Lula e o seu Rubicão – CartaCapital

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Os fatos de domingo se esvaziaram, mas a peçonha golpista não foi esmagada e pode sobreviver em outras iniciativas de terrorismo

“Creio que este seja um momento decisivo de nossa história: a tirania foi derrotada. A alegria é imensa. Contudo, ainda resta muita coisa por fazer. Não nos enganemos acreditando que daqui em diante tudo será fácil; talvez daqui em diante tudo seja mais difícil.”- Fidel Castro Ruz (Havana, 8 de janeiro de 1959)
Como é sabido, os últimos quatro anos da vida nacional foram pontuados por tentativas golpistas planejadas, coordenadas e operadas a partir do terceiro andar do palácio do planalto, com o ostensivo apoio da coorte de fardados e similares desafeitos às leis, aos regimentos militares e à democracia. Foram, na sequência dos  idos de 2013, do golpe de 2016 e do mandato-tampão de Temer, quatro longos anos de proselitismo e ação protofascista, consolidando o avanço da extrema-direita brasileira como movimento político-ideológico, que, pela primeira vez na república, associava à tradicional aliança do grande capital com seu braço armado (os militares) o apoio de ponderáveis  segmentos populares, persistente até aqui.
O conservadorismo larvar, de base tanto social quanto religiosa, organizado, conquistara pela primeira vez mediante eleições livres a presidência da república, e passara a valer-se da posse do governo como instrumento de um projeto inédito de extrema-direita, reacionário no discurso e na ação, que seu líder anunciou como de desconstrução nacional.
Pari passu, na tradição do fascismo, foi estimulada a ideologia da divisão interna, do conflito permanente (no qual se alimenta a extrema-direita), permeando toda a sociedade. Seu desdobramento foi a institucionalização da violência social, mediante criminosa política de armamentismo civil, consagrador do poder das milícias e do crime organizado. Hoje, o exército, que transitou da omissão para a cumplicidade, não sabe dizer quantas  e quais armas e munições estão espalhadas pelo país. Descartou-se do dever legal de seu controle.
Desde o primeiro dia de mandato, a horda eleita em 2018 deixou claro que seu projeto de poder olhava para além dos quatro anos constitucionais.
Os fatos e as evidências, contudo, não eram suficientes para vencer o bovarismo político: assustados com o que nos podia dizer a decifração da realidade, nossa elite pensante (agora com a responsabilidade de Estado) teimava em não ver a mudança de qualidade do fenômeno político. Parecia mais cômodo reduzir o processo que se consagrara em 2018 como um mero episódio eleitoral, e ver o governo que aí se instalava e que chegou até ontem como um fato que se encerrava em si. Nada obstante as advertências do processo político e as ignoradas lições da História, miramos o governo como fato parado, para não ver o fenômeno desafiador que era a organização da extrema-direita golpista, que ameaça ter vida própria, para além de seu líder e principalmente para além do processo eleitoral e  das regras da institucionalidade democrática. É  o que vemos hoje. Nem os tolos de todos os gêneros podem alegar surpresa.
As tentativas de golpe dirigidas diretamente por Bolsonaro e os fardados, como o 7 de setembro de 2021, seu 18 brumário frustrado, as reiteradas ameaças de quarteladas e a tentativa de desmoralização do processo eleitoral prepararam o terreno para a fracassada intentona do dia 08/01/2022, que começou a ser montada com a ocupação dos quartéis do exército por súcias de vândalos, cresceu com a recusa dos militares de passar a seus sucessores os comandos da defesa e das três forças, e foi para as ruas com as arruaças consentidas do dia da diplomação de Lula (12/12/2022), além da tentativa de explosão de um caminhão carregado de combustível junto à rede de eletricidade no aeroporto de Brasília, no Natal. Nada, porém, que chamasse a atenção para a ameaça crescente. Lula havia sido eleito, finalmente tomava posse, e tudo o mais se transformava em passado.
Os fatos de domingo se esvaziaram, mas a peçonha golpista não foi esmagada e pode sobreviver em outras iniciativas de terrorismo, como atentados de toda espécie e sabotagens  que não podemos prever, mas que delas os serviços de segurança e inteligência nos deveriam precatar, se não estivessem comprometidos com a resistência ao mandato do presidente Lula. De que certamente seu GSI já tem ciência.  O governo precisa  aparelhar-se politicamente e os partidos progressistas devem rever os respectivos projetos em face do desafio permanente que é a organização popular, a partir do embate ideológico abandonado pela esquerda.
Quando os novos teóricos do poder entenderão que a sucessão em processo nada tem de familiar com a sucessão de 2003, e que o quadro militar daquele então nada guarda de compatível com a realidade de nossos dias? Jamais a república cobrou, como cobra agora, o braço forte de um presidente: o título de comandante-chefe das forças armadas deixa de ser uma de suas competências constitucionais, apenas, para elevar-se como dever cívico, uma necessidade histórica da qual não pode declinar.
