O que está em jogo: Lula, o centrão e a governabilidade – Nexo Jornal

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Eleições 2022
Aliança partidária e societal que elegeu petista é um ativo importante. O eleitor procurou nitidamente equilibrar o jogo político
Com a vitória em 30 de outubro, Luiz Inácio Lula da Silva conquistou pela terceira vez o direito de comandar o Poder Executivo federal brasileiro. Com margem pequena, algo em torno de 2 milhões de votos a mais do que obteve seu adversário, o presidente Jair Bolsonaro, Lula terá a partir de janeiro de 2023 vários desafios. Trata-se de um país muito diferente daquele de 20 anos atrás, ocasião na qual ascendeu pela primeira vez à Presidência da República. Para ficarmos em dois exemplos: na economia, o setor dinâmico transita do setor industrial para o agronegócio, os serviços e o setor financeiro. No âmbito das corporações do Estado, com Bolsonaro, os militares outra vez assumem papel de relevo no processo político, controlando milhares de cargos na administração direta e indireta. De imediato, portanto, surgem as tarefas de articular o diálogo com os novos protagonistas da cena econômica e organizar a reocupação do setor público pelos civis. Outras e tão decisivas questões poderiam ser citadas, tais como o aumento da pobreza e da fome, os conflitos na fronteira envolvendo a preservação da Amazônia, além do advento da clivagem religiosa/comportamental.
Nada parece mais desafiador, contudo, do que a tarefa de constituir bases mínimas de governabilidade junto ao Legislativo, órgão cuja cooperação é necessária para qualquer passo que se queira dar com vistas seja a manter o dia a dia da administração, por conta das leis orçamentárias anuais, seja avançar em agendas mais substantivas de mudança de políticas. Em 2 de outubro, os eleitores decidiram manter uma orientação majoritariamente de centro-direita, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal. Alterações ocorreram, embora na margem, com o aumento da representação de partidos perfilados à direita e à esquerda do espectro e declínio de agremiações mais ao centro. O gráfico abaixo mostra a quantidade de cadeiras controladas por cada partido e sua respectiva colocação no espaço ideológico. Nele, encontra-se indicado também o esforço a ser despendido por Lula, eleito por partido posicionado mais à esquerda, o PT, tanto para bloquear resultados indesejados (casos de um impeachment, implantação do semi-presidencialismo ou derrubada de veto presidencial), quanto para aprovar suas políticas (como medidas provisória e lei orçamentária anual).
Cada ponto marcado indicado no eixo horizontal pode ser pensado como um jogo legislativo. A ideia subjacente é que Lula controle por proximidade de agenda os votos da Câmara dos partidos adjacentes ao PT e posicionados à esquerda. Na medida em que nos movemos no espaço em direção ao pólo oposto, isto é, à direita, a convergência com o presidente vai diminuindo, o que faz aumentar os custos de negociação em torno da decisão. Introduz também no jogo alternativas de barganha para além da identidade no campo político, como, por exemplo, participação no governo com a concessão de ministérios a lideranças indicadas pelos partidos. O que nos informa o gráfico?
De início, nota-se que o impeachment, para ser viável (2/3 dos votos), supõe consenso entre todos os partidos da direita e quase todos do centro. Descartar tal cenário, tornando-o remoto, exigirá de Lula, além de manter a esquerda em seu entorno, atrair para sua coalizão legislativa MDB, PSD e a frente composta pelo PSDB/Cidadania. Muito provavelmente, portanto, postos ministeriais serão oferecidos a membros dessas agremiações, uma vez que a afinidade programática não é suficientemente forte a ponto de garantir sua adesão ao interesse do governo em manter o mandato do presidente. Podemos dizer o mesmo com relação a uma eventual tentativa de Arthur Lira de implantar imediatamente o semi-presidencialismo no Brasil, transferindo para si a prerrogativa de montar o ministério, e a conclusão da reforma administrativa nos moldes sonhados por Paulo Guedes (3/5 dos votos). Nesses dois casos, o esforço será maior para quem deseja iniciar o processo, cabendo ao presidente montar uma boa retaguarda na estrutura do Executivo e evitar defecções à esquerda.
Nada parece mais desafiador para Lula do que a tarefa de constituir bases mínimas de governabilidade junto ao Legislativo, cuja cooperação é necessária para qualquer passo que se queira dar
Os jogos se complicam quando pensamos em iniciativas do Congresso contrárias às preferências do governo ou em tentativas deste em iniciar novos programas, por exemplo, via medidas provisórias. Caberá ao presidente organizar sua base legislativa para uma vez vetando projetos indesejáveis, não permitir a derrubada do veto (maioria absoluta de votos), ademais de conferir quórum e aprovar medidas provisórias uma vez cumprido o prazo constitucional de tramitação, evitando assim que caduquem (maioria absoluta de votos para dar quórum). Para se ter uma ideia da importância de manter vetos, basta lembrar de estarem em tramitação 14 projetos que flexibilizam as leis ambientais no país. Para se ter uma ideia da importância da tramitação das medidas basta lembrar que toda a reformulação de ministérios costuma tramitar por esta via. Esses cenários indicam, portanto, a necessidade de um esforço considerável do governo – é preciso conquistar todo o centro do espectro e avançar na direção de parlamentares de agremiações mais à direita, como o União Brasil, o PP e o próprio PL, de Bolsonaro. Indicam, enfim, a necessidade de uma análise mais acurada sobre o assim chamado “centrão”.
Os “jogos” descritos sumariamente até aqui pressupõem disciplina perfeita das bancadas. A realidade, contudo, é um pouco distinta, pois os partidos na Câmara costumam abrigar facções em seu interior, divisões mais ou menos agudas que acabam se refletindo no padrão de votos, de apoio ou oposição ao governo. Com isso deve contar o governo, no sentido de negociar suas pautas mais nevrálgicas e ganhar tempo até que resultados positivos no âmbito da economia e do bem-estar possam aparecer. Partidos de direita e centro-direita como o PL, UB, PP e Republicanos, assim como PSD e MDB contam com parcelas importantes de membros sensíveis ao problema da governabilidade, parcelas suficientemente pragmáticas, dispostas a negociar posições estratégicas no governo em troca de votos favoráveis em comissões ou no plenário. O problema é que hoje em dia, após anos de mudanças institucionais, a mais importante delas sendo o orçamento impositivo, o Legislativo possui muito mais autonomia e poder alocativo do que na ocasião do primeiro governo Lula, em inícios do atual século. O desafio da governabilidade passa a ser então o de entender a nova realidade institucional vivida no país e seus impactos no modo de conduzir o presidencialismo de coalizão.
A aliança partidária e societal que elegeu Lula é, neste sentido, um ativo importante. O eleitor procurou nitidamente equilibrar o jogo político ao alçar à Presidência uma experiente liderança de esquerda vis-à-vis da escolha para o Congresso, de orientação majoritariamente conservadora. O recado das urnas foi, assim, o da busca pelo diálogo e pela conciliação. Cabe às elites entender e encontrar saídas criativas para eventuais impasses, soluções que estabilizem a democracia, afastem o extremismo direitista e promovam o apaziguamento social.

Fabiano Santos é cientista político, professor do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), subcoordenador do INCT (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação Política), coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro e do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal.

Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, acesse o site.
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