Sócrates, Neymar, Galvão Bueno e a função do futebol – Migalhas
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quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
Atualizado às 07:45
Certa noite, no alvorecer de 2009, recebi uma ligação por volta de 23h30 de uma quarta-feira. Era o jornalista Victor Birner, convidando-me para encontrá-lo num bar. Ele sabia que minha casa passara a ser dominada por Olivia, recém-nascida. Daí a minha resposta, quase indignada, invocando a preciosidade do sono.
Uma pena, ele respondeu, pois acabara de deixar a TV Cultura, após participação no programa Cartão Verde, e se encaminhava ao…, acompanhado de Sócrates, Juca Kfouri, Chico Sá e Vladir Lemos. Não hesitei e perguntei em quanto tempo mesmo nos encontraríamos.
Minutos depois, estava ao lado de um dos ídolos da minha vida – atrás, evidentemente, de seu irmão, Raí, o maior jogador da história do São Paulo e do PSG (de acordo, aliás, com a própria torcida francesa).
Lá pelas tantas, e após uma incontável sequência de copos, tomei coragem e perguntei a Sócrates se Sarriá ainda lhe representava algo. Ele levava um gole à boca, mas o interrompeu. Sustentou o olhar para o nada durante alguns segundos (para mim pareceram minutos), virou-se em minha direção, com expressão fechada para os padrões da noite e desferiu um epíteto que jamais esquecerei: muitas noites de sua vida não dormia por conta de Sarriá.
Apesar da pouca idade à época da tragédia – nove anos -, ainda me lembro ou sonho com Sarriá. Seria o evento histórico – ou poético – que, se eu tivesse o poder divino de modificar, escolheria, antes mesmo da mudança do destino de algum evento político ou batalha militar.
Sócrates, o ativista, o craque, o democrata, o gênio, era, também, um indisciplinado. Todo indisciplinado tem algo de egoísta, pois a indisciplina disturba relações ou organizações.
Diz-se, no entanto, que, para estar pronto para a Copa de 1982, teria largado os hábitos que atrapalhavam o desempenho esportivo e focado em sua preparação. A superação do suposto egoísmo (talvez a expressão seja inapropriada), contribuiu para o resultado que todos conhecem: uma das mais belas (ou a mais bela) combinações de jogadores da história, não obstante o fracasso, com 4 vitórias e uma derrota fatal, diante da pragmática e prosaica seleção italiana.
Não se trata, aqui, de comparar Sócrates a Neymar, pois são pessoas, momentos e visões de mundo diferentes. Mais do que isso: da década de 1980 para a atual, o jogador de alto rendimento, em especial de nível mundial, deixou de ser apenas um jogador e se tornou um produto ou uma empresa – goste-se ou não desta constatação.
Mas se pretende, por outro lado, reconhecer o esforço, ao menos para o espectador externo, empreendido, num momento crítico da história, pelo melhor jogador do país.
Após uma sucessão de eventos negativos pessoais ou esportivos, Neymar parecia realmente focado na copa e, mais importante – em minha opinião -, com uma postura menos individualista e mais coletiva, de modo a superar seus próprios obstáculos.
Logo no início, porém, mais um acidente profissional quase o afastou do objetivo. Não deixa de ser simbólico, nesse drama, o peso que se punha sobre os seus ombros, o fato de, mesmo lesionado, ter permanecido em campo até a exaustão.
Ao retornar às suas funções, após duas ausências consecutivas, ficou evidente a sua importância, não apenas em fácil vitória contra a Coréia do Sul, mas, em especial, ao assumir a sua responsabilidade contra a atual vice-campeã mundial Croácia e encaminhar, com uma jogada brilhante, a classificação para semifinal – não fosse um erro tático incompreensível e imperdoável de um time que, embora frágil defensivamente, não havia, até então, falhado daquele jeito.
Se Sócrates e/ou Neymar mudaram seus hábitos por amor ao povo, à seleção ou a si próprio, ou aos seus próprios (e nem por isso ilegítimos) interesses empresariais (que poderia ser o caso de Neymar), é questão que não se pretende, ao menos por ora, enfrentar – e que não modifica as conclusões do texto.
Sócrates simbolizou a esperança democrática; Neymar a divisão de um país que se tornou intolerante, mas que precisa, desesperadamente, reunificar-se.
Lembro-me de cena do filme “O Ano que meus pais saíram de férias”, do diretor Cao Hamburger, em que perseguidos políticos da ditadura torciam, nos porões, pela seleção brasileira de 1970, apesar da indevida apropriação daquele símbolo por um regime inaceitável – o mesmo que os torturava e, eventualmente, matava.
De algum modo, aquele sentimento brasilianista justificava a própria luta que se empreendia por um país livre e democrático; e que deveria, agora, sobrepor-se à afirmação (ou ao interesse) das diferenças.
O futebol, nesse sentido, é muito mais do que apenas um esporte; ou a mais importante das coisas desimportantes. É uma via de ascensão social (uma das poucas, aliás, num país marcado pela desigualdade) e de desenvolvimento econômico, desprezada, historicamente, pelo Estado e pelas elites culturais e patrimonialistas, porque querem ora manipulá-lo, ora explorá-lo. É essencial, pois, para o Brasil e seu povo.
Daí não ter razão Galvão Bueno, justamente ele que vive o futebol (e se tornou o que é por conta do futebol), ao afirmar que a vida segue, que o futebol não resolve o problema de país nenhum, de guerra nenhuma, de mundo nenhum.
Qualquer pessoa que se distancia alguns poucos quilômetros das bolhas representadas pelos bairros chiques das capitais brasileiras (ou que assistiu a série Funkbol, produzida pela Kondzilla, disponibilizada na plataforma Prime Video), saberá que o futebol pode, sim, ser a solução para os problemas das gentes que enxergam na seleção, a cada 4 anos, um sonho – e não uma manifestação comercial ou política.
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