Esporte ou entretenimento? Por que o debate sobre esports precisa ir além – TechTudo

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Por Yuri Hildebrand, da Redação
12/01/2023 16h28 Atualizado 12/01/2023
A nova Ministra do Esporte, Ana Moser, afirmou em entrevista ao site UOL na última terça-feira (10) que não considera os esportes eletrônicos como esportes, de fato. Na fala, ela afirma que "você se diverte jogando videogame", e que o jogo "não é imprevisível", já que existe uma programação por trás. Sobre o fato de os jogadores treinarem, a Ministra comparou a prática aos ensaios de Ivete Sangalo antes de um show, o que não configura a artista como uma atleta. Em resumo, juntando os argumentos apresentados por Ana, entendemos que a discussão que ela trouxe acabou sendo sobre o que são jogos de videogame, e não os esports enquanto práticas competitivas.
Nas redes sociais, sobretudo no Twitter, muitos atletas de esports e streamers se manifestaram a respeito, criticando a afirmação da Ministra e refletindo sobre o assunto. Pensando nisso, o TechTudo traz, a seguir, alguns pontos importantes sobre o debate. Afinal: esporte eletrônico é ou não esporte? Enquanto jornalista que acompanha e cobre tanto o cenário competitivo quanto o mercado de jogos casuais, afirmo que os esports são sim exemplos de esporte, mesmo que o videogame não seja. A ideia defendida aqui não é que o cenário competitivo tenha o mesmo tratamento do esporte tradicional, mas um reconhecimento como atividade profissional semelhante.
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Jogo é entretenimento, ok. Mas e os esports? Devem ser considerados apenas isso mesmo? — Foto: Yuri Hildebrand/TechTudo
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A entrevista, conduzida pelo jornalista Demétrio Vecchioli no portal UOL, falava sobre os investimentos do Ministério do Esporte durante os próximos quatro anos de Governo. Esse é um tema importante, já que muitos atletas de esportes tradicionais dependem de verba pública para acessar estruturas e equipamentos de qualidade e, assim, conseguirem realizar seus treinos. Questionada se os esports seriam uma categoria a mais dentro da pasta, a Ministra foi categórica: "não é esporte".
Confira, a seguir, o trecho em que a Ministra do Esporte, Ana Moser, fala ao UOL sobre os esportes eletrônicos, na íntegra:
"A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Você se diverte jogando videogame; você se divertiu. 'Ah, mas o pessoal treina para fazer'. Treina, assim como o artista. Eu falei esses dias: assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível. Ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, diferente do esporte"
A fala gerou bastante crítica por parte de gamers, em geral, com direito a muitos compartilhamentos em um post que compara a torcida do CS:GO durante o IEM Rio Major 2022 com a torcida do Vôlei – esporte praticado pela Ministra, que é, inclusive, medalhista olímpica pela Seleção Brasileira da categoria.
Mas, vale ressaltar: shows e eventos em geral também podem mobilizar com as pessoas, e a comoção foi comparada com outros registros fora da esfera do esporte. O caminho para dizer se os esports são uma prática esportiva não é esse, e precisa passar por quem trabalha e conhece a área.

Jogos eletrônicos e esports: é importante distinguir os conceitos

Para além da opinião da ministra, há um ponto de atenção na fala. Ela começou usando o termo "esportes eletrônicos", mas, ao concluir seu argumento, optou por "jogos eletrônicos". A impressão é de que o ponto defendido por ela tem a ver com o game em si, e não com o cenário competitivo (que, infelizmente, ficou fora do debate).
Ana argumenta, por exemplo, que o jogo é uma diversão, quando, na verdade, um esporte tradicional também pode ser fonte de lazer quando praticado de forma casual, por exemplo. Inclusive, é assim que normalmente começa o sonho de uma criança que deseja ser o Vinícius Jr. do futebol (e de uma criança que quer se tornar o novo Robo da line-up de League of Legends da LOUD).
O sucesso de Robo (LOUD) no League of Legends pode inspirar muitas crianças a seguirem pelo mesmo caminho — Foto: Divulgação/Colin Young-Wolff/Riot Games
Outra justificativa usada pela ministra envolve uma suposta previsibilidade que haveria nos games, que estaria relacionada à programação por trás de um jogo eletrônico. Aqui, mais uma vez, Ana se refere ao "local de disputa", mas, na minha interpretação, ignora a parte competitiva que se dá a partir dali.
Segundo o CEO da OutField, empresa focada em inteligência, estratégia e investimentos em esportes e games, Pedro Oliveira, o argumento também não cabe, já que vai de encontro com algo que acontece também nos esportes tradicionais.

