Reeleição de Bolsonaro poderia ter enterrado o Brasil, diz Caetano Veloso – UOL

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O músico Caetano Veloso Rodrigo Sombra/Divulgação
“Quando pensava num segundo mandato do atual presidente, não pensava em teto, mas em buraco. Temia ver o Brasil enterrar-se e quase proibir meu sonho”, diz o compositor Caetano Veloso, depois da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, no segundo turno da eleição presidencial.
Em 25, 26 e 27 de novembro, Veloso vai regressar a São Paulo com a turnê do álbum “Meu Coco”, no Espaço Unimed. Ainda há ingressos disponíveis para o domingo (27), data extra em que, além mesas e cadeiras, uma pista será aberta em frente ao palco.
Nesta entrevista por e-mail, o compositor comenta a morte da cantora Gal Costa e avalia seu legado na música popular brasileira. “Gal encarnou o tropicalismo. Gil e eu somos os filhos da bossa nova que criaram um movimento que contrasta com o gênero cool. Gal era a bossa nova em pessoa”.

Na passagem dos seus 80 anos, em agosto, Caetano preferiu se concentrar na turnê e não quis dar entrevistas. “Aos 80 tenho de admitir que estou velho”, ele diz.
Neste semestre, o tropicalista lançou um livro com a sua obra completa de cancionista, “Letras” (Companhia das Letras), organizado pelo poeta Eucanaã Ferraz, e participou de uma gravação especial de “Deus Cuida de Mim”, hit do cantor gospel Kleber Lucas. A música será lançada em 1º de dezembro, às 21h, em todas as plataformas digitais. O encontro ganhará também um clipe no YouTube.
Ex-eleitor de Ciro Gomes, do PDT, Caetano discorda da estratégia assumida pelo pedetista de bater mais em Lula do que em Bolsonaro, na última campanha, mas garante que sua simpatia permanece inalterada. “Quando Ciro falou de mim, achei que ele estava querendo manter seu lugar na discussão, não que ele estivesse ressentido comigo. Eu não me chateei nada com ele.”
Com a morte de Gal Costa, a tropicália perdeu a sua maior voz. E você, a sua maior intérprete. Qual o papel de Gal na realização plena do movimento tropicalista?
Gal encarnou o tropicalismo. Gil e eu somos os filhos da bossa nova que criaram um movimento que contrasta com o gênero cool. Gal era a bossa nova em pessoa, o João de saias. Tornou-se a voz e o corpo do tropicalismo ao cantar “Divino Maravilhoso”, uma das poucas parcerias minhas com Gil. Depois, principalmente com o show Fa-Tal, em que foi dirigida por Waly [Salomão], desenvolveu visualidades, movimentos, modos de uso do palco que viraram a cabeça de uma geração. Dali em diante, muita riqueza de diversidades gritantes e nuances sutis. Sem ela não seríamos o que somos.

