Análise: ao moldar debate em torno de valores, bolsonarismo muda DNA da política e sai mais forte – UOL Confere

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01/11/2022 10h51
A eleição presidencial no Brasil terminou com a vitória de Lula, mas o bolsonarismo também saiu fortalecido das urnas. A votação de Jair Bolsonaro cresceu em todo o país, em relação a 2018 e ao primeiro turno de 2022. 
A eleição presidencial no Brasil terminou com a vitória de Lula, mas o bolsonarismo também saiu fortalecido das urnas. A votação de Jair Bolsonaro cresceu em todo o país, em relação a 2018 e ao primeiro turno de 2022. 
“Bolsonaro mudou a própria maneira de se pensar e fazer política no Brasil”, analisa o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV de São Paulo. “A partir do momento em que você molda o debate público em torno de valores e identidades profundas, você tira a política do campo da racionalidade.”

Para Casarões, o presidente eleito, habilidoso negociador político, tem a chance de iniciar um processo de reconciliação no país – mas que “certamente não terminará em 2026”, salienta o cientista político, doutor pela USP e pesquisador sobre a ascensão da extrema direita no Brasil. “Talvez leve uma geração inteira para que essa reconciliação seja finalizada.”
Confira os principais trechos da entrevista, realizada na segunda-feira (31) após a eleição:
RFI: Que demonstração de força o presidente Jair Bolsonaro conseguiu dar nesta eleição, ao se aproximar tanto de vencer?
A primeira coisa a pontuar é que essa eleição, apesar de ter sido a mais concorrida da história da Nova República, não foi a primeira a ter um resultado muito próximo. Já teve em 2014 e em 1989, dois momentos em que a corrida foi muito, muito próxima também. Acho que a diferença agora é que a polarização não acontece mais só no campo político partidário, das divergências políticas menores ou programáticas. Essa polarização está profundamente radicalizada, sobretudo do lado da direita, e a radicalização se constrói em cima de diferenças valorativas muito profundas.
Então, um dos grandes legados do Bolsonaro no poder do movimento que o levou ao poder em 2018 e que veio se construindo também até 2022, é uma transformação profunda na própria identidade fundamental dos brasileiros. Eu sinto que muita gente votou no Bolsonaro porque acredita naquele pacote de valores que ele oferece à população. E vejo que tem muito pouco de substantivo no que ele diz, desde o primeiro turno. É muito vazio, muito pouco propositivo. Mas o Bolsonaro representa, ou pelo menos diz representar valores conservadores, cristãos, a família tradicional, o combate à chamada ideologia de gênero.
RFI: Qual o futuro do bolsonarismo sem Bolsonaro na presidência?
No campo normativo, Bolsonaro realmente conseguiu construir um senso de maioria nas pessoas. E eu diria que esse é o principal legado que o bolsonarismo deixa ao Brasil, mesmo diante da mudança do chefe do Executivo e que tende a permanecer, porque, afinal de contas, foi uma mudança na própria maneira de se pensar e fazer política no Brasil. Até então, temas como aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo pouco apareciam no debate público e as pessoas estavam efetivamente preocupadas com políticas de educação, de saúde, de habitação, saneamento básico.
A partir do momento em que você molda o debate público em torno de valores e identidades profundas, você tira a política do campo da racionalidade e a coloca no campo de uma disputa em que o desacordo, a discordância, não é vista como uma mera possibilidade de conversar. Ela é vista como um inimigo, se torna uma ideia que fere a sua própria existência, de alguma maneira.
Isso é muito problemático na medida em que, se a gente olha para os últimos quatro anos, o que menos se teve foi diálogo. Houve muitos embates, mas pouco debate. Isso tende a continuar, porque a própria forma de se fazer política no Brasil, infelizmente, caminha por esse lado.
RFI: E como Lula poderá dialogar com esses quase 50% da população que votou em Bolsonaro, a maioria deles com uma forte rejeição ao petista?
