O estádio de futebol em 2050. Parte I: Distopia – Ludopédio

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O texto a seguir foi extraído do artigo “Le football en 2050 : le stade d’après” publicado primeiramente pela PUG Collection “Le vírus de la recherche” durante o período mais crítico da pandemia de COVID-19, o ano de 2020. Em 2022 ele foi traduzido para “The post-pandemic football stadium in 2050” e será brevemente publicado como a conclusão do livro Project Stadium Book, coll. Football Research in an Enlarged Europe Series.
A publicação original foi escrita por quatro pesquisadores: Jean-Michel Roux, do Instituto de Urbanismo e Laboratório Pacte da Universidade Grenoble Alpes, Cristiane Rose de S. Duarte, da FAU e Laboratório Arquitetura Subjetividade e Cultura da UFRJ, Elson M. Pereira, do Instituto de Urbanismo e Laboratório Cidade e Sociedade da UFSC e por mim, Natália Rodrigues de Melo, do curso de Educação Física e Laboratório CEDETE sobre Estudos de Desenvolvimento do Território da Universidade de Orleans.
Trata-se de uma reflexão a partir de duas prospectivas – distopia e utopia – para imaginar os estádios de futebol e as cidades ao seu redor em 2050, trinta anos após a primeira onda da pandemia da COVID-19. A visão distópica leva a prever o colapso da atual economia do esporte e ver o surgimento de um novo modelo dividido em três mundos distintos com baixa permeabilidade entre si: ligas fechadas cortadas do público, campeonatos nacionais com um público altamente controlado, e torneios clandestinos no espaço urbano que não os estádios. Mas como nosso futuro também pode ter surpresas positivas, o texto também apresenta um cenário utópico segundo o qual tanto os movimentos sociais de baixo para cima como os organismos multilaterais de cima para baixo (como a UNESCO) aumentam a conscientização dos direitos das pessoas à recuperação do esporte e dos estádios como serviços públicos. No mundo utópico que se desdobra, os estádios são planejados e administrados como um bem comum para as populações, desde sua construção até sua vida após a morte.
Desde os trabalhos seminais de Platão (315 a.C), Santo Agostinho (413-426) ou Thomas More (1516), imaginar a cidade como uma sociedade ideal e situá-la num futuro distante ou mundo fictício sempre foi um meio de se envolver com um projeto. As narrativas destes grandes pensadores deram origem a um gênero literário, a utopia, e seu oposto, a distopia. É uma postura orientada para a ação que procura delinear as maiores ambições para a sociedade com o objetivo de alcançar a melhor materialização possível do projeto descrito. Por definição, uma utopia é uma visão que oferece uma crítica bem fundamentada de um estado social considerado inaceitável, às vezes sancionado por um apocalipse destrutivo, antes de responder ponto por ponto à crítica inicial. Ao fazê-lo, ela formula uma resposta por meio de uma nova organização, seja ela arquitetônica, espacial, política, etc. e de novas narrativas.
Imaginar que a crise sanitária da pandemia da COVID-19 é um apocalipse, significando tanto uma catástrofe como uma revelação, que levará a uma mudança de nossa sociedade, e que dará origem ou a uma reforma preparando um mundo melhor ou a um agravamento das disfunções já existentes, é nada menos que uma tradição utópica. E este texte segue esta tradição, ao propor, primeiro, uma visão distópica escrita em abril de 2020, durante o fechamento completo e antes do reinício dos jogos de futebol à porta fechada, seguida de uma visão utópica escrita em junho de 2020.
Trinta anos depois, em 2050, a nova economia do futebol – não muito diferente da economia de outros grandes esportes coletivos globais como basquete, rúgbi, futebol americano, beisebol, hóquei no gelo e críquete – está organizada em três mundos distintos com baixa permeabilidade entre si: ligas fechadas, ‘campeonatos nacionais’ e competições amadoras semiclandestinas.
Muito rapidamente, os clubes profissionais mais ricos da Europa – sobretudo os “suspeitos” que há anos já ameaçavam lançar uma “SuperLiga” – se separaram de suas ligas e federações nacionais e se reconstituíram como franquias. Eles foram convidados a criarem uma competição, uma liga fechada, eliminando a incerteza esportiva e financeira do rebaixamento. A UEFA e a FIFA falharam em impedir que o fizessem, perdendo assim seu monopólio na organização de competições internacionais. Para o grande pesar da Suíça e dos países envolvidos nesta chamada “Liga das Estrelas”, o consórcio de gestão do projeto agora está sediado em um paraíso fiscal do Caribe. Uma liga semelhante existe na América do Sul, composta pelas franquias de um punhado de metrópoles ou megacidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Florianópolis (Brasil), Buenos Aires (Argentina), Santiago (Chile), e Montevidéu (Uruguai).
