Prisão após a segunda instância: entendimentos do STF – Consultor Jurídico

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Por Fernando Capez
Até fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendia pela constitucionalidade da execução provisória da pena. Caso o indivíduo fosse condenado e interpusesse recurso especial ou extraordinário, teria de iniciar o cumprimento da pena enquanto aguardava a análise dos recursos. Tal perspectiva sofreu drástica mudança com o julgamento do HC 84.078, de relatoria do ministro Eros Grau, quando a corte passou a entender que nosso ordenamento jurídico não era compatível com a execução provisória.
Nesse período, o condenado até poderia ter sua liberdade cerceada enquanto aguardava a análise do REsp ou RE, desde que estivessem presentes os requisitos necessários da prisão preventiva, conforme o artigo 312 do CPP. Assim, a prisão do condenado tinha natureza jurídica cautelar e não de execução da pena antes do trânsito em julgado do édito condenatório. Foi solidificado o entendimento de que a prisão antes do esgotamento das vias recursais somente poderia ser decretada cautelarmente; a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação implicava em restrição ao direito de defesa e que a antecipação da execução penal era incompatível com a Constituição Federal.
A Suprema Corte sustentou a tese até o dia 17 de fevereiro de 2016, quando ao julgar o HC 126.292, de relatoria do ministro Teori Zavascki, retornou para o entendimento firmado antes de 2009 acerca da possibilidade de execução provisória da pena. À época, argumentou-se ser possível o início da execução da pena após a prolação do acórdão condenatório em segundo grau, sem mácula ao princípio constitucional da presunção de inocência. Entendia-se também que, por não possuir efeito suspensivo (CPP, artigo 637), os efeitos da decisão recorrida não eram obstados pela interposição de recurso especial ou extraordinário.
O entendimento predominante passou a ser o de que até que fosse prolatada sentença penal condenatória confirmada em 2º grau, devia-se presumir a inocência do acusado. Contudo, após esse momento, exaure-se o princípio da presunção de inocência, tendo em vista que os recursos cabíveis nas instâncias superiores não comportam a discussão de autoria e materialidade, mas apenas controvérsia de direito material ou constitucional. Em continuidade interpretativa, estar-se-ia diante da consagração da teoria da presunção de inocência mitigada, que admitia o cerceamento da liberdade do acusado antes mesmo do trânsito em julgado.
A execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não comprometia o pressuposto essencial do princípio da não culpabilidade, desde que o acusado tivesse sido tratado como inocente no decorrer do processo, com as devidas garantias do contraditório e ampla defesa, utilização de provas lícitas e legítimas e respeito ao sistema acusatório. Entendia a corte que era necessário harmonizar o princípio constitucional da presunção de inocência com a verdadeira função jurisdicional criminal, não apenas atentando-se à garantia dos direitos do acusado, como também aos interesses da sociedade, a qual perdia a confiança no Poder Judiciário ante os longos anos de espera para julgamento e infindáveis recursos.
"Em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando o referendo da Suprema Corte" [1].
Todavia, nova guinada interpretativa mudou esse entendimento, sendo que a partir da 7/11/2019, ao julgar as ADCs 43, 44 e 54, de relatoria do ministro Marco Aurélio, o STF retornou à interpretação de 2009, afirmando que o cumprimento da pena somente pode ter início com o exaurimento de todas as vias recursais. Ressalte-se que remanesce a possibilidade do acusado ser preso antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, desde que presentes os requisitos da prisão preventiva, em decisão individualmente fundamentada pelo juiz. Retorna, portanto, a natureza cautelar da prisão antes do trânsito em julgado, extinguindo-se a execução provisória da pena.
"Assim, cabe ao Legislativo dispor sobre a temática de maneira diversa da que está no art. 283 do CPP, desde que o faça em respeito ao postulado da presunção de inocência. Enquanto não houver essa mudança, a prisão que não estiver fundada nos requisitos de prisões cautelares somente poderá subsistir se baseada no trânsito em julgado do édito condenatório" [2].
