STF e STJ contrariam entendimento do “Caso Lula” em matéria de nulidade por incompetência absoluta – Migalhas

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
Atualizado às 08:25
Na data de 8/3/21, em julgamento paradigmático, o eminente Min. Edson Fachin, ao apreciar os Embargos de Declaração no Habeas Corpus 193.726, concedeu a ordem impetrada em favor do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (que na época, como se sabe, não ocupava esse cargo), para “declarar a incompetência 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba para o processo e julgamento das Ações Penais 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (Triplex do Guarujá), 5021365-32.2017.4.04.7000/PR (Sítio de Atibaia), 5063130-17.2018.4.04.7000/PR (sede do Instituto Lula) e 5044305-83.2020.4.04.7000/PR (doações ao Instituto Lula), determinando a remessa dos respectivos autos à Seção Judiciária do Distrito Federal” e declarando, ainda, “como corolário e por força do disposto no art. 567 do Código de Processo Penal, a nulidade apenas dos atos decisórios praticados nas respectivas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios”.1
Como se verifica, ao apreciar o feito, o ilustre relator declarou nulos, por força do art. 567 do Código de Processo Penal, os atos decisórios praticados no juízo declarado incompetente, inclusive os atos de recebimento das denúncias, cabendo aos juízo competente decidir sobre a convalidação ou não dos atos instrutórios.
Essa decisão monocrática do Min. Fachin foi posteriormente ratificada pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento de Agravo Regimental no mesmo Habeas Corpus 193.726, ocasião em que inclusive a Corte explicitamente prestigiou a observância ao princípio do juiz natural, previsto no art. 5º, inc. XXXVII e LIII, da Constituição Federal.2
Ora, se o Supremo Tribunal Federal, pelo Plenário, decidiu que a incompetência relativa (territorial) é causa de nulidade absoluta, com muito mais razão deve-se concluir que a incompetência absoluta é causa de nulidade incontornável e também de natureza absoluta, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal.
Em realidade, pode-se dizer que a Suprema Corte equiparou a incompetência relativa no processo do Presidente Lula a uma autêntica incompetência absoluta, talvez pela gravidade do vício encontrado, devendo-se compreender, a partir da fixação dessa jurisprudência, no mínimo, que toda incompetência absoluta é causa de nulidade insanável.
Em sentido análogo, no julgamento da RCL 43479, o eminente Ministro Gilmar Mendes enfatizou, quanto ao alcance da declaração de nulidade, a necessidade de se proceder a uma nova denúncia perante o juízo competente, declarando-se explicitamente a nulidade da denúncia e a sua exclusão do processo em sede de Embargos de Declaração.3
De modo semelhante, em feito posterior, cuja relatoria para o acórdão coube ao eminente Ministro Ricardo Lewandowski, a 2ª turma do STF igualmente reconheceu, em julgado por maioria, a nulidade dos atos decisórios desde a denúncia, em decorrência da incompetência do juízo.4
Resulta evidente que, assim como no “caso Lula”, uma vez que qualquer pessoa venha a ser condenada por juízo absolutamente incompetente, o princípio do juiz natural estará violado, e o prejuízo será irreversível e presumido de forma concreta, ofendendo-se não apenas o devido processo legal, mas também os direitos de defesa (C.F., art. 5º, LIV e LV).
No precedente julgado pelo laborioso Ministro Edson Fachin (HC 193.726 ED) no “caso Lula”, a eminente Ministra Rosa Weber assinalou que não se aplicaria a “teoria do juízo aparente” para ratificar o recebimento da denúncia, na medida em que a “aplicação da teoria, como instrumento de preservação de atos praticados por juízo incompetente, demanda superveniência de elementos fáticos ou probatórios ou desconhecimento de sua existência à época da prática dos atos processuais […], o que não ocorre na hipótese”.
Todavia, observa-se que, se a “teoria do juízo aparente” não se aplicou naquela hipótese, certamente não se aplica a nenhuma hipótese de competência absoluta, sobretudo quando a incompetência é arguida tempestivamente e por meios processuais adequados, inclusive em habeas corpus. E tampouco se aplicaria a “teoria do juízo aparente” para salvar jurisdição absolutamente incompetente, quando o réu resulte condenado, sofrendo prejuízo concreto, por juízo absolutamente incompetente.