"Não faz sentido, uma vez que os próprios jogos possuem combinações infinitas, fruto de variáveis programadas no jogo. Ou seja, da mesma forma que um jogo de futebol pode ter inúmeros resultados e ocorrências, o mesmo ocorre nos esports."

A partir das afirmações da Ministra, muitos gamers, influenciadores e pro players destacam que jogos são, sim, diversão, mas também profissão e, no caso do competitivo, esporte. O jogador de CS:GO Gabriel "FalleN" Toledo, por exemplo, citou os casos da Dinamarca e Estados Unidos como países que entendem essa diferenciação e trouxe alguns pontos para o debate, em tom conciliador.
Outra personalidade presente no mundo dos esports a falar sobre o assunto foi a jornalista e influencer Barbara Gutierrez. Segundo ela, considerar os esportes eletrônicos é algo importante para proteger quem vive disso. Apesar da crítica, ela alertou sobre o súbito interesse em criticar essa posição do governo em meio a problemas mais urgentes, como os atos terroristas que aconteceram em Brasília no último domingo (8).

Esportes enquanto profissão e instrumento de inclusão social

Entender o que são os esports e a magnitude desse cenário se faz ainda mais urgente diante do impacto social que esse “novo” campo tem. Os torneios e times de esports movimentam um grande mercado hoje em dia, e por trás desses eventos existem profissionais que ainda trabalham em situações vulneráveis. Muitos pro players, por exemplo, sofrem com o desgaste físico e mental após anos competindo, ficando sob os cuidados exclusivos das organizações.
Em caso de má-gestão, por exemplo, os jogadores não são amparados como atletas, mesmo tendo uma rotina com treinos, alimentação e descanso que exige uma competição de alto nível. E, nos esports, a atividade exige muito tempo na frente de um computador ou celular, o que pode levar a problemas de saúde. Uma regulamentação específica se faz necessária.
Enquanto esporte, o competitivo também não deve ficar restrito a quem tem renda para acessar um dispositivo eletrônico e Internet para jogar e seguir carreira na área. O fundador da FURIA, por exemplo, organização brasileira de esports que representou o Brasil no último Major de CS:GO, destacou que o cenário pode ser um diferencial na vida de muitas pessoas, e esse papel social deveria ser reconhecido pelo Estado.
A Taça das Favelas de Free Fire, competição que o TechTudo cobre há alguns anos, se inspira na competição de futebol de mesmo nome e serve como porta de entrada para a Liga Brasileira de Free Fire (LBFF), ou seja, para a profissionalização de novos jogadores.
O campeonato é organizado pela CUFA (Central Única das Favelas) e depende de parcerias com empresas privadas para funcionar. Da mesma forma que permite a disputa entre jovens gamers, a Taça das Favelas também ajuda muitos a terem acesso à Internet. Na edição de 2021, por exemplo, o Itaú entrou no projeto e distribuiu cerca de 7,8 mil chips com até 2 GB de Internet por mês.
A iniciativa já levou atletas como Gustavo “Gusta” Nunes e Pedro Paulo “Diniz.av” Diniz Alves ao cenário competitivo do Free Fire, e segue sendo um exemplo de como os esports, quando encarados como um esporte em si, podem fazer diferença.
Taça das Favelas Free Fire tem organização da CUFA e pode ser exemplo para outras ações de impacto social dos esports — Foto: Divulgação/Taça das Favelas
Para muitos jovens, o objetivo é se tornar um pro player, da mesma forma que, para muitos outros, o foco é ser atleta de algum esporte tradicional. Segundo um levantamento de 2021 realizado pelo DataFavela em comunidades de todo o Brasil, 96% dos entrevistados afirmaram que gostariam de ser atletas profissionais de esports.
O Estado reconhecer esse universo, portanto, pode gerar mais oportunidades para quem se interessa pelo competitivo dos games. Para Pedro Oliveira, no entanto, essa atuação não deve se dar por meio de investimentos públicos ou regulamentação.

