ConJur – Rechulski e Pagés: Espírito do legislador e Lei Anticorrupção – Consultor Jurídico

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Por David Rechulski e Ricardo Küpper Pagés
O espírito do legislador deve nortear a atividade do intérprete na delimitação do verdadeiro sentido e amplitude do texto normativo para alcançar-se a almejada estabilidade e segurança jurídica na aplicação da norma, em especial àquelas de caráter sancionatório e punitivo.
Mas não é o que se tem visto na prática. Ao invés de lançarem luz sobre o real âmbito de incidência da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que é o combate aos atos que envolvem corrupção de agentes públicos, os órgãos de controle têm conferido uma interpretação elástica à lei, criando um tensionamento hermenêutico que rompe com sua origem legislativa criadora.
Uma empresa brasileira foi condenada pela Controladoria-Geral da União com fundamento no artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção porque teria supostamente imposto óbice à fiscalização de autarquia federal mediante omissão de informações e apresentação de documento ideologicamente falso. Houve reconhecimento de que o caso não versava nem envolvera ato de corrupção em face de agente público, mas, ainda assim, resolveu-se pela aplicação (equivocada) da lei ao caso concreto, sob o argumento de que ela açambarcaria atos outros, sempre que dificultassem atividades de fiscalização e investigação de órgãos, entidades e agentes públicos.
Tal interpretação equivaleria a que se pudesse considerar, por exemplo, que toda e qualquer conduta que viesse a embaraçar a fiscalização minerária, ambiental, tributária ou trabalhista, por si mesma, já seria suficiente para restar caracterizada como ato lesivo tipificado na Lei Anticorrupção, o que, por evidente, não encontra mínima ressonância na gênese da aludida lei.
A Lei Anticorrupção nasce do objetivo de atender a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil quando da ratificação da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Para dar concretude ao compromisso previsto nessa convenção, que recomendava aos países signatários a introdução em seu ordenamento jurídico de medidas que responsabilizassem pessoas jurídicas pela corrupção de funcionário público estrangeiro, foi apresentado anteprojeto de lei, com o intento de disciplinar no Brasil a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração pública nacional e estrangeira.
O propósito do anteprojeto está claro na exposição de motivos: "suprir uma lacuna existente no ordenamento jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos".
Convertida no Projeto de Lei nº 6.826/2010, a proposta recebeu parecer do deputado federal Carlos Zarattini na Câmara dos Deputados. registrando textualmente que o propósito da lei seria o de introduzir norma específica — até então ausente — voltada à responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas "pelos atos de corrupção descritos nos acordos internacionais, posto que os atos de corrupção ativa e passiva estabelecidos como crime em nosso direito penal têm o poder de atingir apenas as pessoas naturais".
Essa vinculação com a finalidade de combater atos de corrupção também está nas justificativas do relator para suprimir inciso do rol de atos lesivos original que tipificava a conduta de "deixar de pagar encargos trabalhistas ou previdenciários, decorrentes da execução de contrato celebrado com a administração pública", eis que tratava-se de "matéria que não se enquadra nos objetivos do projeto de lei, posto que visa punir empresas por sonegação fiscal, e não pela prática de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira caracterizada por corrupção, ou mais especificamente suborno".
Portanto, o espírito do legislador para a Lei Anticorrupção foi o de criar novo mecanismo de combate à corrupção de agentes públicos por meio da responsabilização objetiva das pessoas jurídicas infratoras. Tentar legitimar o intérprete, por meio de uma exegese ampliativa que inclua condutas outras distintas das de dificultar atividade de fiscalização ou investigação que tenham por objeto um ato de corrupção ou que busquem embaraçá-las por meio da corrupção, é violar frontalmente a razão criadora da lei. E corre-se, com isso, o risco de punir de forma desvirtuada, a transmudar o espírito do legislador em assombração.
 é advogado fundador e sócio titular do escritório David Rechulski Advogados, especializado em Direito Penal Empresarial e Público
Ricardo Küpper Pagés é especialista em Direito Penal Econômico pela FGV, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e graduado em Direito pela USP.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2022, 6h32
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