Repensando o requisito da pertinência temática no STF – Conjur

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Por Flávia Santiago Lima
A transformação das cortes numa parte crucial do sistema político de diversos países é cercada de divergências. Sobre a atuação do Poder Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, pairam dúvidas acerca da sua compatibilidade com o princípio democrático, dos riscos representados pela interferência na atuação dos Poderes majoritários — legitimados pelos critérios da democracia representativa e por serem dotados de estrutura e meios técnicos para consecução de suas funções constitucionais — e, por fim, dos métodos e formas empregados para atingir suas finalidades.
A ortodoxia constitucionalista, como já referiu Stephen Holmes, configura um grande paradoxo: a exigência de que os cidadãos restrinjam sua capacidade de influir no debate político para assegurar sua constante participação nas esferas decisórias [1]. Em contrapartida, de modo a responder às críticas sobre o potencial antidemocrático desta visão, acena-se com a pluralização do processo constitucional e sua abertura aos grupos sociais interessados em participar dos debates.
As correntes que defendem a abertura democrática do processo constitucional sustentam, inclusive, a proeminência e a centralidade do princípio da dignidade humana, que se constitui num polo de atração para "cada vez mais novos direitos refletores do modismo constitucional-democrático, que se multiplicam na razão direta dos conflitos insurgentes no meio social e das exigências insaciáveis de positivação jurídica" [2].
Resta claro que a relação entre direitos fundamentais e democracia participativa é elemento indispensável do constitucionalismo comunitário. O exercício da cidadania, neste sentido, reveste-se de caráter político e também jurídico, com o processamento das expectativas populares pelas instituições judiciais [3]. Referidos argumentos teóricos, contudo, dependem da disposição dos atores jurídicos em aderir aos instrumentos de abertura da jurisdição constitucional.
Não por acaso, no Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988 (CRFB), uma agenda de pesquisa foi consolidada em torno das atividades (e omissões) do Supremo Tribunal Federal, com atenção aos fatores institucionais e comportamentais que explicam seu funcionamento, interação com outros atores políticos, procedimentos e decisões tomadas.
No que se refere ao controle de constitucionalidade, a CRFB inovou ao reforçar sobremaneira o controle abstrato, introduzindo diversas alterações substanciais. Dentre elas, a ampliação da legitimação para a propositura de ADI, por ação ou omissão (artigo 103). A "abertura" (relativa) da revisão judicial é considerada importante causa da judicialização da política, facilitando o acesso de vários grupos políticos ao STF, rompendo com o monopólio do procurador-geral da República (PGR) na Constituição anterior [4], mas também viabilizando outros meios de participação, com a figura dos amicus curiae e a possibilidade de convocação de audiências públicas.
A participação do PGR como "juiz da representação" [5] gerava insatisfação dentre os mais diversos grupos políticos, em especial pelo constante arquivamento das demandas trazidas pelo partido político de oposição ao regime, mas também dentre os setores da academia brasileira [6]. Na Assembleia Constituinte, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação dos Magistrados Brasileiros, aliás, posicionaram-se pela legitimidade ativa de qualquer cidadão brasileiro titular do direito invocado. A proposta contava com forte oposição do governo, de setores do Ministério Público e do próprio STF, como manifestou o então ministro da Justiça, Paulo Bossard, em audiência pública, em que alertava para os riscos da sobrecarrega de processos no tribunal [7].
Ao final, no desenho constitucional brasileiro, estão autorizados a propor as ações do controle direto de constitucionalidade o procurador-geral da República, o presidente da República, as Mesas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas dos estados e do Distrito Federal, os governadores, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), os partidos políticos, as confederações sindicais e as entidades de classe com âmbito nacional (artigo 103).
A ampliação foi vista pela academia brasileira com otimismo, por implicar um "um significativo avanço democrático" [8], mas também pelo potencial de fortalecimento da comunidade de intérpretes, na esteira dos movimentos de abertura constitucional e pluralismo jurídico, de nítida influência ibérica, a partir dos influxos da filosofia do direito alemã [9].
Entretanto, a preocupação com o excesso de litígios, principalmente entre os atores da sociedade civil, teve repercussões no desempenho posterior do Tribunal, com o estabelecimento de requisitos jurisprudenciais estritos para a propositura de ações judiciais [10].
