O STF e o alcance da jurisdição constitucional – USP

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Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

Ao tumultuarem novamente o ambiente institucional, desta vez pedindo ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos de mais de 250 mil urnas e a instauração de uma CPI para “devolver o equilíbrio entre os Poderes”, sob a justificativa de que o Judiciário teria “usurpado funções do Legislativo, o presidente Jair Bolsonaro, o presidente de seu partido e vários parlamentares a eles ligados acabaram realimentando uma antiga discussão política e jurídica.
Trata-se da questão relativa ao alcance que a jurisdição constitucional deve ter no âmbito de um regime democrático. Ainda que seja um poder técnico e especializado, em que medida o Judiciário se sobrepõe aos demais poderes, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem a última palavra em matéria de controle da constitucionalidade das leis?
Como a arquitetura constitucional do País consagrou a tripartição dos poderes, adotando o mecanismo de freios e contrapesos inspirado no modelo dos federalistas americanos, em princípio as decisões do STF, uma vez tomadas após o esgotamento de todos os recursos judiciais previstos pela ordem jurídica, têm de ser cumpridas. Para constitucionalistas de formação liberal, como Afonso Arinos e Victor Nunes Leal, o modelo de separação de poderes e do papel de uma corte suprema evita tentativas de coação de um poder sobre o outro. Assim, uma corte suprema deteria o “monopólio da última palavra”, de tal modo que seu poder não adviria do povo, mas, sim, do fato de ser a “guardiã” da Constituição e do modo como seus ministros a interpretam. Esta seria a regra do jogo democrático, dizia Arinos. Nesse modelo, o STF “é árbitro dos Poderes do Estado na delimitação das respectivas competências”, afirmava Victor Nunes.
Já constitucionalistas das novas gerações, como Miguel Gualano de Godoy e Roberto Dalledone Machado Filho, lembram que a democracia implica uma dimensão crítica na esfera pública, vista como uma rede de comunicação de conteúdos, tomadas de posição e de formação da opinião pública como força política, que é decisiva para o processo deliberativo. Por isso, a legitimidade decisória de uma corte suprema dependeria do modo como ela interage com os demais poderes e dos argumentos que fundamentam suas deliberações. Assim, ainda que formalmente o STF tenha a última palavra, a legitimidade do exercício de sua autoridade dependeria de maior transparência e de diálogos tanto com as instituições quanto com a própria sociedade. Desse modo, em vez de precisar apelar para a ideia de supremacia, a corte poderia exercer seu papel de modo mais dialógico, interativo, educativo e pedagógico.
Nas últimas décadas foram adotadas algumas medidas para tornar as decisões do Judiciário sobre temas controversos mais representativas e efetivas. Uma delas são as audiências públicas, que permitem ao STF apreciar os pontos de vista dos diferentes setores sociais. Outra medida é a figura jurídica do amicus curiae – uma modalidade de intervenção de terceiros em processos cujo tema seja relevante para a sociedade. Com isso, não proponentes de uma ação judicial – como pessoas físicas e jurídicas, órgãos, instituições ou associações – podem pedir à Justiça seu ingresso no caso. Previsto pela Lei 9.868/99, que autorizou a participação de terceiros requerentes nas ações diretas de inconstitucionalidade, e depois pelo artigo 138 do Código de Processo Civil em vigor desde 2016, o instituto do amicus curiae permite que os terceiros não propositores de uma ação tragam informações importantes para o julgamento.
Para que esse diálogo institucional funcione, porém, os membros do STF têm de agir como um órgão colegiado e não como “11 soberanos incomunicáveis” ou como um “arquipélago de 11 ilhas”, para lembrar metáforas cunhadas pelo ex-ministro Sepúlveda Pertence. Quando um ministro concede liberdade para parlamentares de grupos políticos que viabilizaram sua ascensão ao cargo; um segundo ministro concede liminar suspendendo políticas públicas; um terceiro ministro obriga que o Legislativo vote ou não um determinado projeto; e um quarto ministro pede, por mais de três anos, vista de ações diretas de inconstitucionalidade contra o projeto que cria a figura jurídica dos juízes de garantias – a corte só tende a se enfraquecer em termos institucionais. Além disso, em vez de se comportarem como meros ouvintes nas audiências públicas e de fazerem ouvidos moucos para o que dizem os amici curiae, os ministros precisam abrir mão da tradicional postura de superioridade interpretativa, por um lado, e da imodéstia e da arrogância da toga, por outro.
Evidentemente, a ideia de que legitimidade decisória do STF depende do modo como ela interage com os demais poderes não implica que seus ministros renunciem a seu poder e à sua autoridade. Mas é preciso lembrar que a discussão sobre o alcance da jurisdição constitucional e sobre a proposta de adoção de uma postura mais dialógica por parte de uma corte suprema não é apenas acadêmica. Neste momento de profunda desordem institucional em que o País se encontra, em decorrência de um governo que passou os quatro anos de mandato afrontando a cúpula do Judiciário, essa discussão também tem um caráter essencialmente político.
Nestes quatro anos, a maioria dos ministros do STF se comportou com coragem, preservando a ordem constitucional ameaçada por um governante autocrata e defensor da ditadura militar, que confunde liberdade de expressão com defesa de valores protofascistas, de armamento da população e de militarização da administração pública. Souberam aumentar o rigor de suas respostas à medida que aumentavam as afrontas institucionais do bolsonarismo. A maioria deixou de as divergências de lado, para preservar a instituição e fazer frente a movimentos golpistas. Mesmo assim, alguns dos problemas que a corte enfrentará em 2023 decorrem justamente do fato de o tribunal continuar funcionado menos como órgão colegiado e mais como arquipélago de 11 ilhas.
Não foi por acaso que o presidente da República e suas falanges passaram, em seus protestos, a tentar desqualificar determinados ministros, deixando outros de lado por conivência política. Não foi por acaso que simpatizantes do atual governo pedem o fechamento do STF, sob a justificativa de que “supremo é o povo”. Não foi por acaso que alguns parlamentares do Centrão vêm chantageando o STF, ameaçando incluir a figura do orçamento secreto na PEC da Transição caso a corte a declare inconstitucional. Não é por acaso que muitos parlamentares vêm agindo com base no argumento de que, como o Legislativo se baseia na representação popular, é ele quem tem a última palavra em matéria constitucional. E também não foi por acaso que parlamentares inconsequentes propuseram uma CPI para apurar o que chamam de “violações” de direitos e garantias por um Poder que, pela Constituição, é independente.
Iniciativas como essas podem acabar provocando mais uma crise institucional, que é tudo o que o bolsonarismo aspira para manter o país sob um permanente clima de instabilidade durante o próximo governo.

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