Eu acho que os sinais que o Lula emitiu ao longo da campanha foram muito importantes no sentido contrário, para dizer que ele estava interessado em formar uma frente ampla, democrática, a conversar com forças políticas que não são só de esquerda, são de centro, são de direita também. Mas, infelizmente, praticamente metade do Brasil ainda acredita que essa democracia plural e dialogada não é o caminho para o país e que ele deveria, portanto, se fixar nos grandes valores profundos, que supostamente regem a sociedade brasileira.
Eu acho que não regem. O Bolsonaro teve 58 milhões de votos, o que é realmente impressionante. Mas ao mesmo tempo, ele não representa a maioria dos 215 milhões de brasileiros. Então, o bolsonarismo tende a permanecer justamente em cima dessas pessoas que acreditam que, em última análise, a política é sobre valores e não sobre propostas.
RFI: Grande parte deles eleitores evoca, em primeiro lugar, a corrupção no PT como o principal fator de rejeição a Lula. Mas o tema não foi evocado pelo petista em nenhum dos seus discursos no domingo. Não seria importante para sinalizar uma aproximação com o eleitor bolsonarista?
Eu pessoalmente não sei se a corrupção é um grande tema para essas pessoas ou se elas acabaram instrumentalizando a corrupção para justificar o seu antipetismo e o seu repúdio ao próprio presidente Lula. Acho que são coisas diferentes. A corrupção tem um papel muito importante na construção da história recente do Brasil, mas ela não é a linha de frente do debate político. Em 2018, ela foi porque a gente estava vivendo o rescaldo de dois processos que estavam acontecendo nos anos anteriores: a operação Lava Jato, iniciada em 2014, por um lado, e o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, e que foi justificado em larga medida pela corrupção ou suposta alegada corrupção do governo dela contra ela. Aliás, não houve nenhuma grande acusação, mas era o famoso conjunto da obra que se falava à época.
De fato, Dilma fez uma política econômica muito ruim. Mas as pessoas, no fundo, estavam buscando um pretexto para justificar o processo de impeachment, que envolve necessariamente um crime de responsabilidade – que até hoje não está claro se houve de fato.
Então, a corrupção vem muito mais sendo instrumentalizada e mobilizada pelo antipetismo, até para justificar a permanência desse sentimento de ressentimento, de ódio, de medo. Como aquela história de que se o Lula ganhasse, o Brasil viraria uma nova Venezuela ou uma nova Nicarágua. Mas, no fim das contas, veja que o mesmo padrão usado para julgar e acusar o Lula não foram usados para questionar nenhum esquema de corrupção em que o governo Bolsonaro se envolveu ao longo desses quatro anos.
Então, a palavra corrupção tem um sentido ali muito mais justificativa do antipetismo do que propriamente de uma agenda concreta pela qual as pessoas estão mobilizadas. O antipetismo tem esse elemento da corrupção, mas a grande pauta do antipetismo, sobretudo que se transformou no bolsonarismo desses últimos anos é a dimensão de valores.
RFI: E neste aspecto, petistas e bolsonaristas podem chegar a um compromisso, tendo valores tão profundamente distintos?
Vai ser muito difícil de se chegar a concessões ou a compromissos sobre valores, porque eles são, em certo sentido, inegociáveis. Porém, o presidente Lula tem uma virtude política, que muita gente vê como um defeito, mas eu acho como virtude importante, que é saber negociar e saber fazer pactos e compromissos com diferentes forças políticas. Por muito tempo, isso acabou gerando problemas também. Mas a capacidade que ele teve de colocar pessoas de variados perfis políticos, na mesma campanha, no mesmo projeto, de Henrique Meirelles a Marina Silva, de Simone Tebet a Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin.
Eu acho que isso é um sintoma muito claro de uma outra proposta de governo, que não é um governo de esquerda propriamente dito, mas é um governo de unidade nacional, no momento em que as forças políticas viram que o que estava em jogo era a democracia. Acho que o Lula tem capacidade política de trazer diferentes grupos para dentro do governo e tentar criar uma grande frente de conciliação. Essa experiência já existiu noutros lugares do mundo, como a Geringonça em Portugal, e já existiu no Brasil em algum momento, no início da Nova República.
