O descanso de Lula e a corrupção relativa – Poder360
Paula Schmitt escreve sobre a diferenciação de quem rouba 8 e quem rouba 80 –e que isso deveria importar para o jornalismo
Depois de uma eleição cansativa, desprovida da energia humana que vem do apoio popular das ruas, Lula escolheu uma mansão na Bahia para o merecido descanso. Nada de mais, claro. Se eu, que almejo a uma vida de Diógenes, adoraria tirar férias numa mansão à beira-mar, o que dizer de um ex-pobre que se orgulha em ser “refinado” e não um “capiau do interior de São Paulo”?
O dono da mansão que hospedou Lula é Ronaldo Carletto, deputado federal pelo PP da Bahia e empresário, que tem “excelentes relações com Jaques Wagner e o governador da Bahia, Rui Costa”. As relações devem ser boas mesmo, porque Carletto venceu uma licitação do governo com uma empresa que não se encontrava em funcionamento no dia 2 de fevereiro de 2018, data do leilão, como informa esta reportagem.
Eu nunca tinha ouvido falar da ITmov, mas seus planos parecem ambiciosos –e seus preços, mais ainda. O site da empresa indica que ela tem a intenção de competir com a Uber, e as similaridades são óbvias. O transporte funciona através de um aplicativo, e tanto o usuário como o motorista são avaliados, gerando no próprio aplicativo uma espécie de x-9 virtual onde o comportamento de ambos pode ser sigilosamente denunciado. Em alguns anos vamos estar vivendo o pesadelo descrito no episódio “Nosedive” da série “Black Mirror”, onde todo o comportamento humano é avaliado, coletado e tabulado para o crédito social (ou descrédito, no meu caso). Por isso eu me recuso a dar qualquer nota abaixo de 5 para os motoristas de Uber, mesmo aos que não merecem. Se eu tiver algum problema, prefiro tratar direto com a pessoa em homenagem à antiga arte das relações intra-humanas que dispensam intermediação algorítmica. Mas eu digresso.
A ITmov ganhou a licitação porque ela supostamente ofereceu “o menor valor por quilômetro”. Isso é muito importante, porque a empresa iria ser a única responsável pelo transporte de todos os funcionários públicos lotados nos órgãos do Centro Administrativo da Bahia (CAB). O valor cobrado pela ITmov era de R$ 3,08 por quilômetro. Fiz um cálculo rápido usando meu aplicativo do Uber e vi que a empresa estava me cobrando no dia 3 de novembro, às 13h de uma 4ª feira no Rio de Janeiro, o valor de R$ 1,06 –quase 1/3 do preço que seria cobrado pela empresa do anfitrião de Lula.
A ITmov também foi parar nos jornais em outubro do ano passado porque, segundo delação premiada da desembargadora Sandra Inês Rusciolelli, Ronaldo Carletto estaria envolvido no pagamento de propina para obtenção de uma sentença. Essa delação foi parte da Operação Faroeste, e foi homologada por Og Fernandes, ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Alguns dizem que Lula é incorrigível, e já começou mal. Eu vejo a coisa por outro lado: finalmente o jornalismo brasileiro vai poder mostrar serviço, e produzir reportagens dignas de leitura. O cartel midiático brasileiro passou anos vasculhando as gavetas de Jair Bolsonaro, e os resultados foram patéticos, decepcionantes eu diria. Praticamente nada foi encontrado além da Val do Açaí e imóveis comprados e vendidos ao longo de mais de 30 anos por todos os membros da família (e até não-membros, como a ex-sogra). Será que foi corrupção? Não sei. Mas e se foi, como eu me sentiria? Depende. No contexto nacional, isso é praticamente um atestado de idoneidade.
Antes de eu continuar, mensagem importante: não pensem que eu relativizo a corrupção –tenham certeza que eu relativizo. Eu sou bem ruinzinha em matemática, mas sei o suficiente para entender a diferença entre um soco e cem, a morte de um e a morte de 1 milhão, e o roubo de uma máquina de lavar ou de uma casa inteira. Eu relativizo a corrupção porque eu relativizo todos os crimes com vítima, e todos os crimes quantificáveis, e é inteligente e econômico que eu pense assim. Se a lei prometesse a mesma punição para quem mata uma pessoa ou quem mata mil, a lei estaria de fato premiando quem mata mais, porque sua punição seria relativamente menor por vítima. A matemática moral disso é irrefutável.
