Evangélicos racharam em apoiar ou resistir à ditadura militar – Política Livre

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22 janeiro 2023

Em 1969, dois fiéis delataram membros da própria igreja para a ditadura militar. Informantes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), um dos órgãos mais violentos do regime, o pastor e o bispo acusaram jovens metodistas de “subverter e doutrinar para a esquerda”.
Anivaldo Padilha foi um desses delatados. Estudante de ciências sociais da USP, acabou preso meses depois e recepcionado na sala de interrogação com um soco no estômago. “Começaram, então, a aplicar em mim o ‘telefone’, que consiste em golpear os ouvidos da vítima com as duas mãos ao mesmo tempo.”
O pior ainda estava por vir. Nas sessões de tortura que se seguiram, conheceu a “cadeira do dragão”, revestida com folhas de metal conectadas a um regulador de voltagem. “Fui colocado nu, com mãos e pés amarrados. Exigiram que desse todas as informações que possuía. A cada negativa, o torturador girava a manivela para aumentar a intensidade dos choques. Para tornar os efeitos mais fortes, colocaram uma toalha úmida sob minhas nádegas”.
De volta à cela, foi apresentado a uma outra forma de tortura: a fome. A janta, muitas vezes única refeição do dia, eram sobras do quartel trazidas em caldeirões. Arroz, feijão e tomate picado. Com as mãos inchadas, que mal conseguiam segurar a colher, tinha dificuldade para engolir a comida.
No ano seguinte, o líder da juventude metodista, que também militava na AP (Ação Popular) contra a ditadura, partiu para o exílio. Não conseguiu assistir ao nascimento, naquele mesmo 1971, de Alexandre Padilha, filho recém-empossado ministro de Relações Institucionais do governo Lula.
O depoimento foi dado ao Brasil: Nunca Mais, projeto ecumênico idealizado por um católico (dom Paulo Evaristo Arns), um presbiteriano (reverendo Jaime Wright) e um judeu (rabino Henry Sobel). O octogenário Anivaldo também é um dos quatro autores de “As Igrejas Evangélicas na Ditadura Militar – Dos Abusos do Poder à Resistência Cristã”.
Organizado pelo Coletivo Memória e Utopia, o livro recupera o engajamento evangélico contra e a favor do período militar num momento em que boa parte das igrejas se acastela no bolsonarismo, abertamente simpático àqueles anos.
A obra lembra sete vítimas evangélicas da ditadura. A história delas passou pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta por Jair Bolsonaro (PL) no apagar das luzes de seu governo e recomposta por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Heleny Telles Ferreira Guariba, fiel da Igreja Metodista Central de São Paulo, desapareceu aos 30 anos. Inês Etienne Romeu, tida como única sobrevivente da Casa da Morte, centro de tortura em Petrópolis (RJ) onde por três dias recebeu choques elétricos na vagina, testemunhou acreditar que uma das colegas de cativeiro era Heleny.
Outro caso emblemático é o do presbiteriano Paulo Stuart Wright, filho de missionários americanos eleito deputado estadual por Santa Catarina e cassado no primeiro ano da ditadura por “falta de decoro parlamentar” —não usava paletó e gravata.
Militante da AP, ele desapareceu em 1973. Dois anos depois, o pastor Jaime Wright, seu irmão, participou do culto em memória a Vladimir Herzog, também assassinado pelo Estado.
Coautora do livro, Magali Cunha aponta três posturas distintas de líderes evangélicos ante o recrudescimento autoritário daqueles tempos. “A mais prevalente foi de silêncio e indiferença, o que acaba se configurando em apoio. Eles se omitiram diante de perseguições”, afirma.
Houve também uma minoria progressista entre fiéis e outros que, mesmo sem alinhamento ideológico à esquerda, “por princípios éticos se colocaram contra a ditadura”. Alguns foram denunciados ao governo opressor pelos próprios pastores, como o pai do ministro Alexandre Padilha.
Por fim, uma parcela evangélica apoiou contida ou explicitamente os golpistas.
Mesmo antes do golpe, o segmento já se agitava contra o que via como ameaça esquerdista. O pastor batista Enéas Tognini narrou ter ouvido em 1963, de um oficial do serviço secreto do Exército, que os evangélicos eram a esperança para “salvar o Brasil das garras do comunismo”, uma “força espiritual do diabo”.
A adesão fica clara com uma leitura de jornais de igrejas.
Em março de 1964, na porta do golpe, O Estandarte Evangélico, da Assembleia de Deus no Pará, publicou: “Nós podemos comparar [o comunismo] a um monstro horrível que subjuga 900 milhões de pessoas em sua cortina de ferro. Tudo isto é o cumprimento das Escrituras. O final dos tempos chegou”.
No mês seguinte, com a tomada de poder pelos generais, o presidente da igreja enviou uma mensagem de congratulações à Junta Militar.
O Brasil Presbiteriano expressou em junho de 1964 sua confiança no governo militar, merecedor do “apoio dos cristãos”. “Cremos que os presbiterianos, seja qual for o partido, devem a si mesmo, a Cristo e a Nação uma atitude positiva de participação nas tarefas que aguardam o país.”
Magali Cunha lembra que, com o endurecimento do regime, igrejas promoveram expurgos de membros progressistas demais para o gosto da cúpula.
Para a pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião), o momento é oportuno para que evangélicos tirem lições do passado. As lembranças, diz, “têm que ser avivadas para que nós percebamos que apoiar regimes não democráticos é uma questão incompatível com a memória do que significa o protestantismo no mundo”.
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