Para que tal entendimento voltasse a prevalecer, o STF aludiu à compatibilidade do artigo 283 do CPP, com redação dada pela Lei nº 12.403/11, o qual dispõe que: "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva", com o artigo 5º, LVII, da CF, segundo o qual: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Como é de se notar, o posicionamento atual voltou a descartar a teoria do princípio da presunção de inocência mitigada, não se admitindo nenhuma transgressão aos direitos e garantias fundamentais do acusado.
"É vedado, até mesmo aos Deputados e Senadores, ainda que no exercício do poder constituinte derivado do qual são investidos, extinguir ou minimizar a presunção de inocência, plasmada na Constituição de 1988, porquanto foi concebida como um antídoto contra a volta de regimes ditatoriais" [3].
É sabido que a o sistema judicial brasileiro é complexo, moroso e com vias recursais excessivas, trazendo ao tecido social a sensação de ineficiência das leis, principalmente no que tange aos casos de repercussão criminal. Contudo, dar interpretação diversa àquilo que claramente determina a Constituição Federal, à título de atalhos para a concretização de prisões merecidas, abre precedente deletério ao sistema, uma vez que não podem as decisões judiciais se pautarem no clamor público.
"Embora fortes razões de índole social, ética e cultural amparem seriamente a necessidade de que sejam buscados desenhos institucionais e mecanismos jurídicos-processuais cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à exigência civilizatória que é o debelamento da impunidade, não há como, do ponto de vista normativo-constitucional vigente – cuja observância irrestrita também traduz em si mesma uma exigência civilizatória -, afastar a higidez de preceito que institui garantia, em favor do direito defesa e da garantia da presunção de inocência, plenamente assimilável ao texto magno" [4].
Portanto, caso o Tribunal de Justiça ou o Tribunal Regional Federal condene ou mantenha a condenação de primeira instância, a prisão do réu não será automática, devendo cada caso ser analisado individualmente. O acórdão deverá se pautar na imprescindibilidade do cerceamento da liberdade do réu para a garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Caso assim não o seja, deverá ser mantido em liberdade até o esgotamento das vias recursais.
Curiosa é a situação daqueles que foram condenados em segunda instância entre fevereiro de 2016 e novembro de 2019, período em que vigorou no STF o entendimento da legalidade da execução provisória de pena ultrapassados eventuais embargos declaratórios contra o acórdão do TJ ou TRF. Cada caso deverá ser analisado de acordo com suas peculiaridades. Se o acusado estiver preso única e exclusivamente por força do acórdão de segunda instância, deverá ser colocado imediatamente em liberdade; porém, se ainda presentes os requisitos da prisão preventiva, nada se altera.
"O art. 283 do CPP, que exige o trânsito em julgado da condenação para que se inicie o cumprimento da pena, é constitucional, sendo compatível com o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da CF/88. Assim é proibida a chamada execução provisória da pena. Cale ressaltar que é possível que o réu seja preso antes do trânsito em julgado (antes do esgotamento de todos os recursos), no entanto, para isso, é necessário que seja proferida uma decisão judicial individualmente fundamentada, na qual o magistrado demonstre que estão presentes os requisitos previstos no art. 312 do CPP. Dessa forma, o réu até pode ficar preso antes do trânsito em julgado, mas cautelarmente (preventivamente), e não como execução provisória da pena" [5].
Não se pode deixar de enfatizar o efeito vinculante da decisão do STF, uma vez que foi proferida em Ação Declaratória de Constitucionalidade, a qual entendeu pela compatibilidade do artigo 283 do CPP ao texto constitucional. Nesses casos, apesar de haver certa divergência doutrinária, é majoritário o posicionamento de que as decisões proferidas pelo STF em ações de controle de constitucionalidade possuem efeito vinculante e erga omnes.
As constantes alterações de entendimento da Corte Suprema acabam por gerar insegurança jurídica, sendo recomendável a pacificação desse entendimento, até porque avizinham-se novas mudanças na composição do STF com a possibilidade de rediscussão da matéria.
