Belfort Duarte, o maior ‘esquecido’ da história do Futebol Brasileiro – Placar
Felizes aqueles que estiveram ontem, como eu, no campinho da Rua Campos Sales, na Tijuca, onde, pela quinta rodada do Campeonato Carioca em curso, o Flamengo derrotou o América por 4 x 2. E digo isso não porque tenhamos testemunhado, entre os seis tentos da peleja, mais alguma inesperada e fascinante jogada no cada vez mais querido e empolgante esporte que trouxemos há 20 anos da Inglaterra e parece caminhar a passos largos para superar o Remo na preferência dos brasileiros. Deu-se ontem no estádio que há quatro anos pertence ao alvirrubro carioca um marco na história do nosso Futebol: a despedida do zagueiro Belfort Duarte, indiscutivelmente um dos mais relevantes responsáveis pela consagração deste jogo por aqui e referência incontestável de fibra, liderança e conduta nos gramados. Como sou um ‘Viajante do Tempo’, creiam-me, é com tristeza que revelo a vocês, queridos leitores e queridas leitoras de 1915, que no próximo século os amantes da Mundo da Bola no Brasil (e no mundo!) terão semelhante ou ainda menor percepção sobre o valor e a importância deste jogador, referência tão inigualável como esquecida pelas décadas que estão por vir. Anotem: o caráter deste jogador o fará batizar um futuro prêmio nacional, que será concedido a jogadores de melhor comportamento nas disputas, e até um estádio – mesmo isso sendo muito pouco diante de sua grandeza. Mas em 2022, de ‘quando’ venho, nenhum dos dois mais existirá. Assim como sequer uma estátua fará jus ao atleta e também treinador e dirigente do América. Felizes aqueles que não se iludem com o reconhecimento eterno, pois ele não existe.
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Para os que ainda não sabem, registro aqui que foi Belfort Duarte quem traduziu as regras do Futebol para o Português, fundou o primeiro clube genuinamente nacional (só com jogadores brasileiros), o Mackenzie College, em São Paulo, trouxe o primeiro time de fora do país (chileno) para jogar em nossas terras, criou em 1909, num jogo contra o Botafogo, o ritual de jogadores saudarem a torcida ao entrar em campo e, seu maior legado, demonstrou em campo a nobreza e importância de valores como Disciplina e Honestidade. Mesmo impetuoso e obcecado pela vitória, Belfort era o primeiro a levantar a mão se acusando aos juízes por alguma falta que cometera, até em penalidades máximas, não enxergando glória em triunfos que não sejam conquistados com lisura e respeito às regras.
Vigoroso, mas extremamente leal, cometeu pouquíssimas faltas em sua carreira, e por isso vai inspirar o lançamento da tal premiação que já adiantei nesta resenha, oficialmente conferida, a partir de 1946, a atletas que venham a passar 10 anos sem serem punidos por violência em campo – no futuro, excessos serão penalizados com expulsão do agressor. Triste saber que daqui a 107 anos o que será inapelavelmente derrubado é a memória e o reconhecimento a este gigantesco desportista. Ok, vá lá, em 2022 existirão três ruas em cidades brasileiras chamadas Belfort Duarte, São Paulo, Foz do Iguaçu e Fortaleza, no Ceará. Mas vocês sabem como é: como grande parte dos nomes em placas de rua, o pessoal não vai ter a menor ideia de quem se trata o ilustre cidadão.
O fim da gloriosa trajetória do zagueiro nos gramados teve início há poucas semanas, em partida beneficente do América para angariar fundos à Cruz Vermelha. Jogando contra um time de alemães radicados em São Paulo, o clube alvirrubro não teve dificuldades para alcançar a vitória (6 x 1), mas seu capitão (e também treinador) levou uma forte bolada no peito, dando início a uma incômoda e persistente dor que o levará a tomar a decisão de pendurar as chuteiras depois de ontem. A boa notícia é que não se afastará do esporte, seguindo como dirigente do América carioca e também de sua ‘filial’ paulistana, como técnico da equipe (com a qual ano que vem conquistará o segundo título estadual do clube) e juiz – foi dele, inclusive, o apito na primeira partida oficial, em 1912, de uma agremiação muito popular no futuro, o Flamengo. Predestinado, este Belfort.