RFI: Mas e os outros quase 50% que, até o momento, recusaram essa ideia de frente ampla?
Eu não tenho dúvida de que o Lula tentará muita coisa, ainda mais porque parte desses brasileiros estão ainda movidos pelo ressentimento, por uma certa insegurança, por medos que o Lula, ao chegar no poder, talvez consiga minimizar. É um processo de construção que demora muito tempo, que vai depender de muitas variáveis. Mas eu tenho confiança de que, pelo menos diante da proposta oferecida pela candidatura do agora presidente eleito Lula, existe uma possibilidade realmente de um início de uma reconciliação nacional que certamente não terminará em 2026, mas talvez leve uma geração inteira para que seja finalizada.
RFI: A atuação do Congresso poderá, de certa forma, mediar esse diálogo? Ou seja, na medida em que Lula tiver habilidade para atrair o Centrão, a poeira tende a baixar?
Eu diria que sim. A primeira grande figura política no Brasil a reconhecer a vitória do Lula logo que ele estava matematicamente eleito, com 90 e poucos por cento das urnas apuradas, foi o Arthur Lira, presidente da Câmara, que é um aliado de primeira hora do presidente Bolsonaro. Aquilo já foi um sinal de que talvez os Progressistas, o PP, seja um partido que vá abrir canais de diálogo com o governo Lula – como, aliás, já abriu lá no começo dos anos 2000.
Então eu vejo que existe um senso muito profundo de sobrevivência política e sobrevivência político-eleitoral por parte dessas figuras que vão dobrando a sua própria ideologia e conseguem se adaptar a qualquer governo que chegue ao poder no Brasil. Mas eu acho importante também pontuar o seguinte: nenhum presidente tem maioria no Congresso. É muito raro você encontrar um presidente da República que já chega após as eleições, com uma coalizão consolidada no Congresso.
O processo de fazer uma coalizão majoritária é uma construção que, no caso de um país com um sistema partidário superfragmentado como o nosso, é difícil, mas as próprias regras têm sido adaptadas como forma de diminuir aqueles pequenos partidos que tinham uma ou duas cadeiras na Câmara ou no Senado. Isso tem mudado um pouco, o que talvez facilite o trabalho do Lula em comparação ao que se passou com a Dilma em 2011, com uma coalizão de 13 ou 14 partidos. Eu acho que o Lula vai conseguir navegar por essas forças partidárias de maneira razoavelmente competente.
RFI: Existe o agravante de que a próxima legislatura tem um perfil ainda mais conservador do que o atual. O que isso muda, para Lula?
A cada ciclo eleitoral, a gente fala: ‘elegemos o Congresso mais conservador da história do Brasil’. Mas esse que está aí, ele é mais conservador num sentido duplo: ele tem muitas figuras de direita e de centro direita, então existe uma inclinação conservadora natural a essa composição da legislatura. E também pela primeira vez, a gente tem uma direita superideologizada, que está ocupando um espaço importante.
O Bolsonaro conseguiu eleger no primeiro turno nada menos que 99 parlamentares para a Câmara pelo seu partido, o PL. A gente não sabe exatamente quantos desses 99 são bolsonaristas ideológicos ou ‘bolsonaristas raiz’, ou se fazem parte daquele Centrão um pouco mais maleável, que pode, inclusive bandear para um eventual governo Lula.
De todo modo, a gente vê que uma direita predominantemente fisiológica do passado está se tornando uma direita predominantemente ideológica, o que torna a vida do presidente Lula muito mais difícil assim que ele tomar posse, porque ele vai ter que lidar com pautas e com demandas sobre questões de valores, por exemplo, das quais o Lula dificilmente vai abrir mão. Questões de minorias, de direitos humanos, coisas que o Lula inclusive sinalizou bastante no seu discurso de aceitação na noite de domingo.
RF: Por fim, como devemos interpretar o silêncio de Bolsonaro sobre o resultado das eleições? Ele é o primeiro chefe de Estado brasileiro a não se pronunciar imediatamente depois de uma eleição presidencial. Não é exatamente uma surpresa, mas é preocupante?
