Gal Costa teve voz ativa na luta política pela democracia – Correio Braziliense
Gal Costa foi a voz de diversas gerações. Mas seu talento reverberou principalmente nos momentos políticos mais delicados da história do país — da ditadura à redemocratização. O canto da tropicalista embalou músicas emblemáticas, que marcaram quem resistiu ao regime militar, e carregava sempre rebeldia, delimitando posições firmes de uma artista que sempre abraçou o Brasil em suas faces mais frágeis.
Uma das últimas postagens da cantora nas redes sociais é, inclusive, uma manifestação de apoio à eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Durante a campanha, Gal também declarou voto no candidato, na internet e em apresentações. Na última selfie publicada pela cantora no Instagram, em 30 de outubro, logo após o resultado das eleições, Gal faz um “L” com a mão. “O amor venceu o ódio. Lula presidente”, escreveu.
Em texto emocionante, a jornalista Miriam Leitão, presa e torturada durante a ditadura militar, lembrou como a música de Gal foi importante para enfrentar o período de exceção. “Foi ouvindo repetidamente que aprendi a cantar Assum preto. E esta canção me embalou quando eu mais precisei. Quando fui presa no final de 1972, na solitária, eu cantava para mim mesma. E quando fiquei na cela com outras companheiras, cantava para elas e com elas”, relatou. “Tudo que Gal Costa cantou foi maravilhoso, ao longo de toda a vida, mas o Assum preto, virou para mim, e as meninas na cela, uma espécie de hino para esperar tempos melhores.”
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Em 1967, a artista lançou o primeiro disco, ao lado de Caetano Veloso, assinado apenas Gal. O projeto Memórias da Ditadura, do Instituto Vladimir Herzog, conta que Caetano não aprovava a escolha do nome artístico da parceira. À época, o termo “Gal” era usado como abreviatura de “general” e no mesmo ano estava à frente do regime militar o General Costa e Silva, cuja abreviatura do nome, portanto, era “Gal Costa”.
No ano seguinte, com a promulgação do ato institucional nº5, o AI-5, em 1968, Gal perdeu os companheiros Caetano, Gilberto Gil e Guilherme Araújo, exilados do Brasil. “Ela relatou que só não foi com eles porque não conseguiria arcar com a passagem para Londres e as despesas para permanecer no exterior. Então ela ficou no Brasil e precisou de novos aliados artísticos”, conta o jornalista e sociólogo Renato Contente, autor do livro Não Se Assuste, Pessoa! — As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina.
A partir deste momento, Gal entrou em uma fase mais contestadora, e tornou-se a voz que cantava as letras dos exilados da ditadura. A interpretação explosiva da musa tropicalista para a música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, virou uma de suas marcas registradas e música de protesto nos anos de chumbo. “É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte / É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte”, diz o icônico refrão. A canção de 1968 faz parte do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, que contou também com a participação dos Mutantes, Tom Zé e Nara Leão.
A música teve o mesmo nome do programa apresentado por Gal, Caetano, Gil na TV Tupi, no ar por três curtos meses de 1968. A rápida passagem pelas telas não se deu por falta de audiência, mas, sim, pelo desagrado dos militares. Feito no improviso e com vários quadros irreverentes, o último programa foi ao ar em 23 de dezembro, e mostrou Caetano interpretando a música Noite Feliz com uma arma apontada para a cabeça — a gota d’água para os militares, que o prenderam quatro dias depois. “Eu fiz corajosamente, talvez eu não tivesse nem a consciência da grandeza política que tinha”, disse Gal sobre o programa, em 1995, em entrevista ao Roda Vida, da TV Cultura.
Gal também foi expoente da revolução sexual nos anos de ditadura. O álbum Índia, de 1973, representa uma contraposição à cartilha de comportamento daqueles tempos. Começando pela capa, um close em uma tanga vermelha usada por Gal, enquanto a contracapa mostrava a parte de cima, com colares cobrindo parcialmente os seios da artista. O LP acabou censurado pela ditadura militar, e passou a ser vendido envolto em um plástico azul. Um tiro pela culatra dos militares, que só fez aumentar a procura pelo disco “proibido”, que recebeu disco de platina pelas vendas.
Em 1994, já no período democrático, fez nova apresentação icônica e ousada. Ao interpretar Brasil, de Cazuza, no palco do Teatro Imperator, chocou ao público ao deixar os seios à mostra. A música, também na voz de Gal, ganhou a abertura da novela Vale Tudo, sucesso de audiência na TV Globo anos antes.
“Meu passado me mostrou como uma mulher, entre aspas, militante, coisa que nunca fui… Por acaso, fui uma mulher libertadora, no sentido verdadeiro, procurei viver a vida que acreditava e acredito. Mas nunca tive essa personalidade no sentido de militar mesmo. Acredito na liberdade e no respeito. Sou uma democrata”, disse a cantora em entrevista ao jornal O Globo, em 2021, antes de voltar aos palcos com o show após a pandemia de covid-19.
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