Como fazer análise política diante da irracionalidade? – Brasil 247

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Economista e jornalista. Colabora com o Brasil 247 e outros jornais no Brasil, é colaboradora e blogueira do Mediapart em Paris

Este escrito é resultado de uma discussão calorosa que tive há dois dias com um grande amigo e filósofo francês. Naquela ocasião, quando conversávamos sobre a ascensão do Bolsonaro ao poder e a construção do bolsonarismo ele afirmou: “O PT é responsável por Bolsonaro ter chegada ao poder”. Prosseguiu ainda nos argumentos: “O PT nunca se questionou por que ele se corrompeu, você concorda?”
De imediato eu lhe respondi que não poderíamos atribuir, somente ao PT, a ascensão do Bolsonaro à Presidência do Brasil, nem tampouco afirmar que a corrupção no Brasil seria culpa do PT. Salientei ainda, que não negava a corrupção na própria história da política. Todavia, afirmar que nunca houve questionamento do PT sobre este tema seria desconhecer a realidade do poder no Brasil. 
Nossa conversa foi se encaminhando para uma acirrada discussão política. Eu tentava contextualizar a realidade brasileira para responder às perguntas e ele acrescentava que o importante não era ter todas as respostas, mas colocar as boas questões. E voltou a afirmar: “o PT deveria se questionar por que ele se corrompeu e por isso perdeu a credibilidade dos brasileiros que passaram a detestar o partido e seus adeptos”. 
É certo que as boas questões, nos ajudam a melhorar nossas reflexões, sobretudo, se as perguntas são pertinentes e facilitam o debate. Caso contrário, as respostas vão sempre dividir e o questionamento não avança. Sabemos que cada um, ou cada uma tem suas ideias, seus apriorismos e seu ego, por vezes impeditivos de perceber efetivamente onde se coloca o nó da questão. Hoje no Brasil, por exemplo, é muito difícil de manter esse tipo de debate com um adversário político, ou com alguém que continua até hoje afirmando o imaginário de que Lula e o PT são responsáveis por todas as crises existentes atualmente no Brasil.
Especialmente para o meu amigo francês, habituado ao estilo cartesiano, era difícil entender as contradições presentes hoje em meu País, por muitos interpretada como expressão de irracionalidade.
 A situação do Brasil, complexa e dialética, nos ensina a falar e a pensar sobre muitas coisas, nem sempre cabíveis em uma lógica dedutiva e indutora de uma verdade demonstrada. Porém, a insistência nos “porquês” é um bom método. Meu amigo francês não tinha o mesmo nível de informação que eu dispunha sobre a contextualização da realidade brasileira. Tampouco eu tinha todas as respostas às suas perguntas. 
 Eu tinha, no entanto, a convicção de que a explicação sobre a chegada do Bolsonaro ao poder não poderia se resumir na repetição de uma frase de efeito, espécie de “mantra” criado pelos adversários: “a culpa da corrupção é exclusiva do PT”! 
 O principal contraponto dessa afirmação é o seguinte:  Lula foi inocentado de todos as acusações, não tendo sido constatado nenhum enriquecimento pessoal em sua trajetória política. Essa informação não tem sido suficiente para calar o veredito de falsos moralistas que, além de não atentarem para corrupções comprovadas em outros partidos no Brasil, continuavam e continuam dizendo que Lula é ladrão! A “corrupção” para eles continua totalmente atrelada ao Partido dos Trabalhadores. 
Para responder à questão inicial de meu amigo e filosofo francês eu argumentei: o PT não inventou e nem organizou a corrupção no Brasil. Ressalto que em todos os governos federais no Brasil houve casos de corrupção e não podemos negar a existência do “mensalão” e do “petrolão” no governo petista. O que diferiu entre os governos foi a resposta à conduta adotada, por cada um deles, diante dos fatos comprovados de corrupção. Nos governos do PT, nenhum caso de corrupção foi “empurrado para debaixo do tapete”, ou foi engavetado. Nunca houve interferência do PT nas investigações sobre suspeitas e não houve mudanças de cargos na Procuradoria Geral na Polícia Federal e no Ministério da Justiça, tal como ocorreu nos governos anteriores, principalmente no governo de Bolsonaro que manteve ostensivamente uma política de sigilo. 
Uma boa questão seria: Por que a corrupção dos governos precedentes ao PT e atualmente do Bolsonaro nunca comoveu a elite econômica do Brasil, incluindo a classe média? Por que as manchetes dos jornais impressos e os canais de televisão não deram o mesmo peso aos escândalos de corrupção ocorridos anteriormente? Por que os escândalos dos governos de Temer e Bolsonaro não tiveram investigações mais apuradas? Por que hoje todos os escândalos de corrupção desaparecem tão rápidos das manchetes diárias e não têm o mesmo impacto junto à população? Deveríamos agora nos questionar. Por que a luta contra a corrupção se concentrou nos governos dos Partido dos Trabalhadores? Outra indagação que deveria nos preocupar: Por que o vírus da corrupção continua enraizado na cultura do “jeitinho brasileiro”? 
Para muitos brasileiros(as) o Partido do Trabalhadores era um exemplo de luta contra a corrupção. Ao ser colocado no banco dos réus, essa formulação simbólica que era ícone do Partido foi deitada por terra e pisada por milhares de pessoas. 
A estratégia utilizada pela Lava Jato e pelo mundo mediático que lhe dava suporte era exatamente a desconstrução discursiva do PT e a prisão de Lula. O STF deixou o então juiz Sérgio Moro e a “operação Lava-Jato” desenvolverem uma estratégia de “lawfare”, politizando a justiça, aplicando métodos próprios do estado de exceção e alimentando a mídia comercial e redes sociais com mentiras. A mídia comercial divulgava as fake-news mais absurdas sobre a família de Lula, com o único objetivo de transformar o líder carismático em chefe de quadrilha. 