Ultrapassamos 24 horas sem um pronunciamento oficial do presidente, nem sequer um tweet, que é comum também a Bolsonaro. Isso eu acho que revela o dilema fundamental que o Bolsonaro vai ter que enfrentar a partir de agora, porque ele sai dessa eleição grande. É um equívoco achar que ele perdeu o sentido profundo. Ele não foi humilhado nessa eleição, muito antes, ao contrário, ele sai com 58 milhões de votos. O Lula teve 3 milhões de votos a mais do que no primeiro turno. Bolsonaro teve 7 milhões de votos a mais do que no primeiro turno. Então, o antipetismo e o bolsonarismo são forças que ainda estão muito presentes na política nacional e que empurraram o presidente Bolsonaro a uma quase reeleição.
A maneira como Bolsonaro se valeu de todos os mecanismos legais, ilegais, paralegais para poder se reeleger, foi realmente inédito na história. Isso talvez nos coloque até diante de uma reflexão – não agora – se a gente não deve mudar a lógica da reeleição no país. Mas qual é o dilema que o Bolsonaro enfrenta agora? Por um lado, ele sai grande, mais votado do que da primeira vez em que ele foi eleito. Portanto, eu fico pensando se valeria a pena para o presidente Bolsonaro tentar qualquer tipo de ruptura democrática a essa altura do campeonato, em que ele já saiu derrotado e vai ter muito poucos argumentos para contestar as eleições.
Ao se manter em silêncio e ao tentar aceitar o resultado, ainda que não reconhecendo publicamente, ele aos poucos se credencia para voltar à vida política de maneira plena em 2026. Eu acho que esse é o ponto. Se ele não rompe agora de maneira escancarada com a democracia, ele é um candidato fortíssimo e natural para 2026. É claro que o jogo político muda muito rapidamente. Daqui a quatro anos, sabe-se lá o que vai estar acontecendo no Brasil.
RFI: Ele poderá voltar, portanto, com força em 2026?
Diante de qualquer pequena falha do presidente Lula, diante de uma oposição muito aguerrida e de uma retórica virulenta que o bolsonarismo estimula, eu acho que o Bolsonaro tem muitas chances de voltar à presidência, ou, pelo menos, de considerar voltar à presidência em 2026. O grande problema, e aí é a outra parte do dilema, é que o bolsonarismo é um movimento de essência autoritária. Ele opera sob uma lógica de permanente polarização e radicalização. E a democracia não se dá bem com o bolsonarismo, os bolsonaristas.
Eles querem o tempo inteiro romper, testar os limites da democracia. O que significa que, se por um lado ele fica calado, ele autoriza ou ele deixa margem para que seus apoiadores possam tentar alguma coisa contra a democracia. Como a gente já está vendo manifestações de caminhoneiros, paralisação de rodovias, pessoas em jejum e oração permanente para ver se Jesus Cristo volta à Terra e salva o Brasil do Lula.
Então, o Bolsonaro vai ter que ter essa consciência: por um lado, ele precisa da democracia para poder voltar ao poder, e por outro, se ele desmobiliza a sua base bastante ampla, que não são 58 milhões de bolsonaristas raiz, mas existe uma base considerável dentro disso, ele perde grande parte do capital político que acumulou ao longo dos últimos tempos e abre espaço para que uma centro direita, uma direita menos radical, chegue ao poder no lugar dele, com Sérgio Moro, com João Dória. É um dilema difícil de equacionar.
Eu não acho que o Bolsonaro tenha respostas prontas para isso. Acho que ele está esperando cair a ficha do que aconteceu na noite de domingo. Mas a sensação que eu tenho é que os próximos dias serão muito importantes para a gente entender que bolsonarismo será esse o processo de transição: se vai ser um bolsonarismo que aceita o resultado e que está disposto a jogar o jogo, ou um bolsonarismo que vai tentar radicalizar até o limite que pode significar uma tentativa de ruptura democrática.
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Carlos Juliano Barros

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