Efetivação de direitos sociais pelo STF: o caso das creches e pré … – Consultor Jurídico
Por José S. Carvalho Filho e Melina Macedo Bemfica
A efetivação de direitos sociais, culturais e econômicos (Desc) enfrenta dificuldades adicionais em relação à implementação de liberdades civis e políticas clássicas. Uma das justificativas desse fenômeno é o custo dos direitos [1]: em razão de os direitos sociais exigirem, predominantemente, prestações materiais do Estado, o ônus financeiro para sua efetivação é maior do que o dos direitos à abstenção.
Além disso, a implementação de Desc se operacionaliza em contexto de verdadeiro hiato orçamentário: enquanto as necessidades humanas e sociais são tendentes ao infinito, as capacidades financeiras do Estado são limitadas. Como consequência dessa conjuntura, as normas de direitos sociais são implementadas na medida do possível, de modo que elas não mantêm a densidade normativa das liberdades civis e políticas clássicas, como o direito de propriedade ou a liberdade de locomoção.
Isso significa dizer que, embora o artigo 6° da Constituição reconheça rol relativamente extenso de direito sociais, esses direitos são implementados na medida do possível, de acordo com a capacidade orçamentária do Estado. Ou seja, não obstante a Constituição reconhecer como direito fundamental social e, consequentemente, determinar que o Estado deve garantir aos cidadãos saúde, educação e moradia, por exemplo, esses direitos não são efetivados de forma plena. Basta pensar na população em situação de rua, nas pessoas analfabetas ou que recebem educação precária e nas limitações do sistema público de saúde (SUS) que há no Brasil.
Portanto, a falta de efetividade das normas de direitos sociais decorre, notadamente, das limitações orçamentárias que impõem constrições à efetivação desses direitos.
Esse fato conduz diversos pensadores do Direito a ponderar sobre os limites e possibilidades de efetivação dos Desc. Além disso, muitos conflitos sobre a implementação de direitos sociais têm sido deslocados para o Judiciário, em razão da judicialização da política.
A judicialização dos direitos sociais é fenômeno crescente no Brasil. Decorre, em grande medida, da abertura procedimental da jurisdição constitucional, que ampliou e facilitou ao acesso ao Judiciário a partir da Constituição de 1988, por meio do desenvolvimento de novos instrumentos processuais (ações de controle abstrato de constitucionalidade, mandado de injunção, Habeas Data etc.); da ampliação da legitimidade para acionar a Justiça constitucional (artigo 103 da Constituição) e para participar dos processos graças a institutos que garantem pluralidade, como os amici curiae e as audiências públicas; e da consolidação de instituições que contribuem para uma prestação jurisdicional mais célere, adequada e justa, como as defensorias públicas e os juizados especiais.
Assim, a judicialização dos direitos sociais é fato [2] que decorre das ondas renovatórias de acesso à Justiça [3] no Brasil, especialmente no tocante à jurisdição constitucional, seja ela difusa ou concentrada no Supremo Tribunal Federal.
Relativamente ao controle jurisdicional da administração pública no que diz respeito às políticas para a implementação de direitos sociais, culturais e econômicos, a questão é bastante delicada. Isso porque a administração pública toma decisões difíceis sobre a alocação de recursos limitados para implementar direitos sociais, respaldadas em conhecimento técnico-científico (nas áreas de saúde, educação, moradia, segurança pública etc.) e no critério democrático — já que os gestores públicos são eleitos ou indicados pelos representantes eleitos pelo povo. Nesse contexto, em que medida é cabível uma intervenção judicial?
Em se tratando de Desc, as reflexões de Georges Abboud e Gilmar Mendes sobre a transferência de debate das instituições políticas clássicas para o Poder Judiciário são bastante pertinentes. Os autores ponderam que no Brasil, onde nunca se estruturou por completo um Estado de bem-estar social, o Judiciário passou a se ver como o depositário de todas as conquistas sociais prometidas pela Constituição e não efetivadas pelo poder público. Em consequência, o STF é frequentemente provocado para decidir temas polêmicos da sociedade que não foram enfrentados no espaço adequado das instituições políticas clássicas. Ou seja, exige-se do Judiciário papel que materialmente é irrealizável, transformando-o num repositório de esperanças da sociedade e no fiador das instituições de uma democracia ainda recente como a brasileira [4].