 A partir de então, o slogan “CorruPTos”, veio imprimir uma forma de luta política baseada na desconstrução simbólica do PT. A oposição parlamentar e a mídia comercial criaram uma versão de que o Estado havia sido assaltado por uma quadrilha composta por membros do PT, por sindicalistas e movimentos sociais com objetivo de enriquecimento pessoal ilícito. O PT nessa narrativa construída estaria buscando a perpetuação de um projeto de poder. 
Trata-se, de fato, de uma campanha antipartidária que começou a ter efeito desde 2013. O governo de Dilma tornou-se refém de conspiradores políticos denunciados por vários crimes de corrupção e sonegação de impostos, desvio de dinheiro público etc. O mais absurdo é que foram os conspiradores que assumiram as rédeas do poder, permitindo que um psicopata subisse a rampa do planalto com a faixa de Presidente! O ex. juiz Sergio Moro virou Ministro de Justiça de Bolsonaro.
 O desenrolar desse processo é conhecido. O Brasil mergulhou no caos, os direitos conquistados foram esmagados, deflagrando-se o ódio e a violência sem limites, com imprevisíveis consequências. Ao invés de agir pela manutenção da paz social e o bem-estar da nação brasileira, os bolsonaristas foram alimentando monstros que tanto mal fizeram à Europa: o fascismo e o nazismo.
Tudo levava a crer que as estratégias do Law-fare e as fakes-News iriam destruir completamente o Partido dos Trabalhadores e a imagem do estadista Lula que gozava ainda de grande popularidade nacional e internacional. Ele seria um forte candidato à Presidência e poderia voltar ao poder em 2018. Para impedi-lo somente sua prisão levaria a concretização do projeto político já traçado. O projeto era fazer com que o nome da luta contra a corrupção, o símbolo da ética na política que representava o PT saísse do imaginário popular. Foi assim que se deu a ascensão de Bolsonaro ao poder e o fortalecimento do campo reacionário, fundamentalista e de extrema direita. Ele recebeu apoio de brasileiros(as) desonestos, preconceituosos que sempre assumiram o racismo, sonegadores de impostos, analfabetos políticos, ignorantes de conhecimentos que negam a evolução da ciência, negam a pandemia do coronavírus, acreditam que a terra é plana, detestam quem defende o meio ambiente e as populações tradicionais. Como se não bastasse, são ainda violentos, machistas, homofóbicos e acreditam na superioridade de raça branca. Pela primeira vez na história política esse segmento se sentia bem representado. 
Ficou claro que o que estava em jogo era a tomada de poder. O combate à corrupção nunca foi uma meta nem uma verdadeira preocupação dos chamados justiceiros e nem dos políticos principalmente pertencentes à ala conservadora e à extrema direita brasileira. O combate à corrupção como bandeira moral foi apenas um pretexto com fins politiqueiros. Há muitas razões pelas quais a corrupção mina tão seriamente o sistema democrático. Em geral, quando as elites são extremamente corruptas, elas realmente não se importam com o resto da população, ou mesmo com seu próprio país. 
Logicamente, diante desse bombardeio incessante se imaginava que o PT desaparecesse da cena política, embora sua base social e eleitoral continuasse sendo expressiva. Penso que esta crise política foi benéfica para o PT que pode se reconstruir a partir de seus erros. O Lula já praticou seu mea-culpa em várias ocasiões por não ter ido mais longe nas reformas estruturais.  
O Presidente Lula entendeu que a política é a arte do compromisso e como sindicalista soube negociar, preservando interesses contraditórios. Usou de sua habilidade para seduzir, conciliar e persuadir, conseguindo cumprir a meta que havia fixado em resolver os problemas sociais mais agudos da sociedade brasileira. Lula sempre teve uma grande capacidade de falar às massas e de reconstruir pontes com segmentos mais diferenciados da sociedade brasileira, adotando o mesmo nível de linguagem para com os empresários, os trabalhadores assalariados e os movimentos populares.
A sociedade brasileira demonstrou uma capacidade enorme de mobilização ao dar uma resposta através das urnas, sabendo da urgente necessidade de derrotar a barbárie para salvar os valores democráticos ameaçados pela extrema direita e fundamentalistas que objetivavam criar uma autocracia fascista no Brasil. Foi uma vitória histórica, restando agora ao próximo governo da frente popular e democrática a reconstrução de tudo o que a extrema direita destruiu. 
Dado o contexto de violência acirrada na sociedade brasileira e o retrocesso de valores humanos, eu penso que seja de grande urgência desenvolver uma ampla campanha nacional de educação para a paz social. É preciso construir uma cultura de não-violência no Brasil, resgatar o senso comum da convivência fraterna e do respeito às diferenças.  Isso exige que as organizações sociais, os intelectuais e os formadores de opinião venham reforçar o trabalho de educação popular freiriana, visando atenuar os efeitos maléficos deixados na incitação à violência e ao ódio. Não podemos permitir que esses valores desumanos criem raízes na nossa sociedade. Só a educação liberta, dizia Paulo Freire e ela pode ter um papel fundamental na construção da cidadania política e da consciência crítica, tornando os atores sociais agentes de mudança. Basta de ignorância destruidora que vem criando uma massa de gente embrutecida. 
Sim, o meu amigo filósofo tinha plena razão quando dizia que é preciso, mais que responder, ter boas questões para pensar. Eu convido aos brasileiros e amigos comprometidos a prosseguir nessa reflexão. 
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