Numa evidente prática de autocontenção, nos anos posteriores à promulgação da CRFB, verificou-se o emprego de uma jurisprudência defensiva, a partir de decisões — não necessariamente amparadas na literalidade do texto constitucional — "que limitaram, em um primeiro momento, o alcance do poder do tribunal sobre questões políticas" [11].
Duas restrições se destacam: a restrição do objeto de controle, eis que as ações diretas — de acordo com o STF — devem limitar-se ao questionamento das normas promulgadas após a vigência da nova carta e a distinção entre os chamados legitimados "universais", que poderiam propor as citadas ações sobre qualquer tema, pois nas suas funções estaria implícito o interesse em defender a ordem constitucional, e os "especiais", cujas ações devem guardar relação com sua esfera de atuação.
O denominado "filtro" da pertinência temática, portanto, é uma construção jurisprudencial do STF que estabelece a "necessidade de identificação de nexo entre a norma impugnada e as atividades institucionais dos requerentes como condição de admissibilidade" do processo de controle concentrado [12]. Deste modo, deve haver o cotejo da adequação entre as finalidades estatutárias da instituição e o conteúdo da norma impugnada, mesmo que esta relação se dê de forma indireta ou reflexa. Ademais, são analisados eventuais prejuízos potenciais ou efetivos causados pela norma impugnada para a instituição demandante.
A pertinência temática, assim, assemelha-se a uma condição da ação, análoga ao interesse de agir [13].
Os governadores e as Mesas das Assembleias Legislativas dos estados devem obedecer à regra (sic) jurisprudencial, pois sua atuação deve voltar-se ao questionamento da legislação estadual em sua compatibilidade com a CRFB. As entidades de classe e confederações sindicais submetem-se ao mesmo filtro e tiveram seus requisitos minimamente disciplinados para fins de legitimação ativa, sob pena de não ter suas ações conhecidas.
Além disso, o STF construiu uma série de requisitos para que uma associação que se apresente como “entidade de classe de âmbito nacional” possa invocar para si a legitimação ativa prevista no artigo 103, IX: (a) todos os seus filiados devem exercer a mesma atividade econômica ou profissional; (b) não constituam "associações de associações", ou seja, seus membros não sejam pessoas jurídicas; (c) tenham membros em, no mínimo, nove Estados.
Quanto às denominadas "confederações sindicais", a jurisprudência também se mostrou restritiva, embora não tão limitadora quanto as "entidades de classe de âmbito nacional" [14].
Deste modo, com exceção dos partidos políticos e da Ordem dos Advogados do Brasil, os representantes da sociedade civil devem mobilizar apenas suas próprias prioridades, numa restrição com importantes repercussões para os temas levados ao STF e, como consequência, à própria jurisdição constitucional. Isto porque as pesquisas apontam para um modelo de modelo de controle concentrado que privilegia a garantia dos interesses institucionais ou corporativos [15], limitando o acesso da cidadania e a discussão sobre determinadas pautas constitucionais, dependentes dos legitimados universais.
Além dos fatores político-democráticos, o estabelecimento de critérios jurisprudenciais também se sujeita a críticas jurídicas, em especial no que se refere à restrição da legitimidade de acesso ao controle abstrato de normas conferida expressamente pelo texto constitucional [16], de modo que outro limite ao rol que já é taxativo, deveria ser estabelecido através de emenda constitucional [17], sob pena de violação ao princípio da separação de poderes [18].
A natureza da fiscalização abstrata de normas, como processo objetivo, em que prevalece o interesse comum, repeliria inclusive a restrição por legislação ordinária. Isto porque se assemelha "ao estabelecimento de uma condição de ação — análoga, talvez, ao interesse de agir no processo civil — que não decorre dos expressos termos da Constituição" [19].
Outros autores alertam para o fato de que, além do inegável déficit de participação, ao deixar de conhecer certas ações pela ausência do requisito, são minimizadas as "oportunidades para o STF expulsar do sistema normas que violem a Constituição" [20]. O próprio manejo dos critérios pelo STF também é alvo de censuras, diante da ausência de requisitos mais claros e de inconsistências na aplicação, com o privilégio de fatores extrajurídicos, além do estabelecimento de exceções e atenuações, incompatíveis com a objetividade do procedimento.
O STF possui entre os atores institucionais — sistema de justiça acima de tudo — seus principais interlocutores, pelas demandas movidas e também por sua participação no processo de tomada de decisão. A Constituição ampliou o acesso ao tribunal pela sociedade civil, a legislação garantiu outros instrumentos para compartilhar debates em audiências públicas e amici curiae. Contudo, a jurisprudência do STF ainda limita esse acesso com a criação de requisitos formais não previstos na CRFB ou na legislação.