É certo que a efetivação de direitos sociais pelo Poder Judiciário deve ser residual e subsidiária. O grande desafio, porém, reside em definir as hipóteses de atuação. Nessa tarefa, refletir sobre o julgamento do caso das creches e pré-escolas pelo Plenário do STF pode auxiliar a compreender melhor a temática.
Ao julgar o Recurso Extraordinário 1.008.166 (tema 548 da repercussão geral), o STF foi chamado a decidir se o acesso às creches e pré-escolas é direito público subjetivo das crianças em idade apropriada para frequentar tais instituições de ensino.
A discussão realizada pela corte é oriunda de mandado de segurança [5] impetrado pelo Ministério Público estadual em desfavor do município de Criciúma (SC), que negou a matrícula em creche pública ante a inexistência de vagas disponíveis. Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve a sentença, reafirmando que as crianças têm o direito de frequentar instituição pública de ensino compatível sua idade e fase escolar. O município, então, interpôs recurso extraordinário alegando que decisão exarada pelas instâncias anteriores representaria afronta à separação dos poderes, na medida em que não cabe ao Poder Judiciário impor a destinação de recursos para construção de creches e pré-escolas. Em suma, afirmou-se que o direito de acessar tais instituições de ensino é norma de eficácia programática, a ser implementada de acordo com o planejamento estabelecido pela administração pública.
Nas sessões plenárias realizadas em 21 e 22/9/2022, os ministros analisaram o recurso paradigmático, com o fito de estabelecer se a norma insculpida no art. 208, IV, da Constituição Federal tem eficácia plena, direta e imediata. Por unanimidade, os julgadores aprovaram tese de repercussão geral no sentido de afirmar que a educação infantil pode ser exigida individualmente do poder público, sendo, portanto, direto público subjetivo.
Não obstante o reconhecimento do direito subjetivo das crianças de acessar instituições de ensino adequadas para sua faixa etária, o deslinde da controvérsia foi atravessado por preocupações orçamentárias. Nas sessões de julgamento, os ministros se mostraram sensíveis às dificuldades e custos inerentes à implementação dos Desc.
Nesse giro, o ministro Alexandre de Moraes [6] aludiu que a Constituição Federal, em tempo que positiva direitos como acesso à saúde e à educação, também determina a necessidade de respeito aos orçamentos públicos. Em sua visão, o tribunal deve atuar considerando a existência de limites orçamentários, proferindo decisões que sejam passíveis de cumprimento.
No mesmo sentido, o ministro Edson Fachin afirmou que o Pretório Excelso está atento à exequibilidade de suas decisões, mormente daquelas que definem a realização de prestações positivas, claramente onerosas ao Estado e dependentes da disponibilidade de recursos públicos.
Portanto, restou consignada em Plenário a preocupação da corte com as repercussões de suas decisões na tecitura do planejamento orçamentário. Porém, ao delinear a controvérsia tratada no recurso extraordinário, decidiu-se que a principal tarefa girava em torno de definir se o acesso à educação infantil é direito público subjetivo, o que foi feito pelo STF.
Não obstante a importância de questões orçamentárias, o relator do recurso extraordinário, ministro Luiz Fux, acompanhando por seus pares — exceto pelo ministro André Mendonça —, consignou que o custo de um direito não importará, a priori, a impossibilidade de que seja provido por meio da atuação do Judiciário. No mesmo sentido está a jurisprudência consolidada da corte [7], que já vinha reconhecendo o acesso à creche e a pré-escola como direito subjetivo em casos julgados anteriormente.
Dessarte, o ministro Gilmar Mendes deixou consignado que a função de alocação de recursos, tipicamente conferida ao Poder Legislativo, não é um cheque em branco dado aos legisladores. Portanto, em que pese existir espaço de conformação para escolha de prioridades, o Legislativo não pode inviabilizar direitos constitucionalmente assegurados, mormente aqueles que possuem impacto multidimensional, como o direito à educação.