Veja-se que, no “caso Lula”, a “teoria do juízo aparente” foi afastada porque se tratava de incompetência que se considerou, na prática, como de natureza absoluta, violando o princípio do juiz natural.
Com efeito, rigorosamente, o então acusado, Luiz Inácio Lula da Silva, foi condenado por várias instâncias judiciais, como se a 13ª Vara Federal de Curitiba fosse competente, e, inclusive, foi mantido preso pelo próprio Supremo Tribunal Federal, na presunção de que aquela mesma 13ª Vara Federal de Curitiba fosse o juízo competente para julgar a matéria. Tal circunstância, por si só, demonstra que o julgamento proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no precedente do HC 193.476 AgR, aniquilou a “teoria do juízo aparente”, em matéria de nulidade absoluta derivada, pelo menos, da incompetência absoluta.
Não obstante, posteriormente ao julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, observa-se a superveniência de decisões, pelos próprios Ministros do STF, no sentido de mitigar nulidades advindas de incompetência absoluta, tolerando a ratificação do recebimento da denúncia.
Com efeito, em recente decisão, posterior ao julgamento do “caso Lula”, o eminente Ministro Roberto Barroso, que havia votado pela nulidade absoluta no julgamento do Presidente Lula, em caso análogo julgou de modo completamente diferente, dizendo que a “orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido da possibilidade de ratificação de atos decisórios pelo Juízo competente”.5
Em outro julgado recente, igualmente posterior ao “caso Lula”, o Supremo Tribunal Federal, na voz da ilustre Ministra Rosa Weber, que também havia votado pela nulidade absoluta no caso do presidente Lula, decidiu, em matéria análoga, pela preservação do recebimento da denúncia, apesar da incompetência absoluta do juízo processante. Esquecendo-se completamente do julgamento anteriormente efetuado pelo Plenário da Corte, a Ministra Rosa Weber afirmou que “está Suprema Corte tem endossado, com base na teoria do juízo aparente, a possibilidade de ratificação de atos processuais praticados por juízo aparentemente competente ao tempo de sua prática”. Ademais, a eminente Ministra, discrepando do que foi decidido no caso julgado em relação ao Presidente Lula, assinalou que “a alegação e a demonstração do prejuízo são condições necessárias ao reconhecimento de nulidades, sejam elas absolutas ou relativas, ‘pois não se decreta nulidade processual por mera presunção’ (HC 107.769/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 28/11/11).6
Além dessa orientação do Supremo Tribunal Federal discrepante relativamente à decisão do Plenário, tomada no HC 193.726 AgR, em 15/4/21, da relatoria do eminente Min. Edson Fachin, também é preocupante a divergência do Superior Tribunal de Justiça em relação ao entendimento encampado pelo mesmo Plenário do Supremo Tribunal Federal quanto ao “caso Lula”.
Essas manifestações contraditórias, tanto de Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal quanto das Turmas Criminais do Superior Tribunal de Justiça, podem causar grave insegurança jurídica no sistema judicial brasileiro. Isso, porque o paradigma envolvendo o “caso Lula” foi decisivo para as eleições de 2022, na medida que viabilizou uma candidatura. Ademais, esse parâmetro fixado pelo Supremo Tribunal Federal adotou o critério da nulidade absoluta derivada, pelo menos, da incompetência absoluta, forte no art. 567 do Código de Processo Penal, o que nos parece correto no campo jurídico. Aliás, esse critério está em sintonia com o tratamento dispensado pelo próprio Supremo Tribunal Federal à nulidade derivada da suspeição do juiz, conforme decidido no Habeas Corpus 164.493/PR, de relatoria do eminente Ministro Gilmar Mendes, pois a suspeição, tanto quanto a incompetência absoluta, remete ao princípio do juiz natural (C.F., art. 5º, XXXVII e LIII).7
Simplesmente não seria razoável, tampouco compreensível, que, após o julgamento do paradigma fixado no HC 193.726 (ED e AgR), da relatoria do Min. Edson Fachin, Ministros do Supremo Tribunal Federal pudessem, em decisões monocráticas, retroceder no seu próprio entendimento e, sem justificativa alguma, simplesmente desprezando e ignorando os votos proferidos no Plenário, reformular a sua própria jurisprudência, de modo aleatório e arbitrário.
