Artigo: 'É sobre a política do movimento feminista negro: Ubuntu' – Correio Braziliense

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“O Movimento Negro brasileiro foi o mais importante movimento social com bases históricas e culturais a atuar no cenário político do país. Nosso avanço foi conquistado passo a passo e sem recuos…” (GARCIA, Januário, 2008, p. 23). E hoje a diferença ainda se faz.
Entre tantas histórias que ouvimos por aí, uma delas conta que numa praia encontravam-se um escritor e uma criança. Esta, por sua vez, juntava estrelas do mar na praia e devolvia-as ao oceano. O escritor, “muito sábio”, disse à criança que ela não salvaria todas as estrelas que ali estavam, pois eram inúmeras. Ela então colheu uma, jogou-a ao mar e disse: “Mas para essa eu fiz a diferença”.
É sobre essa diferença que vamos fazer a abordagem, atendo-nos ao campo da negritude. Reconhecer a trajetória, do cuidado, das formas de enfrentamentos e de lutas, fez com que o povo negro se tornasse protagonista à frente de suas pautas garantindo-lhes voz e vez. Trazemos uma história ancestral e, a partir de lá, quantas marcas de sofrimento, quantas mortes trágicas! Mas também quanta coragem, alegrias, maneiras de sobrevivência, quanta força trazemos em nossos nomes, nossas conquistas, nossas formas de convivência. É, segundo bell hooks, “reaprender o passado, entender sua cultura e história, reconhecer seus ancestrais e assumir a responsabilidade de ajudar outras pessoas negras a descolonizar seus pensamentos” (HOOKS, 2019, p.61). Portanto, nosso respeito e honra aos que vieram antes.

Ubuntu agrega tudo isso, filosofia oriunda dos povos sul-africanos zulu e xosa que busca na força dos antepassados, a construção da identidade do ser. O que sua tataravó representou neste plano, chegou a sua bisavó, avó, mãe e consequentemente a você. Cada uma recebe o que a outra tem a oferecer e por isso eu sou porque vocês foram e, por conseguinte, eu sou porque nós somos.
Calaram nossas vozes e, num pretérito mais que perfeito, ressoaram novamente, mas dessa vez no movimento negro, por meio dos partidos políticos, da cultura, da religiosidade, entre outros segmentos. Numa perspectiva da política do cuidado, fomos ouvindo expressões de força, resistência negra a exemplo da coragem, “uma sobe e puxa a outra” num gesto de sororidade, sobretudo em movimentos no campo feminino/ancestral e de força política, buscando a ocupação de espaços.
“Eu sou porque nós somos”, essa é a palavra de ordem. Foi o que pudemos presenciar nas eleições de 2022. Falamos de força, afetividade, luta e adjacências, falamos de um só movimento, o negro, em suas vertentes, apresentando candidaturas à sociedade, como foi o caso do Movimento Negro Unificado (MNU), Estamos Prontas, Mulheres Negras Decidem, Março Por Marielle, Mulheres Negras Baobá, Eleitas: Mulheres Negras Na Política, tanto quanto outros assemelhados, como faz, por conseguinte, a Frente de Mulheres Negras, visando fortalecer a agenda do feminismo negro.
Conforme Patrícia Hill Collins, “uma vez que as lutas pela transformação institucional raramente são bem-sucedidas sem a ajuda de aliados, essa dimensão do ativismo das mulheres negras depende de estratégias de formação de coalisões” (COLLINS, 2019, p. 333). E foi o que vimos nitidamente nessas eleições.
Há um motor gerador que deve engrenar entre o pensar, sentir, agir e rever, quatro ações necessárias que estão imbuídas na constituição do que é necessário para garantir aos nossos a ocupação do parlamento e da esfera pública. Pensar na imanência da nossa história tal qual ela aconteceu, para além, na transcendência, no sentido de fazer ascender as vertentes dos espaços humanos que ela alcançou; sentir, no campo das emoções, as marcas do corpo e da alma são feridas que hoje por meio da força ancestral que chega até nós impulsionam-nos à ação; agir, conhecer-nos e à nossa história e nesse movimento atitudinal fortalecer-nos, fazer que saibam a que viemos; e reagir, consolidando nossa fala de pertencimento, e no mais, “estimular as organizações da sociedade civil na ampliação da consciência popular sobre a importância das ações afirmativas, de modo a criar sólida base de apoio social” (Decreto nº 4.886/03).
A exemplo de Mestre Didi e Emanoel Araújo em suas composições artísticas, Mestre Moa do Catendê, Ruth de Souza, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, conclamemos a todos e rufemos os tambores da nossa história. Orquestremos nossas memórias ancestrais e impressionemos, transformemos espaços por força dos nossos fazeres, das responsabilidades que um carrega quando faz pelo outro, de ser porque a outra pessoa é, nesta mesma filosofia: Ubuntu.

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