No mesmo sentido, Nunes Marques esclarece que a formação de novos cidadãos deve ser a prioridade absoluta em Estados Democráticos de Direito. Em sua avaliação, não é possível vislumbrar atividade pública mais importante do que a educação, razão pela qual o orçamento público deve ser construído a partir da necessidade das crianças em acessar a educação infantil.
Ao debater o caso, o ministro Ricardo Lewandowski esclareceu que a eventual ausência de recursos deve ser comprovada pelo ente público. Dessarte, o ônus de comprovar a impossibilidade de ofertar o direito constitucionalmente previsto deve ser suportado pelo poder público, e não pelas famílias já penalizadas pela ausência de vagas suficientes em creches e pré-escolas.
Ao proferir seu voto, o ministro Roberto Barroso destacou que já se passaram 34 anos desde a promulgação da Constituição, razão pela qual não é mais razoável dizer que a realidade fática ainda não permite implementação do direito de acesso à educação infantil.
Assim, confirmando a jurisprudência da corte [8], reafirmou-se que é permitido ao Poder Judiciário atuar na implementação de políticas públicas quando se está diante de grave omissão do poder público na implementação de direitos fundamentais de cunho social. Tal atuação, por ser excepcional, não ofende o princípio da separação dos poderes.
Em suma, restou consignado que, ante a passagem do tempo, o tamanho do déficit de vagas nas creches e pré-escolas brasileiras não se mostra razoável. Sendo a educação direito público subjetivo, é necessária a realização de esforços para que o acesso às creches e pré-escolas seja privilegiado no orçamento, abandonando as repartições de recursos que preterem investimentos em crianças, que são o futuro do país.
Assim, embora a corte tenha reconhecido a delicadeza da questão orçamentária, determinou que o administrador público não pode se valer de argumentos genéricos de limitação financeira para não implementar o direito público subjetivo à educação infantil, devendo realizar verdadeiro esforço para garantir que crianças possam acessar tal direito social.
Nesse julgamento, mais do que reconhecer o direito à matrícula em creches e pré-escolas como subjetivo de aplicação imediata, a corte deu um passo a mais para densificar a teoria da reserva do possível, uma vez que rejeitou argumentações genéricas sobre limitações orçamentárias como impeditivo para a efetivação do direito.
[1] HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass. Os Custos dos Direitos – Por que a liberdade depende dos tributos? 1ª Ed. WMF, 2019.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (SYN) THESIS, v. 5, nº 1 (2012).
[3] Essa terminologia é empregada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth no livro "Acesso à Justiça" (Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988).
[4] ABBOUD, Georges; MENDES, Gilmar. Entre ativismo de humildade. In: O Globo. 13 dez. 2018. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/12/13/interna_politica,725177/entre-ativismo-e-humildade-artigo-de-gilmar-mendes-e-georges-abboud.shtml.
[5] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Repercussão Geral 1008166. Plenário. Rel. min. Luiz Fux.
[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Pleno – Acesso a creches e pré-escolas (2/2) – 21/9/22. YouTube, 21 set. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rZzWwhtfIA8. Acesso em: 18 dez. 2022.
[7] RE 592.937-AgR, rel. min. Cezar Peluso, 2ª Turma, DJe de 4/6/2009. AI 592.075-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJe de 4/6/2009. RE 639.337-AgR, rel. min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJe 15/9/2011.
[8] ARE 745.745 AgR, rel. min. Celso de Mello, 2ª Turma. DJe 19/12/2014. RE 592.581. Rel. min. Ricardo Lewandowski, Plenário. DJe de 1/2/2016. ARE 1377281-AgR, rel. min. Edson Fachin, 2ª Turma, DJe de 9/12/2022. ARE 1.373.709-AgR, rel. min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe de 31/8/2022.
José S. Carvalho Filho é professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e assessor de ministro do STF.
Melina Macedo Bemfica é professora de Direito Constitucional e doutoranda em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 24 de dezembro de 2022, 8h00
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