O maranhense João Evangelista Belfort Duarte, nascido na capital São Luís, ainda criança veio para São Paulo, onde iniciou seu contato e o amor pelo Futebol. Mudou-se para o Rio há nove anos, em 1906, e já se entregando de corpo e alma ao América, nova paixão. Dois anos depois, já demostrava sua personalidade forte ao convencer todos e trocar as cores do clube (de ‘preto e branco’ para ‘vermelho e branco’, inspirado no Mackenzie) e a bandeira, que tornou-se semelhante à do Japão (branca, com círculo vermelho e as letras AFC). Começou jogando de ‘médio’, logo passando a zagueiro, mas pouco importava sua posição pois sempre foi onipresente no clube, seja como capitão, diretor-geral, tesoureiro… É também mérito seu a abertura das portas do América a jogadores negros, outro avanço significativo e muito aguardado no esporte. Filho do ex-governador do Maranhão Francisco de Paula Belfort Duarte, Belfort formou-se em Engenharia Civil (no Mackenzie), é culto e detentor de eloquência encantadora, a mesma que vem distribuindo pelo país em sua obsessão de abrir muitos ‘Américas’ pelo território nacional. Em 2022, anotem, ainda existirão ao menos 7. “O América não recebe nada de graça; tem de lutar para viver”, será sua frase mais lembrada. Ou melhor, mais esquecida.
Incansável, cedeu duas casas em que morava para servir de sede do clube: uma em Vila Isabel; a segunda na Tijuca (essa, em 2022, pelo que vi, permanecerá em pé). Sempre buscando fortalecer a entidade frente aos “privilégios’ concedidos aos clube da Zona Sul da capital federal, com planos, inclusive, de construir um estádio na área Norte da cidade – o que, revelo a vocês, acabará acontecendo, daqui a 35 anos, quando surgir aquele que chamaremos de ‘Maracanã’, como o rio vizinho. Primeiro a chegar aos treinos, Belfort Duarte é do tipo ‘mandão’. Um importante jornalista e escritor do futuro, Mário Filho, sempre dirá que Belfort foi “o primeiro técnico – técnico mesmo – do futebol brasileiro”. O time sempre jogou ‘como ele queria’. E ai de quem desobedecesse… Os incessantes gritos com os companheiros e também as ‘cadeiras’ largas de seu corpo lhe renderam um apelido no mínimo debochado: “Madama” – mas que ninguém profere a sua frente, claro.
Foram muitas as vezes em que acabava visto em lágrimas após derrotas do seu amado clube, e já adianto aos amigos e detratores que o adeus nos campos não o afastará do cotidiano americano. A partir de hoje, até cartas escritas do próprio punho serão comuns chegando ao Onze da Zona Norte carioca, com orientações e conselhos do ‘paizão’. E também aparições inesperadas em treinos e partidas, muitas vezes no intervalo, indo ao vestiário dar os seus ‘pitacos’. A palavra de Belfort Duarte se manterá tão importante que será ela que, em breve, vai dar sinal positivo para a venda de um terreno em São Paulo ao Palestra Itália (‘Nota da Redação da Placar em 2022: antigo nome do Palmeiras’), que lá construirá seu estádio.
Mas nada se compara à principal influência e herança de Belfort Duarte nas próximas décadas: a criação do Prêmio com seu nome, reforçando no país um conceito que, apresento a vocês, queridos leitores e queridas leitoras de 1915, no futuro chamaremos com o anglicismo ‘Fair Play’ (‘Jogo Justo’) – expressão criada em 1896, nas Olimpíadas de Atenas, pelo Barão de Coubertin, organizador dos Jogos, que disse a célebre frase: “Não pode haver jogo sem fair play. O principal objetivo da vida não é a vitória, mas a luta”. No futuro, uma entidade mundial que reunirá todos os países que praticam o Futebol (serão praticamente todos), a ‘FIFA, lançará campanhas e distribuirá premiações à equipes com mais ‘Fair Play’, mas isso somente daqui a 63 anos. O Prêmio Belfort Duarte será lançado no Brasil, atenção, 30 anos antes!
O primeiro jogador a receber a medalha será um ‘half-direito’ de um time do Paraná (‘Nota da Redação da Placar em 2022: Antonio Motta Espezim (1914–2010), o Tonico do Coritiba E. C., agraciado em 25 de junho de 1948), curiosamente a mesma agremiação que, daqui a 17 anos, dará o nome de Belfort ao seu novo estádio – homenagem que se prolongará apenas até 1977. Importantes craques do futuro ganharão a honraria inspirada no zagueiro. Anotem alguns nomes e podem me cobrar: Castilho, Didi, Evaristo, Telê, Félix, Pepe e Vavá. Mas infelizmente, assim como o nome do estádio no Paraná, a premiação também será extinta, em 1981. Virão duas tentativas de reeditá-lo, mas sem sucesso. Qualquer iniciativa a favor do ‘Fair Play’ será sempre benvinda, é claro, mas a triste verdade que trago do Amanhã, leitores e leitoras de 1915, é que não conseguiremos transformar o Futebol em um convento de irrepreensíveis devotos da Honestidade. Até gol com a mão teremos numa Copa do Mundo (competição que passará a reunir seleções de todo o planeta). E o autor do tento, nada ‘santo’, o batizará de “La Mano de Díos” (‘A mão de Deus’).