As partidas com portões fechados tornaram-se a regra. A economia de uma liga depende inteiramente dos direitos de transmissão vendidos a plataformas mundiais, bem como de mercadorias de todos os tipos. Como resultado, os estádios se tornaram obsoletos e as franquias os abandonaram para os recém-criados “estádios-estúdio”. Este novo tipo de instalações é totalmente fechado e coberto. Eles não têm arquibancadas, mas apenas grandes camarotes corporativos alugados a patrocinadores e parceiros. Estes camarotes são separados uns dos outros e incluem, de acordo com o nível de serviço escolhido, salas privadas, varandas externas para visualização ao vivo, bares, restaurantes, salas de videogame, cinemas, spas, salas de oração ou boates. As isenções das restrições legais que proíbem “a reunião de mais de 1000 pessoas em espaços públicos e estabelecimentos de acesso público”, permitem que os clubes considerem o camarote como unidade de espectadores, autorizando os “estádios-estúdio” a irem muito além de 10.000 “convidados VIP” em certas ocasiões.
No lado oposto dos camarotes corporativos, uma grande tela permite projetar imagens de multidões de futebol. Durante os primeiros anos dos ‘estádios-estúdio’, as emissoras utilizaram principalmente arquivos existentes de grandes jogos anteriores, mas com a mudança das cores das camisas, emblemas e nomes das franquias, não tiveram outra escolha senão produzir imagens sintéticas, animadas por computador, dos torcedores. Estas eram acompanhadas por ruídos de fundo lembrando os ambientes animados anteriormente criados pelas Organizadas e cobrindo as vozes dos jogadores e treinadores. Um número crescente de jovens torcedores de futebol não tem nenhuma lembrança de ter visto seu time em um verdadeiro estádio e sequer podem zombar da nostalgia de seus pais pela ambiência de uma era passada (Rodrigues, 2018; Roux, 2014). Como você pode se arrepender de algo que nunca conheceu?
Os antigos campeonatos nacionais ainda existem, mas eles são apenas uma sombra de si mesmos. Na França, resta apenas uma divisão. No Brasil, os campeonatos regionais nos diferentes estados sobreviveram, apesar da perda das grandes equipes das franquias. A maior parte dos clubes das ligas inferiores ou de cidades pequenas simplesmente desapareceram. Oficialmente, as restantes competições ainda são campeonatos baseados em um sistema de rebaixamento e promoção com ligas regionais amadoras, mas os play-offs geralmente deixam pouca esperança para as equipes de baixo.
Estes campeonatos lutam para encontrar um equilíbrio. São transmitidos na televisão pública ou em pequenas redes a cabo, mas isso não lhes permite realizar receitas suficientes para reter os melhores jogadores, todos eles esperando ser convocados por uma franquia da liga fechada, sem qualquer indenização para o clube de origem. Estes últimos são sustentados por alguns raros patrocinadores locais, com um punhado de parceiros corporativos nacionais para os clubes mais proeminentes. A capacidade do estádio é limitada pela lei, que considera que cada arquibancada é um estabelecimento de acesso público por si só, permitindo um máximo de 1000 espectadores por cada um. As Gerais têm uma posição segura, mas o público está sob rígido controle com cada pessoa sendo obrigada a respeitar uma distância mínima de 1,5 m de seus vizinhos. Linhas brancas no chão indicam o espaço atribuído a cada torcedor. O uso da máscara é suspenso e até mesmo proibido, a fim de garantir o bom funcionamento dos sistemas de reconhecimento facial. Este último permite identificar em tempo real qualquer “proximidade física ilegal” e envia um alerta por SMS no primeiro mau comportamento observável. Caso isso ocorra, o passe do estádio, que é obrigatório para assistir a cada partida, é desativado por um período definido pelas autoridades locais. O setor principal, reservado aos patrocinadores, corporações e mídia, se beneficia de uma isenção. Os assentos estão a uma distância de 50 cm, o que se torna possível pela exigência de usar uma máscara facial (embora seja óbvio que esta obrigação dificilmente é respeitada).
Os antigos estádios da ‘Liga das Estrelas’ foram todos ‘entregues’ às autoridades locais, encarregadas de administrar esses “terrenos baldios” esportivos ou de proceder à sua demolição. Em Paris, o Stade de France foi objeto de uma retumbante batalha legal entre o estado francês e as principais empresas da indústria da construção, acionistas do consórcio que acabara de renovar seu contrato de gerenciamento de instalações por 25 anos em troca de um número garantido de concertos e partidas internacionais de futebol e rúgbi por ano. Infelizmente para eles, todos os jogos internacionais são agora disputados a portas fechadas, nos estádios dos estádios administrados pelas franquias.
