Bolsonaro abusou em gastos, mas país não quebra nem se Lula esticar a corda – UOL Economia

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Jornalista profissional desde 1967, foi repórter, redator e exerceu cargos de chefia, ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, nas principais publicações de São Paulo e Rio de Janeiro. Eleito ?Jornalista Econômico de 2015? pelo Conselho Regional de Economia de São Paulo/Ordem dos Economistas do Brasil, é graduado em economia pela FEA-USP e integra o Grupo de Conjuntura da Fipe-USP. É colunista de economia desde 1999, com passagens pelos jornais Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo e sites NoMinimo, iG e Poder 360.
08/11/2022 09h31
Talvez porque a Copa do Mundo vem aí, passada a eleição do ex-presidente Lula para um terceiro mandato, estamos em plena temporada dos chutes. Tem chute para os ministérios do novo governo, para “rombo” nas contas públicas que será deixado pelo presidente Bolsonaro, e para a “licença para gastar” pretendida por Lula.
Questões de base, porém, se apresentam antes da eventual avaliação dos chutes sobre o volume de despesas. A palavra “rombo”, por exemplo, tende a expressar a distância entre o montante de recursos que se pretende gastar e o dinheiro existente para fazer frente à pretensão.

Mas essa designação, na prática, denota apenas um modo de ver as contas públicas — aquele que defende um equilíbrio fiscal estrito, apoiado na ideia de que só se pode gastar o que se arrecada. O “rombo” designaria o total de despesas que superasse o limite estabelecido pela regra de controle fiscal vigente.
O mesmo se pode dizer da “licença para gastar”. É, de um certo ponto de vista, um outro lado do “rombo”. Licenças para gastar geralmente produzem ou ampliam “rombos”. Mas, de novo, a ideia de que está sendo solicitada ou concedida uma “licença para gastar” se vincula a alguma ação que, no fim das contas, dribla o controle existente para evitar esses gastos.
“Rombos” e “licenças para gastar” são resultados de decisões políticas, que procuram acomodar conflitos distributivos na sociedade. No momento em que os gastos que formam o “rombo” são cobertos por arrecadação, o “rombo” deixa de existir. No fim dessa história, se alguém pagar a conta, não haverá rombo. Definir quem paga a conta, eis a verdadeira questão.
No conjunto de medidas que compuseram o exitoso Plano Real, por exemplo, um ajuste fiscal aparecia como pré-requisito. Esse ajuste foi feito com aumento de carga tributária, que mais para as rendas médias. Apenas entre 1993 e 1994, a carga tributária subiu três pontos percentuais, de 25,4% do PIB para 28,3% do PIB. No fim do segundo governo de FHC, em 2002, a carga alcançara 32,1% do PIB, com alta de 6,7% no período.
Ao inaugurar seu terceiro mandato, Lula terá alguns desafios fiscais imediatos pela frente. O primeiro é acomodar parte dos gastos sem previsão de receita promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro, com objetivos eleitorais, sobretudo a partir do segundo trimestre deste ano. Entre antecipações de pagamentos, aumento de benefícios sociais e corte de impostos, foram mais de R$ 300 bilhões injetados na economia.
Lula também terá de destravar o Orçamento, que, na proposta enviada ao Congresso por Bolsonaro, deixou programas sociais, assistenciais e ambientais praticamente sem recursos. Na competição com as emendas parlamentares, muitas como parte do orçamento secreto das emendas de relator, a margem estreita para despesas não obrigatórias foi para perto de zero. Programas como Farmácia Popular, merenda e infraestrutura escolar, mobilidade urbana e habitação, combate ao desmatamento, entre vários outros, terão de ser recompostos.
A proposta orçamentária de Bolsonaro para 2023 seria uma clara indicação de que o país está quebrado — se países, quando endividados em moeda nacional, quebrassem. Países que extrapolam no acúmulo de gastos públicos podem viver períodos de instabilidade econômica, com pressão inflacionária e recessão, mas, por definição, não quebram.