Nesse mesmo contexto, o Superior Tribunal de Justiça igualmente não tem obedecido à jurisprudência do Plenário da Suprema Corte e trata a incompetência absoluta como se fosse possível convalidar os atos de recebimento da denúncia.
Veja-se, a propósito, decisão do eminente Ministro Ribeiro Dantas no sentido de que “havendo reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça Federal, a ação penal deve ser remetida à Justiça Especializada, mas com anulação apenas dos atos decisórios praticados e sem prejuízo da sua ratificação pelo juízo competente”.8
Na mesma direção, e refletindo a orientação do Superior Tribunal de Justiça, o eminente Ministro Reynaldo Soares da Fonseca decidiu, em matéria de ordem pública, posteriormente ao julgamento do “caso Lula”, que “verificada a competência da Justiça Eleitoral para conhecer do contexto apresentado nos presentes autos, haja vista a conexão com crime de “Caixa 2″, devem ser considerados nulos os atos decisórios, nos termos do art. 567 do CPP, ressalvando-se a possibilidade de ratificação dos demais atos pelo Juízo competente”.9
O que se verifica, nesse cenário, é que resulta necessário que a jurisprudência, tanto do próprio Supremo Tribunal Federal, como do Superior Tribunal de Justiça, se ajustem definitivamente ao precedente relatado pelo Ministro Fachin, para que haja um tratamento isonômico aos jurisdicionados, fixando-se a tese de que a incompetência absoluta gera nulidade insanável nos processos.
Evidentemente não se pode aceitar, em hipótese alguma, que o julgamento de um paradigma tão importante quanto aquele que envolveu o presidente Lula tenha sido um “ponto fora da curva” na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou um julgamento casuístico. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, são obrigados a seguir a orientação do Plenário, inclusive porque os autores dessas monocráticas subscreveram o entendimento do Plenário. E ao Superior Tribunal de Justiça cabe se curvar ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, definitivamente. Segurança jurídica e previsibilidade são pressupostos de um Estado Democrático de Direito, assim como a isonomia de tratamento de todos perante a lei.
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1 HC 193.726 ED, j. em 08.03.2021.
2 HC 193726 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 31-08-2021 PUBLIC 01-09-2021.
3 Rcl 43.479 ED, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 10/08/2021, PUBLIC 03-11-2021. Embargos de declaração julgados em 22.11.21.
4 HC 200147 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 05/12/2022, PUBLIC 13-12-2022.
5 RHC 209.411, rel. ROBERTO BARROSO, 02.12.21. Monocrática confirmada em decisão colegiada: RHC 209411 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 21/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 22-03-2022 PUBLIC 23-03-2022. Nessa linha, o Min. Barroso cita ainda os seguintes julgados: HC 83.006, Relª. Minª. Ellen Gracie; RHC 122.966, de minha relatoria; RHC 153.869-AgR, Rel. Min. Celso de Mello; HC 137.438-AgR, Rel. Min. Luiz Fux; e RHC 198.182-AgR, Relª. Minª. Rosa Weber.
6 HC 185755 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 08/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-113 DIVULG 11-06-2021 PUBLIC 14-06-2021. A decisão foi mantida pela 1ª Turma (RHC 202614 AgR-ED, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 11/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-206 DIVULG 15-10-2021 PUBLIC 18-10-2021).
7 HC 164493, Relator(a): EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 23/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-106  DIVULG 02-06-2021  PUBLIC 04-06-2021
8 AgRg no REsp n. 1.854.892/PR, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 5/10/2021, DJe de 20/10/2021).
9 HC n. 700.727/PB, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 16/12/2021).
Advogado do escritório Medina Osório Advogados, ex ministro da AGU.
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