

Candidato, Lula passou a trabalhar com a hipótese de ganhar no primeiro turno, o que nunca conseguiu, e quase o fez ao marcar 48,4% dos votos válidos em 2 de outubro. Seu problema é que, até aqui, não conseguiu avançar de forma definitiva e viu Bolsonaro aproximar-se na reta final.
A campanha desandou de forma. Se antes Lula navegava na venda aleatória de um passado algo distante, teve de descer ao ringue bolsonarista para enfrentar a pancadaria retórica. Alimentou uma guerra suja semelhante à do adversário, mas parece que o PT perdeu um pouco a forma que lhe consagrou —o “nós contra eles” é uma invenção literal do ex-presidente nos seus embates com o falecido tucanato.
Assim, a vitória líquida passou a ser uma incerteza. Ninguém esperava, nas hostes petistas, que Bolsonaro deslanchasse. Algum conforto só chegou na última semana, com a oscilação positiva do presidente nas pesquisas refluindo para um quadro estável e uma série de problemas no outro lado: a violência do aliado Roberto Jefferson, a confusão sobre inserções de rádio no TSE e o desempenho morno no debate final.
Se vencer, o ex-presidente terá de administrar sua sucessão simbólica: receberá, de quem não se sabe, a faixa no dia 1º de janeiro como a pessoa mais velha a assumir o cargo. Chegando ao fim do mandato, poderá até querer disputar a reeleição que ora rejeita como octagenário. Mas aqui se trata de futurologia: sabe-se lá como seria sua gestão, o grau de sucesso, a disposição real do petista.

Mais fácil especular acerca das brigas intestinas que ele, se presidente, poderá gerir. Daí a nomeação de aliados para seu gabinete ganhar não só um caráter administrativo, mas também tons divinatórios.
Que Haddad, tentando não perder a disputa pelo governo paulista, é seu herdeiro presumido, ninguém discute. Que o PT como bloco aceite isso é outra história. E há a ascensão de aliados, a esquerda com Guilherme Boulos (PSOL), o centro ora com Simone Tebet (MDB). Neste momento, porém, são meras especulações.
Um empresário que esteve com Lula recentemente disse que o sentiu cansado desse jogo e que ele transpareceu mais interesse em lustrar a biografia, posicionando-se como uma rainha da Inglaterra, terceirizando a condução do cotidiano. Os dois aliados ouvidos pela Folha discordam disso, pelo senso de legado, “uma obsessão de Lula”. O problema mora na alternativa: uma derrota agora para Bolsonaro.

Noves fora a implicação histórica de ver legitimada uma visão de mundo que até há muito pouco era rejeitada de forma universal na política brasileira, de resto algo já respaldada pela nova composição do Congresso, uma reeleição do presidente traria caos ao plano sucessório de Lula.
Tudo o que poderia ser administrado ao longo de seu mandato cairia como uma bomba no PT, o centro gravitacional da esquerda. É evidente que Lula seguirá, enquanto vivo, como mandachuva da turma, mas a pressão para aproveitar o momento em que tem 68 deputados e governos estaduais levará a mudanças.
Nesse cenário, herdeiros presumidos deixam de ter tanto valor, embora os delírios das franjas psolistas de ver Boulos ungido como novo Lula por ora não passam disso. O risco maior para Lula é ver seu partido e aliados esfacelarem-se em uma federação de interesses diversos, cujo primeiro ponto de atrito tem data marcada para a eleição da Prefeitura de São Paulo em 2024.
A questão subjacente principal é outra, contudo. Um Lula abatido terá de ver cristalizar-se um populismo que antes parecia exclusividade da esquerda, com forte apelo popular.
Teses serão escritas sobre como o PT perdeu, por exemplo, os evangélicos, e a carta de contrição cristã do ex-presidente será lembrada como o colete com adesivos de estatais usado por Alckmin em 2006, quando Lula o trucidou no segundo turno enquanto o então tucano tentava se mostrar estatizante.
Criaturas como Lula não se aposentam. Mas a inexorabilidade do tempo exercerá domínio certo sobre qualquer Lula que encerre a noite deste domingo, o presidente eleito ou o líder derrotado.
A reportagem relatou que Lula tem 76 anos, quando, na verdade, o ex-presidente possui 77. O texto foi corrigido.
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