Aos 42 anos, você fez a canção “O Homem Velho”. Antes disso, aos 37 anos, lançou “Oração ao Tempo”, pedindo “prazer legítimo” e “movimento preciso”. Aos 80 anos, como lhe soam essas reflexões um tanto jovens sobre o tempo e a velhice?
Para uma pessoa da minha geração, fazer 42 anos soava como entrar na velhice. Mas eu já estava sabendo como isso tinha mudado e como ainda mudaria. Tanto que considerei a canção uma espécie de homenagem a meu pai, que tinha morrido, e a Mick Jagger, que tinha 40 anos e agia como se tivesse 17. Aos 80 tenho de admitir que estou velho. Deveria ouvir a canção para saber como a percebo hoje. Mas estou escrevendo no computador e ainda só gosto de ouvir música em toca-discos.
Você retorna a São Paulo com a turnê de “Meu Coco”, agora abrindo uma pista além de mesas, um formato diferente. Seu discurso muitas vezes pende para a defesa do pop, da canção comercial, mas seus shows e álbuns parecem acompanhar mais a vanguarda. Isso fica nítido em “Meu Coco”, que não tem facilidades. Como reconhece essa tensão ou contradição?
Sim, no domingo vai ter público de pé perto do palco, com as mesas mais afastadas e em patamar mais alto. O preço dessa área sem cadeiras é mais acessível, assim plateia jovem ou menos endinheirada pode ver o show bem de perto. Desde o tropicalismo que defendo o pop, o comercial, se o exemplo escolhido me parece produzir informação nova.
Essa informação pode se dar na forma da obra, em seu conteúdo ou em sua posição instigante no mundo da música comercial. Quando faço um disco, gravo uma canção ou planejo um show, eu me me animo mais pela porção vanguardista do que vou fazer. Dessa perspectiva, os modos explicitamente experimentais, as aparências comerciais, ou a combinação dos dois elementos são chamados a formar a peça.
O cenário de Hélio Eichbauer, jogando com linhas do artista alemão Joseph Albers, produz grande impacto visual no show “Meu Coco”. Fala-se pouco da relevância dos cenários no conceito de shows. O que a colaboração de Eichbauer, morto em 2018, acrescentou aos seus espetáculos?
Hélio era um artista refinado, culto, bravo. Eu o admirava e o amava, mas não pensava em chamá-lo para fazer cenários para meus shows. Quando gravei ‘Estrangeiro’, produzido por Arto Lindsay e Peter Scherer, Paulinha [Lavigne] me chamou para ver na TV um cenário que, segundo ela, era igual ao meu disco.
Era um documentário (ou uma reportagem) sobre a montagem d’O Rei da Vela pelo Teatro Oficina, onde aparecia o cenário de Hélio. Fiquei pasmo com a capacidade de percepção dela. Aquilo era exatamente o que devia ser a capa do meu disco – e deveria ser o cenário do show que faria a seguir.
Chamei Hélio, que já estava vivendo com Dedé [sua ex-esposa], e pedi que ele adaptasse a miniatura que ele talvez tivesse feito do cenário antes de erguê-lo sobre um palco (ele costumava fazer isso), e assim foi feito. Só que Hélio achava que, para o show, um outro cenário deveria ser concebido, já que havia como que dois atos no espetáculo.
Ele assistiu a um ensaio e voltou com esse argumento e um segundo cenário, radicalmente diferente do primeiro, que era um desenho primitivista da baía de Guanabara. O cenário novo resumia-se a duas cordas pintadas, uma como um arco-íris em degradê, outra com trechos curtos, regulares em tamanho, pintados de preto e de branco. Essas cordas ficavam na frente do ciclorama e, com a iluminação, pareciam efeitos eletrônicos. Como dava para ver que não eram isso, mostravam-se misteriosos. Desde então, quis que os cenários de todos os meus shows fossem feitos por ele.

Na introdução do livro “Letras”, você diz que em nenhum caso aprovou inteiramente letra ou música quando chegou a completá-las, mas que sente alguma admiração e até encanto ao revisitar canções antigas. Tem algo de influência do poeta João Cabral de Melo Neto nessa exigência de rigor?
Fui tão apaixonado pela poesia de Cabral quando li pela primeira vez, na Bahia, eu ainda no colégio Severino Vieira, que acho que ele me influenciou em tudo. A gente lia poesia. Bandeira, Vinicius, Drummond – e também Lorca e Pessoa.
Me lembro da rua Rio de São Pedro, no convívio com Luiz Tenório, com Dedé, com Pedro Novis. Drummond era o maior. Mas quando li Cabral, cheguei a achar que ele estava acima de Drummond. As rimas toantes, a secura pernambucana, tudo.
O rigor era um exemplo a seguir. Mas nunca o apliquei a minha composição de canções. Só em “segunda instância”, ao tomar consciência de que estava admitindo estarem prontas canções que sempre me pareciam muito imperfeitas. Hoje, acontece de eu ouvir uma música minha e, para minha surpresa, achá-la de todo bonita.