É importante que, com base nesse diagnóstico, a academia e os atores concentrem sua atenção em novos meios institucionais que possibilitem o encaminhamento das demandas da sociedade brasileira ao STF.
Os desenhos institucionais podem moldar os tribunais, mas a consolidação de uma cultura constitucional entre os agentes que a interpretam é o vetor que aponta o caminho para a revisão judicial. E, no Brasil, cabe ao "guardião da Constituição" criar e oferecer, em seus julgamentos e práxis, as condições de cooperação e o diálogo necessário para manter o acordo constitucional que garanta seu poder. Para tal fim, repensar requisitos como o da pertinência temática é medida salutar e necessária para robustecer a decantada abertura constitucional.
[1] HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (orgs.). Constitucionalismo y democracia. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 217-262, p. 220.
[2] CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 13-16.
[3] CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 18-43.
[4] CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de. A ampliação dos legitimados ativos na Constituinte de 1988: revisão judicial e judicialização da política. Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 96, p. 293–325, jul./dez., 2007, p. 322-323.
[5] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Do contrôle da constitucionalidade. 1ª ed. — ed. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 118.
[6] NORONHA, Fabrício Sales. A legitimidade das entidades corporativas no controle de constitucionalidade brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Brasília, 2015.
[7] KOERNER, Andrei; FREITAS, Lígia Barros de. O Supremo na constituinte e a constituinte no Supremo. Lua Nova, v. 88, p.141-184, 2013, p. 165. , Antonio (2013). "Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização" In: Lua Nova, São Paulo, n. 88, p. 25.
[8] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5 ̊. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 352.
[9] VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.41.
[10] LIMA, Flávia Danielle Santiago. Revisitando os pressupostos da juristocracia à brasileira: mobilização judicial na Assembleia Constituinte e o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 63, nº 2, p. 145-167, ago. 2018, p. 161.
[11] ARGUELHES, Diego Werneck. Poder não é querer: preferências restritivas e redesenho institucional no Supremo Tribunal Federal pós-democratização. Universitas JUS, v. 25, nº 1, p. 25-45, 2014, p. 30.
[12] LIMA, Flávia Danielle Santiago.; GOMES NETO, José Mário Wanderley. Autocontenção à brasileira? Uma taxonomia dos argumentos jurídicos (e estratégias políticas?) explicativo(a)s do comportamento do STF nas relações com os poderes majoritários. Revista de Investigações Constitucionais, v. 5, p. 221-247, 2018, p. 236.
[13] VAINER, Bruno Zilberman. A Pertinência Temática e o controle concentrado de constitucionalidade: o interesse de agir à luz do papel do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, p. 206-207.
[14] ARGUELHES, Diego Werneck. Poder não é querer: preferências restritivas e redesenho institucional no Supremo Tribunal Federal pós-democratização. Universitas JUS, v. 25, nº 1, p. 25-45, 2014.
[15] LIMA, Flávia Santiago. Jurisdição constitucional e política: ativismo e autocontenção no STF. Curitiba: Juruá, 2014.
[16] "(…) a limitação judicial torna-se extremamente problemática". MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de Constitucionalidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 881-1355, p, 1072.
[17] TAVARES, Aderruan Rodrigues. A inconstitucionalidade da pertinência temática para os legitimados especiais do controle abstrato de normas. Revista Direito Público, Brasília, v. 9, nº 48, p.107-115, jan. 2012, p. 113-114.
[18] RANGEL, Gabriel Dolabela Raemy. Crítica à pertinência temática. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, nº 4, p.101-124, 2017. p. 118.
[19] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle abstrato de constitucionalidade: ADI, ADC e ADO. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 124. No mesmo sentido, Paulo Hamilton Siqueira Júnior, pois não caberia à norma infraconstitucional limitar o alcance da constituição. SIQUEIRA JUNIOR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 464-469.
[20] MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de Constitucionalidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 881-1355, p. 1067.
Flávia Santiago Lima é doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-doutorado em Direito pela Universitat de València (Espanha), professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE/Recife), líder do Grupo de Pesquisa Juspolítica — Diálogos, Historicidades e Judicialização de Políticas (Direito/UPE).
Revista Consultor Jurídico, 31 de dezembro de 2022, 8h00
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