No Brasil, certos estádios só sobreviveram graças ao seu papel como hospitais de campo durante as ondas da pandemia. Agora são administrados pelo serviço de saúde pública, pelo exército ou por clínicas privadas. Seu enorme espaço interno transformou estes “estádios-hospitais” em centros de acolhida e triagem de doentes durante os picos da pandemia. Os campeonatos são suspensos por longas semanas, enquanto os pacientes mais afetados da região podem ser hospitalizados nos blocos de emergência estabelecidos abaixo das arquibancadas. Outros pacientes são colocados em quarentena nos acampamentos logo abaixo dos blocos. Alguns estádios mais centrais foram comprados, juntamente com seu clube, por grandes empresas privadas de saúde, que preservaram apenas uma arquibancada, substituindo as outras por instalações hospitalares (salas de cirurgia e leitos), mas também condomínios de luxo para criar receitas extras.
Alguns torcedores simplesmente se afastaram das ligas fechadas e dos campeonatos nacionais restantes. Eles seguem os campeonatos amadores semiclandestinos que florescem nas várzeas das cidades. Chamados de clandés na França, clandestinos na Itália, Espanha ou Brasil , ou ‘flashmob football’ na maioria dos países não latinos, eles não pertencem a nenhuma liga ou federação oficial e, como “ratos”, desaparecem tão rapidamente quanto surgem. Os jogos de cinco ou sete jogadores – sem arbitragem – são estabelecidos por equipes através de mensagens criptografadas, que fixam o dia e a hora dos jogos. Eles são frequentemente jogados em praias ou em parques públicos – um retorno às raízes, até certo ponto – mas também em estacionamentos de supermercados ou mesmo postos de gasolina de autoestrada para desafios interurbanos. As dimensões do campo não são padronizadas, mas simplesmente impostas pelo espaço escolhido para sediar a partida. Os terrenos vazios, de terra batida ou concreto são os mais frequentemente utilizados do que os gramados.
Os jogos do campeonato são realizados sem respeitar um calendário regular seguindo uma ordem arbitrária. O campeonato termina quando todas as equipes tiverem jogado umas contra as outras pelo menos uma vez. Nem todos os jogos são chegam a terminar, pois as batidas policiais por crimes contra as medidas sanitárias e restrições de aglomerações ocorrem com frequência (exceto para as equipes formadas pelos próprios policiais …). Não é raro ver jogadores profissionais dos campeonatos nacionais se juntarem disfarçados à equipe de seu antigo bairro. No Brasil, eles são apelidados de “pó de arroz”, em memória dos primeiros jogadores afro-brasileiros admitidos nas equipes só de brancos do Rio (mais especificamente na equipe do Fluminense).
O dinheiro começou a circular rapidamente entre alguns desses campeonatos, provocando o surgimento de uma nova forma de “amadorismo marrom”. Isto é compreensível, pois os grandes jogos ou clássicos de bairro atraem multidões significativas. As apostas se tornaram onipresentes, muitas vezes controladas por organizações que anteriormente já gerenciavam o jogo do bicho . Certas empresas de apostas, assim como as grandes franquias do futebol começam a se interessar pelo Não há forma de saber para onde se dirige a atual economia do futebol a três níveis. No entanto, parece ser definitivamente bastante frágil.
ROUX, Jean-Michel; Melo, Natália Rodrigues de; DUARTE, Cristiane Rose de Siqueira; PEREIRA, Elson Manoel. Le stade d’après. In: Ségolène Marbach, Alain Faure, Catherine Revil. (Org.). PUG COLLECTION : LE VIRUS DE LA RECHERCHE. 1ed. Fontaine: PUG, 2020, v. , p. 5-9.
Melo, Natália Rodrigues de. O Grande Palco Futebolístico. Análise da ambiência do estádio Maracanã pós reforma para a copa de 2014. Tese (Doutorado) – UFRJ/PROARQ/Programa de Pós-graduação em Arquitetura, 2018.
More, Thomas. L’Utopie. Éditions sociales-Messidor, 1966 (written in 1516).
Plato. The Republic. trans. Raymond Larson, Wheeling, Illinois: Harlan Davidson, 1979 (written around 360BC).
Roux, Jean-Michel. L’ambiances des stades. Urbanisme, n°393, special issue ‘Grands stades en quête d’urbanité’, 2014, p. 60-62.
Saint Augustine. La cité de Dieu. (three volumes), edited by Louis Moreau et Jean-Claude Eslin, Paris: Point, 1994.
Substantivo Masculino
01. Futebol
02. Jogo que se joga com os pés
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