Mas existem outros problemas. Se a pena fosse a mesma para quem comete um homicídio ou mil, a lei estaria na prática incentivando a morte, porque estaria dizendo que o homicida só tem que se preocupar em não matar a 1ª pessoa. Depois dessa primeira vítima, a lei complacente diz que ele já perdeu seu hímen e a pena não aumenta mais. Em outras palavras, depois do 1º homicídio, todos os outros são “de graça”, porque não acarretam nenhuma punição extra: nem 1 ano a mais na cadeia, nem uma hora a menos de sol. Por isso sou contra qualquer pena máxima, porque uma punição que tem limite finge que o Mal não tem.
Existe ainda uma 3ª consequência dessa equalização moral forçada que é um verdadeiro absurdo da engenharia social. Raramente percebido pelas pessoas que deveriam estar pensando num Brasil melhor, o segredo é velho conhecido de bandidos e advogados. A pegadinha é a seguinte: se você, Zé Leitor, matou um cara numa briga de bar, e passou a ser passível de condenação à pena máxima (30 anos de prisão, que frequentemente se transformam em 12), você passa a ter emprego garantido “botando outros assassinatos nas costas”.
É isso mesmo. Não só você não corre o risco de ficar mais de 30 anos na cadeia pelos homicídios extras, mas você ainda tem a vantagem de fazer da sua expectativa de condenação uma bela fonte de renda. Quando fiz meu trabalho no Carandiru, conheci alguns prisioneiros que admitiam que só tinham matado um certo número de pessoas, mas botaram outros homicídios “nas costas” como favor a alguém, ou sob ameaça, ou até como fonte de renda.
Em 2015 eu entrevistei Fernando Gabeira para um jornaleco digital em língua inglesa que, descobri depois, ganhava dinheiro do governo do PT em forma de publicidade, como outros jornais nesta lista. Eu não cobrei nada pela entrevista –era do meu interesse entender o que motivou Gabeira a fazer uma jornada que lhe transformou de revolucionário esquerdista a crítico contumaz do governo do PT. A entrevista foi republicada aqui no original em inglês.
Mas existia uma outra coisa que me interessava debater com o escritor e político a quem eu tanto admirava: a questão filosófica e moral do escândalo dos bilhetes de avião, quando vários congressistas foram pegos fazendo uso privado de passagens aéreas dedicadas ao trabalho legislativo (link para assinantes do Estado de S. Paulo). No caso de Gabeira, ele se manifestou antes de ser identificado, e admitiu publicamente que poderia, sim, ter dado duas passagens para sua filha. Sua vergonha foi inversamente proporcional à pequenez do seu erro, e considero essa inversão uma boa medida de caráter.
Acho fascinante ver como tantas pessoas fingem –ou pior, de fato acreditam– que a corrupção é uma só, um mesmo problema independente da dimensão, da profundidade e do valor. Gostaria de fazer negócio com essas pessoas, porque suspeito que meu lucro seria astronômico. Como pagadora de impostos, é óbvio que faz enorme diferença para mim ser roubada em milhões de reais ou em bilhões. O fato de isso precisar ser explicado é mais um sinal da simplicidade intelectual no meio jornalístico, que raramente se dá ao trabalho de sequer fazer as comparações necessárias para que a vítima pagante de impostos entenda o tamanho do roubo.
Claro que, se eu estivesse examinando a questão como quesito para analisar um pretendente, a barra de medição seria outra, e nesse caso talvez fosse uma questão binária, sim ou não, 0 ou 1. Mas políticos não são namorados, nem amigos, e portanto o que rouba menos me incomoda menos. Tem gente na imprensa que faz questão de fingir que corrupção é binária, 8 ou 80, porque isso serve para atenuar a culpa do que roubou 80 (que foi parça e roubou o suficiente para dividir com os amigos, quem sabe até alguns na imprensa) enquanto aumenta a culpa do que só roubou 8 e não dividiu com ninguém.
Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em Ciências Políticas e Estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos. Escreve semanalmente para o Poder360, sempre às quintas-feiras.
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