Encolhendo e em crise, classe C vira motor do bolsonarismo – Política Livre
13 novembro 2022
No estado natal de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Santa Cruz do Capibaribe foi a única entre as 185 cidades pernambucanas a dar vitória a Jair Bolsonaro (PL). O presidente bateu Lula por 52% a 48% no município. No estado, o petista venceu por 67% a 33%.
Com 111,8 mil habitantes e a 186 km do Recife, Santa Cruz do Capibaribe, visitada pela Folha há alguns anos, é um dinâmico centro de empreendedorismo baseado na “sulanca”, originalmente tecidos de helanca vindos da região Sul e utilizados por centenas de pequenas confecções e comerciantes.
É o segundo maior polo de confecções do Brasil (atrás de São Paulo), reunido no Moda Center Santa Cruz, um gigantesco mercado que atrai compradores e revendedores de vários estados.
Dados do IBGE de 2020 para o município permitem estimar que famílias com duas ou três pessoas trabalhando em Santa Cruz do Capibaribe têm renda média entre R$ 3.100 e R$ 4.700.
Embora não exista um consenso entre institutos e pesquisadores sobre os parâmetros para a divisão de classes no país, critérios utilizados por diferentes consultorias inserem essa faixa de renda na chamada classe C.
Análise do resultado da eleição de 30 de outubro sugere que a classe C foi crucial para a votação expressiva de Bolsonaro, que acabou perdendo para Lula por apenas 2,1 milhões de votos, margem mais apertada em pleitos presidenciais desde a redemocratização.
Com poucas exceções, estados onde a classe C é relativamente maior deram vantagem ao presidente. Na contramão, onde a classe D/E predomina, Lula se saiu melhor.
Pesquisa Datafolha na véspera do segundo turno indicou que a maioria (51%) dos eleitores com renda familiar entre 2 e 5 salários mínimos votariam em Bolsonaro (ante 42% em Lula).
A grande maioria desses eleitores pesquisados pertencia à classe C, segundo critério da consultoria Plano CDE, que estabelece renda familiar entre R$ 2.030 e R$ 6.125 para esse grupo.
Já o petista tinha 55% das preferências, segundo o Datafolha, entre famílias com renda até dois salários mínimos –em sua maioria membros da classe D/E, segundo critério da Plano CDE (renda abaixo de R$ 2.030).
As classificações seriam aproximadamente as mesmas pelos critérios da consultoria Tendências.
A classe C é a mais numerosa no Brasil, com 95,6 milhões de pessoas. A classe D/E agrega outros 70,5 milhões e a A/B, 46,4 milhões, segundo a Plano CDE.
Especialistas em classes sociais e em ciência política dizem que é possível inferir que membros da classe C -como os eleitores de Santa Cruz do Capibaribe- demonstraram maior preferência por Bolsonaro por conta de seu discurso pró-empreendedorismo e defesa de um Estado que interfira menos na vida das pessoas.
“Dados da POF [Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE] mostram que, na classe C, 60% dos trabalhadores têm renda variável, com predominância na informalidade. O discurso do presidente por um Estado que não deve atrapalhar tem mais aderência nesse pessoal batalhador. Eles acreditam em progredir mais por méritos próprios”, afirma Maurício de Almeida Prado, antropólogo e diretor-executivo da Plano CDE.
Segundo Prado, pesquisas qualitativas revelam que esse segmento tem um discurso mais individualista, e guarda um sentimento de insatisfação alimentado pela combinação de crise econômica no biênio 2015-2016, baixo crescimento desde então e escândalos de corrupção nos governos do PT.
Ironicamente, foi nos anos Lula (2003-2010) que a classe C expandiu-se rapidamente. Segundo dados da FGV Social daquele período, quanto mais pobre, maior foi o aumento na renda, o que contribuiu para a travessia de muitos brasileiros da classe D/E para a C. Em 2010, o então Ministério da Fazenda estimou que 25 milhões de pessoas haviam feito esse percurso.
Nos últimos dez anos, no entanto, a classe C encolheu, segundo cálculos da Tendências.
Neste ano, 28,8% dos domicílios fazem parte dela, ante 32,6% em 2012. Na contramão, a classe D/E aumentou de 48,7% dos domicílios para 55,4% -levando, inclusive, ao aumento da taxa de brasileiros na extrema pobreza.
Ao contrário da classe D/E, que sempre dependeu de serviços públicos e é, ao menos em sua base, atendida por programas sociais, a classe C vem perdendo renda e se precarizando há dez anos -ficando cada vez mais distante, por exemplo, de planos de saúde e escolas particulares. “Há um forte sentimento de frustração nesse segmento”, diz Prado.
Para Rafael Cortez, cientista político da Tendências, o aumento da informalidade no Brasil (40% dos trabalhadores hoje) também reforça o sentimento pró-livre iniciativa de eleitores mais à direita, que acabam vendo o Estado como um empecilho burocrático e cobrador de impostos.
“Esse componente, que já era estrutural, acabou se tornando também conjuntural com a pandemia, e foi muito bem explorado por Bolsonaro. O ‘fica em casa, a economia a gente vê depois’, repetido pelo presidente, teve forte apelo entre esses eleitores, que dependem da informalidade para ganhar a vida”, diz.
Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, concorda que a elevada informalidade na classe C pode ter levado seus membros a simpatizarem mais com o discurso do empreendedorismo, e a favor de uma certa estabilidade macroeconômica, preconizado por Bolsonaro.
“Se nos anos 2000 eles passaram por um processo de ascensão social, houve enorme frustração a partir da recessão de 2015-2016, associada aos escândalos de corrupção do PT, em um contexto em que eles não dispõem de mecanismos de proteção social. Isso os torna mais sensíveis a esse discurso empreendedor”, diz.
Cortez, da Tendências, afirma ainda que Bolsonaro também foi habilidoso ao agregar vários simbolismos contrários à esquerda, reunindo eleitores que, em eleições passadas, votavam em candidatos do PSDB contra o PT.
O sociólogo e cientista político Antonio Lavareda lembra que o total de votos em Bolsonaro neste ano (49,1%) foi muito próximo ao obtido por Aécio Neves em 2014 (48,4%).
Segundo ele, os eleitores já vinham se deslocando para a direita desde as eleições para prefeitos e vereadores de 2012. Apesar da vitória apertada da petista Dilma Rousseff contra Aécio em 2014 (com vantagem de 3,4 milhões de votos), o Congresso eleito à época já reforçara esse perfil.
“Nos últimos anos, houve também uma relação causal na cabeça de muitos eleitores entre a corrupção apontada pela Lava Jato e o empobrecimento da sociedade. Essa é a grande explicação para a força do bolsonarismo.”
Para Lavareda, apesar da derrota, Bolsonaro soube explorar esse sentimento difuso, com o discurso pró-livre iniciativa, de “tirar o Estado das costas dos produtores”.
“Mas ele também indicou um tipo de liberdade que muitos desejavam: de minerar e desflorestar a Amazônia, de explorar a força de trabalho mais pobre e de empresariar com algum nível de sonegação”, afirma.
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