As movimentações da turbamulta no último domingo, que amanhã com diversa intensidade podem repetir-se em qualquer parte do país, foram anunciadas há mais de uma semana, e desde a posse de Lula estava nas redes sociais o chamamento de caravanas para Brasília, com o manifesto propósito de provocar o caos, como sinal para a intervenção militar sonhada pelo bolsonarismo e apregoada em casernas de todos os naipes. O que pretendiam já fôra ensaiado nas arruaças de 12 de dezembro em Brasília, arruaças não apuradas, arruaceiros e financiadores não identificados  e salvos de qualquer sorte de repressão, mesmo após atentarem contra o patrimônio público e investirem contra o suntuoso complexo  da Polícia Federal.  Espera-se que a facilidade de pescar cabeças de bagre não relaxe a prisão dos  principais criminosos, os aliciadores ideológicos (o capo de todos homiziado em Miami) e os financiadores das caravanas. Para o dia 8 eram previstos mais de 200 ônibus chegando a Brasília desde a véspera, e vindos de várias partes do país. Não vimos isso, porque pareceu mais cômodo não ver, como se a ignorância do fato o tornasse irreal. Nenhum segredo os  golpistas guardaram de suas maquinações. Mas, igualmente, nenhuma ação se viu de quem deveria defender a institucionalidade democrática que nos parecera tão festejada na liturgia cívica do primeiro de janeiro, momento de afirmação republicana que devemos  resgatar para preservar, ilustrando esperanças que precisamos manter vivas.  Os trumpistas tropicais encontraram o seu Capitólio entregue às baratas, o campo livre para depredarem os edifícios-símbolo dos poderes da república, a saber, o STF, o Congresso Nacional e o Palácio  do Planalto, onde chegaram ao terceiro andar e às portas do gabinete do presidente da república. Caminharam, livremente, de um plano a outro da esplanada dos ministérios, sem conhecer empecilhos. Os repórteres de televisão chegaram com suas câmeras, e estiveram, para o acaso do registro histórico, presentes em todas as cenas. Mas não chegaram, senão com grande atraso e após a intervenção federal no sistema de segurança do DF, os aparatos de defesa das instituições, que lá deveriam estar numa ação preventiva, conforme rotina há muito conhecida, e familiar aos habitantes da capital. Como antes, não haviam funcionado nem os sistemas de informação federais, civis e militares (onde estava o batalhão dos Dragões da Independência, encarregado da defesa do palácio do planalto?), nem os serviços de informação do Distrito Federal, uns notoriamente incompetentes, outros notoriamente comprometidos com mais uma tentativa de golpe. Vai ficar por isso mesmo?
Desta feita, é impossível, mesmos aos néscios, desvincular o papel desempenhado pelo governador do Distrito Federal, ora afastado, como é impossível negar a presença de uma inteligência coordenadora. O ex-secretário de segurança do DF, até outro dia Ministro da Justiça, foi descansar em Orlando, na companhia de seu chefe efetivo, na expectativa, dos dois,  de verem de longe e comemorarem o incêndio de Roma.
Não há por que confiar em qualquer sorte de lealdade das corporações de inteligência e segurança das forças armadas do Estado brasileiro. Mas o novo governo se entregou de mãos e pés atados a essa ficção. A história da corporação militar a vincula ao desrespeito continuado ao poder civil, às instituições democráticas e à ordem constitucional. Mas qual papel era justo esperar dos serviços de informação da polícia federal, agora sob o comando do ministro Flávio Dino? A Polícia Rodoviária Federal não viu a movimentação atípica dos ônibus? Sinal de relaxamento político, o novo ministro da defesa nos dizia que as aglomerações na frente dos quartéis do exército (de onde saíram as bananas de dinamite e o terrorista que tentou explodir um caminhão de combustível no aeroporto de Brasília) eram atos normais da vida democrática, e chegou mesmo a dar como testemunho o fato de amigos e parentes seus, em Recife e em Brasília, integrarem esses grupelhos de apóstolos do atraso.
A literatura grafou a expressão bovarismo (derivada da personalidade desvairada de Madame Bovary, de Gustave Flaubert) para significar o desvio psicológico de pessoas que se recusam a conviver com a realidade. Tomam o sonho como real; mas se assim evitam, ainda que momentaneamente, o mal-estar representado pelo presente desagradável, não se livram  da chegada do desastre.
Sabe-se, com Marx, que a história não se repete, senão ora como tragédia, ora como farsa. Os tempos presentes ainda estão por serem definidos, pela ação dos indivíduos, e o governo do presidente Lula enfrenta seu Rubicão. É a hora de sua escolha, talvez definitiva, que há de ser, também, a hora de sua afirmação. Confio que avançará. Os fatos lhe oferecem a oportunidade de assumir o protagonismo que as circunstâncias históricas construíram, independentemente de sua vontade, mas que até gora vem sendo exercido pelo poder judiciário e por um ministro audaz.
A tessitura do processo social, contrariando os áulicos da conciliação pela conciliação,  aprofundou o conflito social posto em  números do 30 de outubro do ano passado,    mas desta vez os pólos se apresentam   largamente assimétricos porque  a grande maioria da sociedade – incluindo liberais, o centro e a “direita civilizada”–, assustada, optou pela democracia e entregou a Lula o bastão de sua defesa. Cabe-lhe assumir plenamente a tarefa, como chefe de Estado e comandante supremo da forças armadas, mas principalmente como o maior líder popular do país, sem se deixar intimidar, sem se dobrar a chantagens e sem receio de rever decisões já tomadas na montagem do governo que apenas se inicia.
A sorte está lançada.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Roberto Amaral
Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

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