Mas teremos sim bons exemplos no Brasil e no mundo, inclusive, já no Século 21, de um também zagueiro, de nome Rodrigo Caio, que em 2017, num confronto entre São Paulo e Corinthians, surpreenderá a torcida brasileira, desacostumada com atitudes assim, ao se denunciar ao árbitro e reverter uma punição ao atacante adversário. Cinco meses depois, porém, este mesmo oponente inocentado fará um gol de mão e se manterá ‘caladinho, caladinho…’ Na Europa, cinco anos antes, assistiremos a um emblemático caso de “falta de Fair Play’, quando um jogador brasileiro, Luiz Adriano, se aproveitará de a defesa dinamarquesa do Nordsjaelland estar parada, aguardando uma previsível e obrigatória devolução da bola, para avançar e marcar um gol pelo Shakhtar Donetsk. Ao menos será punido por isso (suspensão de 1 jogo). Teremos no Brasil um também defensor que, nos anos 1970, vai proferir curiosa e polêmica ‘pérola’: “Zagueiro que se preza não ganha o Belfort Duarte”. (‘Nota da Redação da Placar em 2022: Moisés, o ‘Xerife’, que atuou por Bonsucesso, Botafogo, Vasco, Flamengo, Fluminense, Paris Saint Germain e Bangu). O tal ‘Fair Play’, adianto a vocês, nunca será unanimidade.
Para finalizar, gostaria de ‘dar uma de Belfort’ aconselhando o próprio a não se mudar para Resende (RJ) – coincidentemente a cidade Natal do outro zagueiro citado acima – ou ao menos não se enervar com discussões com vizinhos, e mais não digo. (‘Nota da Redação da Placar em 2022: Belfort Duarte seria assassinado com tiros no peito três anos após a despedida dos gramados, em 27 de novembro de 1918, mesma data de seu aniversário. Estava completando 35 anos. A família conta que no momento do crime ele vestia uma camisa do América-RJ). Para compensar meu sigilo, revelo a todos vocês, queridos leitores e queridas leitoras de 1915, que essa quinta edição do Campeonato Carioca de Futebol será vencida pelo Flamengo, no primeiro título invicto de sua história. Em Recife, saibam, outro Flamengo, inspirado no clube carioca, se sagrará este ano campeão da primeira edição do Campeonato Pernambucano. Mas em 2022 a agremiação já terá sucumbido ao Tempo. Assim como a obrigatória e merecida reverência que todos devemos ter ao gigante chamado Belfort Duarte. Obrigado, Capitão!
PARA VER LANCES DE FAIR-PLAY (e ‘falta de’) NO FUTEBOL
https://www.youtube.com/watch?v=_DB4V263_7o&ab_channel=DNAFutebol
https://www.youtube.com/watch?v=DdNRhiEyjU0&ab_channel=Desimpedidos
https://www.youtube.com/watch?v=GwPFjfKyC48&ab_channel=InfoBall
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 4 x 2 AMÉRICA-RJ
Competição: Jogo válido pela 5ª Rodada do Campeonato Carioca de 1915, 1º Turno, a Taça Colombo
Data: 11 de julho de 1915 (domingo)
Local: Estádio América Football Club, na Rua Campos Salles (Tijuca, Rio de Janeiro)
Público: Desconhecido
Árbitro: Flávio da Silva Ramos
FLAMENGO: Cazuza, Píndaro e Nery; Curiol, Lawrence e Gallo; Baiano, Sidney Pullen, Borgerth, Riemer e Raul
Técnico: ‘Ground Committee’ liderado por Emmanuel Augusto Nery
AMÉRICA-RJ: Ferreira, Paulino e Belfort Duarte (capitão); Paula Ramos, Jônatas e Badu; Witte, Gabriel Carvalho, Ojeda, Álvaro e Haroldo
Técnico: João Evangelista Belfort Duarte
Gols: Primeiro Tempo: Raul, aos 8′; Sidney Pullen, aos 42’; Segundo Tempo: Riemer, a 1′; Gabriel Carvalho, aos 7′; Riemer aos 8′; e Ojeda, aos 33’
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