Você se declarava ateu na juventude. Essa posição sofreu mudanças com o tempo, e você vem demonstrando mais simpatia pelo cristianismo. Como situa seu pós-ateísmo, à luz de sua gravação da música gospel “Deus Cuida de Mim”, com Kleber Lucas?
No tropicalismo, ao acolher obras que teria recusado no meu tempo de bossanovista, acolhi também a religiosidade como algo que não podia deixar de levar em conta. Quando cantei “É proibido proibir” no festival da Globo, gritava “Deus está solto!”. Em Londres, e depois que voltei de Londres, desreprimi meu anticristianismo sob as labaredas do pensamento de Nietzsche, que veio com o encanto do encontro com Jorge Mautner.
Mas já faz bastantes anos que Mautner não é mais nitzscheano, sendo que anti-cristão ele nunca foi: Mautner era capaz de louvar Nietzsche e identificar-se com o catolicismo da mãe. Já faz um bom tempo que Nietzsche não me seduz mais.
E, depois de anos celebrando o politeísmo do candomblé e, ao mesmo em sintonia com Mautner e Antonio Cicero, opondo o politeísmo ao judaico-cristianismo (lendo com prazer a frase de Deleuze “O politeísmo é o verdadeiro ateísmo”), voltei a valorizar a tradição cristã, chegando até a caracterizar alguns exageros de baianos candomblecistas com a expressão “fofoca metafísica”.
Hoje ponho num mesmo verso as expressões “católicos de axé e neo-pentecostais” para descrever o povo brasileiro. Sou basicamente um católico de axé, pós-ateu, mas considero de alta relevância o fenômeno evangélico entre nós.
Não está vendo o Brasil quem despreza os pentecostais e neopentecostais, que são maioria entre os pobres e pretos, sobretudo entre pretas pobres, e produzem o gênero musical mais buscado depois do chamado sertanejo.
Kleber Lucas veio até aqui gravar um jingle de campanha política, o “Vou pedir pra você votar”. Ficou maravilhoso. E ele me mostrou “Deus Cuida de Mim”, me ensinando e sugerindo que gravássemos. Gravamos e o resultado ficou emocionante. Choramos ao ouvir pronto.
Como ficou sua simpatia por Ciro Gomes, que manifestou ressentimento com seu apoio a Lula?
Intacta. Gosto de Ciro desde que o conheci como prefeito de Fortaleza. Eu estava com Julinho Bressane (era o festival de cinema do Rio que tinha tido que se dar em Fortaleza) e achei logo que Ciro era um quadro que a grande política brasileira não poderia desperdiçar. Pensei: deverá ser o presidente nordestino do Brasil redemocratizado. Daí veio Collor etc. Você sabe que agora fiz campanha pra Lula.
É que estava claro que a mente coletiva brasileira não despertaria para a hipótese Ciro. Claro que não achei sequer que fosse boa estratégia de campanha Ciro bater às vezes até mais em Lula do que em Bolsonaro. Mas Ciro tinha um programa claro, detalhado, que era ousado com relação ao rentismo fiscal. Ontem Lula fez cair a bolsa e subir o dólar porque falou algo que assusta o mercado financeiro.
O programa de Ciro deve ter contribuído para que a mídia fosse quase silente a respeito de sua ambição de se tornar presidente. Quando Ciro falou de mim, achei que ele estava querendo manter seu lugar na discussão, não que ele estivesse ressentido comigo. Eu não me chateei nada com ele.

Seus sonhos e profecias para o Brasil não são pequenos. O governo de extrema direita de Bolsonaro deu uma sensação de teto para suas utopias? Lula as recupera?
Quando pensava num segundo mandato do atual presidente, não pensava em teto, mas em buraco. Temia ver o Brasil enterrar-se e quase proibir meu sonho. Sempre achei que tenho o dever de sonhar alto a respeito do Brasil para me obrigar a sentir o peso da responsabilidade. Mas esse tipo de sonho está explicado por Fernando Pessoa quando ele saúda d. Sebastião, “quer venha, quer não”.
O que você ouviu e curtiu na música brasileira, em 2022?
Teve muita coisa nesses últimos anos, muitas entraram na letra de “Sem Samba Não Dá”. Especificamente de 2022, não sei. Quando saiu o disco mais novo de Thiago Amud, um que se chama “São”? Acho que foi em 2021. Começo por aí. Amud é o lado com o qual me identifico. Sendo que ele é muito mais dotado musicalmente do que eu. E escreve letras como não sou capaz. O outro lado, o lado pop, tem muita coisa, de Anitta e Ludmilla a Marina Sena. Agora, curto mais ainda em casa, com as músicas de Moreno, Zeca e Tom. Muitas são muito lindas mesmo.
Seu cancioneiro traz sobretudo questões do homem adulto, mas você tem participado do projeto infantil Mundo Bita, com adaptações de suas canções “Paula e Bebeto”, “Odara”, “O Leãozinho” e “Lua de São Jorge” para crianças. “O Leãozinho” já trazia esse potencial. As outras, não. Lhe surpreendeu a possibilidade de cantar para crianças como seu neto Benjamin?
Meu neto mais novo, Benjamim, foi quem motivou minha aproximação do Mundo Bita. Eu nem conhecia, terminei ficando louco por esses pernambucanos (não vivo sem pernambucanos) e seus desenhos.
O que achou do comentário à sua canção “Beleza Pura” em “Que Tal um Samba?”, de Chico Buarque?
Aí é coisa maior. Não só admiro Chico. Acho que ele ocupa uma posição central na realidade da canção brasileira. Meus ídolos foram, são João Gilberto e Jorge Ben. Meu mestre foi, é Gil. O mistério da música e da nossa história foi, é Milton. O professor de história do Rio e de elegância foi, é Paulinho da Viola.
Mas Chico comanda o bonde da nossa geração. Quando quero afirmar meu sonho, canto que “tudo embuarcará na arca de Zumbi e Zabé”. Ouvi-lo roçar minha “Beleza Pura” é glória.
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