[1] STF. HC 126.292/SP, rel. min. Teori Zavascki, julgado em 17/2/2016.
[2] STF. ADC 43/DF, ADC 44/DF e ADC 54/DF, min. Gilmar Mendes, julgados em 7/11/2019.
[3] STF. ADC 43/DF, ADC 44/DF e ADC 54/DF, min. Ricardo Lewandowski, julgados em 7/11/2019.
[4] STF. ADC 43/DF, ADC 44/DF e ADC 54/DF, min. Rosa Weber, julgados em 7/11/2019.
[5] STF. Plenário. ADC 43/DF, ADC 44/DF e ADC 54/DF, rel. min. Marco Aurélio, julgados em 7/11/2019 (Info 958).
 é procurador de Justiça do MP-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.
Revista Consultor Jurídico, 6 de janeiro de 2023, 13h42
3 comentários
acsgomes (Outros)
6 de janeiro de 2023, 19h10
A meu ver, o melhor entendimento sobre a presunção de inocência foi dado no voto do Min. Alexandre de Moraes. Segundo ele, num raciocínio extremamente lógico, a presunção vai se esvaindo a medida que a investigação e processo avançam. Quando o investigado passa a suspeito numa investigação, ele “perdeu” um pouco da sua presunção de inocência. Quando ele vira réu num processo, “perdeu” mais um pouco. E assim, sucessivamente, a medida que ele é condenado em 1a instância e 2a instância. Isso é mais lógico e racional do que imaginar que exista um marco (STF no caso) no qual o condenado passa de inocente para culpado instantaneamente. No fundo, toda essa argumentação contra a prisão após a condenação em 2a instância não passa da defesa dos clientes criminosos dos advogados.
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acsgomes (Outros)
6 de janeiro de 2023, 19h12
… como disse o comentarista “A Indignação em pessoa”, nenhum jurista, advogado, criminalista, etc, se preocupa em tornar a justiça mais ágil para termos prazos razoáveis do cumprimento do devido processo legal.
A Indignação em pessoa (Outros)
6 de janeiro de 2023, 17h17
Se pedirmos a um administrador para analisar o artigo, e fazendo um correto diagnóstico para detectar o que seria o problema, veremos que tudo esta em torno de prazos. Deve haver prazos máximos para julgamentos. Encerrado o inquérito policial, julgamento inicia, Exemplo: 60 dias. Tendo setença em primeira instância, 60 dias para o segundo julgamento. Na minha opinião, uma ação penal não deveria demorar mais que 2 anos para percorrer todas as instancias. Também fim dos recursos as decisões interlocutorias. O segundo julgamento discutiria aquilo que seria objeto de recurso a decisões interlocutorias. Em MG este ano foi a júri, depois de 20 anos após ter permitido a morte de uma criança, retirada de órgãos para um transplante apócrifo. Pelo andar da carruagem, dentro de 70 anos teremos trânsito em julgado o que permitirá a prisão do culpado. Rsrsrsrs. Mas os advogados não querem isso. Perderão o agir estratégico sem enfrentar o mérito da ação penal. Infeliz Parabéns a advocacia de defesa criminal brasileira, que frustra aqueles que aguardam justiça, Mas parece que os juristas preferem se perder em discussões intermináveis, mas não vejo ninguém indo ao congresso, OAB, reivindicar tais prazos. O jogo ia perder a graça. Também deve haver prazos máximos para julgamento de ações trabalhistas. Tem RT contra a União tramitando a mais de 30 anos. Depois reclamam do valor do precatório, e criam coisas como teto para os mesmos. A 40 anos vi um filme, paródia da Divina Comédia de Dante. Um sujeito vai visitar o inferno depois o purgatório e depois o céu acompanhado de um anjo. Subindo uma escada saindo do inferno e indo para o purgatório nota homens de terno e pasta na mão, com lama até os joelhos. Pergunta: quem são estes, o anjo responde: Advogados !!!??
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