Um exemplo recente vem dos gastos extraordinários com o combate à pandemia de covid-19, em 2020. Por pressão e ação do Congresso, um auxílio emergencial, que transferiu R$ 600 por cinco meses a quase 70 milhões de brasileiros, em conjunto com outras medidas de sustentação de empresas e trabalhadores, resultou em despesas que resultaram num déficit primário das contas públicas de R$ 700 bilhões, cerca de 10% do PIB.
Nem assim o país quebrou. Nos dois anos seguintes, a arrecadação se recuperou, impulsionada por inflação, alta nas cotações das commodities internacionais e recuperação econômica cíclica, levando a reduções na dívida pública bruta.
A necessidade de recompor, em 2023, gastos sociais limitados ao mínimo por Bolsonaro faz parte da “licença para gastar” que terá de ser concedida. Vem junto com as principais promessas de campanha — tornar permanente o programa de transferência de renda de R$ 600 mensais e garantir reajuste real anual ao salário mínimo.
A equipe de transição de Lula estima em R$ 200 bilhões as necessidades para recompor o Orçamento e incorporar promessas de campanha. Pouco menos da metade desse total contemplaria as despesas com o auxílio de R$ 600 mensais, com gastos adicionais em relação ao previsto na proposta orçamentária de Bolsonaro. O montante estimado é de R$ 54 bilhões por ano. Se adicionar R$ 150 por criança até seis anos em famílias pobres, promessa de campanha de Lula, a conta do que já está sendo chamado de novo Bolsa Família vai a R$ 70 bilhões.
Outros R$ 10 bilhões seriam destinados ao reajuste do salário mínimo em 2023, com um aumento acima da inflação em torno de 1,5%. O volume de recursos necessário pode ser um pouco menor porque a inflação contemplada na proposta orçamentária é de 7,5% no ano, mas caminha para ficar abaixo de 6%. Reajuste da remuneração de servidores públicos exigiria outros R$ 10 bilhões adicionais.
A recomposição de gastos sociais não previstos no Orçamento de Bolsonaro, entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões, levaria a necessidade acumulada a algo nas vizinhanças de R$ 120 bilhões. Recursos para programas voltados para melhorias das condições econômicas — e, eventualmente, quitar parte dos precatórios pendentes — comporiam os restantes R$ 80 bilhões do conjunto de R$ 200 bilhões da “licença para gastar”.
Deve-se lembrar que não há barreiras ao atendimento dessas demandas, exceto os limites impostos pelas regras de controle fiscal. A regra do teto de gastos, que já foi driblada por emendas constitucionais pelo menos cinco vezes no governo Bolsonaro, perdeu função, transformou-se num entrave antes de tudo ineficaz e precisa ser substituída.
O problema dos gastos públicos é a falta de receitas que os sustentem. Gastos sem provisão resultam em aumento da dívida pública. Dívida elevada aumenta o risco de calotes por parte do governo, o que tende a fazer subir a taxa de juros com a qual o Tesouro remunera os investidores nos títulos públicos que representam a dívida. Alta dos juros pressionam a inflação e atuam como freio do crescimento econômico. Por isso, não é possível aumentar indefinidamente os gastos públicos e a dívida.
Aumentos da dívida pública, se temporários, nem sempre são inadministráveis. A dinâmica da dívida e o esforço fiscal para estabilizá-la depende da taxa de juros e do ritmo de crescimento econômico. Dívidas mais altas, em regime de juros mais baixos e ambiente de expansão da atividade econômica, podem ser mais manejáveis do que endividamento menor, mas em condições financeiras e econômicas mais desfavoráveis.
A moral da história fiscal do momento é a de que Bolsonaro abusou das “licenças para gastar”, e seu governo deixará sem sustentação fiscal um misto de despesas e cortes de impostos que pode superar 4% do PIB. Mas o país não quebrou e não quebrará, mesmo que Lula estique ainda um pouco mais a corda do nível de gastos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
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José Paulo Kupfer
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