"O caminho saudável, que já vinha sendo procurado e trabalhado entre representantes do mercado de esports e membros do governo, é entender quais projetos podem ser trabalhados em parceria e de que maneira governo e o mercado de esports podem estar alinhados para que o impacto social de um mercado que cresce rapidamente seja explorado da melhor maneira possível."

Empresas como a Riot Games não precisam de dinheiro do Estado para organizar seus campeonatos; não é sobre isso — Foto: Divulgação/Riot Games
Vale reforçar que o cenário de esports é, antes de tudo, autossuficiente. Além disso, os jogos são propriedades privadas, e o papel de investir, estimular e correr atrás de usuários é das empresas por trás de cada game, e não do Estado. Ao Governo caberia aproveitar a oportunidade para entender o assunto e saber como explorar da melhor forma, pensando no retorno para a população, assim como para assegurar direitos aos jogadores e outros profissionais que trabalham na área.

Videogame não é esporte, mas esports sim!

Ao dizer que "o jogo não é imprevisível" e trazer o fator "diversão" como algo que desconsidera o esporte eletrônico, a Ministra também demonstra um certo conservadorismo quanto ao assunto. O cenário competitivo traz uma bagagem de mais de 20 anos e serve não só como uma oportunidade comercial para empresas, como vem sendo, mas também como alternativa de inclusão social e até na formação de cidadãos. Afastar esse debate acaba contribuindo para uma falta de consciência política e social de boa parte da comunidade, algo que ficou bem evidente com a repercussão da fala.
Aproveitando esse gancho, vale reforçar que toda a discussão não deveria ter um tom alarmante ou servir para apontar culpados em um Governo que assumiu há menos de duas semanas e já precisa lidar com assuntos mais graves, como o recente caso de terrorismo, por exemplo. O debate acerca dos esports deve, sim, funcionar como uma oportunidade para que o poder público olhe para o assunto com a devida importância.
Jogadores como os da LOUD, campeã mundial de Valorant, dedicam suas vidas a isso; ignorar não é o caminho — Foto: Divulgação/Colin Young-Wolff/Riot Games
Para isso, eu entendo que há uma diferença muito importante a ser destacada: jogo não é esporte, mas os esports sim. Ou seja, o competitivo que se cria a partir de um game é um exemplo de esporte. Há uma disputa que exige destreza, esforço mental e também físico, além de uma preparação que precede os torneios, mas não só isso. Os players, times e treinadores montam estratégias e desenvolvem jogadas a partir da mecânica e das possibilidades que os jogos competitivos abrem.
Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que os esports não devem ter o mesmo peso de futebol, vôlei ou basquete para o Estado, e sim uma atenção maior do poder público enquanto um esporte "diferente". Como Pedro Oliveira definiu em exclusividade para o TechTudo, "o esporte eletrônico envolve organização e governança, envolve alto rendimento e envolve impacto social, ou seja, envolve em grande parte as mesmas variáveis que o esporte tradicional."
A grande questão está na natureza privada dos games, que têm um "dono", uma empresa por trás que define aquelas regras, daquele ambiente virtual. Isso não acontece com os esportes tradicionais. Mesmo que existam organizações definindo como vão funcionar suas partidas e competições, essas atividades respeitam leis da natureza, como a física de uma bola, a medicina por trás de um tratamento, a alimentação, entre outros fatores. Há paralelos com os esports, sobretudo no preparo dos pro players, mas a competição em si continua sendo a partir de um universo criado por uma empresa.
Ao mesmo tempo, jogos como League of Legends (LOL), CS:GO, Free Fire, entre outros com cenário competitivo, são ambientes virtuais que existem hoje e que têm sido explorados dessa forma pela comunidade, gerando um grande impacto social para as pessoas. A programação por trás de um game não deveria ser usada como base para afastar esports e esporte – isso só isola mais um novo segmento de extrema importância e impacto social.
O jogo é entretenimento, como a própria Ministra coloca, e deve ser tratado como tal. Mas, para além disso, os esports envolvem competição a nível esportivo, e todos sairão ganhando se eles forem considerados como tal pelo Estado, ainda que em um patamar diferente. Dessa forma, seria importante para o Governo e para o Ministério do Esporte dialogar com pessoas do cenário competitivo dos esports para pensar em formas de encaixar esse elemento tão importante na agenda pública.
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