Hamilton Carvalho | É racional acreditar no clone de Lula – Poder360

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Crenças absurdas ajudam na mobilização interna de grupos sociais e na difamação de adversários, além de testar lealdade, escreve Hamilton Carvalho
Como se comentasse que hoje tem previsão de chuva, a vizinha simpática me encontra no elevador e solta um “você viu o que os infiltrados fizeram em Brasília?”, em referência aos atos de 8 de Janeiro. Desde que a carteira dessas moedas de conversação diária passou a conter cédulas com a efígie de Lula e Bolsonaro, isso tem sido comum no cotidiano das pessoas.
A analogia com o comércio não é à toa. Essa espécie de isca para identificar se o interlocutor faz parte da mesma tribo política é, na verdade, uma tentativa de troca, a manifestação de um dos chamados 4 arquétipos do comportamento social (os 4 Cs): conflito, coordenação, cooperação e comércio (troca), todos mediados por outro “C”, a comunicação.
É pensando nesses motores da dinâmica de grupos sociais que fica mais fácil entender as diversas confabulações que costumam pulular no universo bolsonarista. Das racionalizações usuais (como essa dos “infiltrados” ou outrora as diversas “jogadas de mestre” do enxadrista Bolsonaro) aos verdadeiros delírios compartilhados desde o último ciclo eleitoral.
Um exemplo, que circulou bastante antes da posse do presidente atual, foi a versão de que ele teria sido substituído por um clone; o Lula original estaria trancado, morto ou muito doente, em um quarto vigiado 24 horas por dia no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. E dá-lhe áudios com revelações bombásticas feitas por alguém supostamente com acesso ao hospital e fotos que comprovariam o 5º dedo do impostor, além de outras maluquices.
Houve também aquela em que Bolsonaro teria transmitido a Presidência ao general Heleno como meio de impedir a posse de Lula… Bom, o leitor certamente já ouviu alguma. No fundo, são estórias criadas para manter o público sempre ligado na expectativa de que algo vai ocorrer, como se aguardasse pelo próximo episódio de uma série viciante. Mas tem mais caroço nesse angu.
Inclusive, um caroço ilusório: muita gente de fora desse ecossistema se pergunta se os adoradores do mito não enxergam a falta de pé ou cabeça dessas narrativas ou a clareza das fake news incessantemente divulgadas. Geralmente, o questionamento vem com tintas de superioridade moral, como se os torcedores da ivermectina futebol clube fossem um bando inferior de ingênuos manipuláveis e crédulos. “Gado”, é o carimbo condescendente final.
Porém, lamento dizer, isso reflete uma visão edulcorada e falha da natureza humana. Essencialmente porque parte da premissa de que a nossa principal motivação ao gerir nosso repertório de crenças é mapear a realidade com máxima precisão. Óbvio que esse objetivo é saliente em muitos casos e contextos, mas com frequência ele não é o mais importante.
vimos aqui que a propagação de ideias estapafúrdias, aquilo que o filósofo Daniel Williams chama de absurdos estratégicos, é o custo pago em reputação para fazer parte de certos clubes ideológicos. É o médico que se queima entre colegas ao falar contra vacinas ou o professor universitário que, em absoluta minoria, recita, como papagaio rouco, os argumentos furados de um Olavo de Carvalho.
vimos também, outro ponto importante de Williams, que maluquices propagadas em ecossistemas como o bolsonarista demandam justificativas, o que cria um verdadeiro mercado para racionalizadores –os famosos passadores de pano profissionais, sempre prontos a justificar as ações de sua tribo e respectivos líderes.
Em todos esses casos, na verdade, o que está em jogo é sustentar o grupo por vários meios. Crenças absurdas demonstram comprometimento, conferem prestígio, ajudam na mobilização interna e na difamação de adversários, além de serem usadas como teste de lealdade. Quem não as replica ou, pecado dos pecados, as contesta tende a perder status –é usual nas panelinhas sociais virtuais que céticos sejam expulsos ou rotulados com o estigma dos adversários (“comunistas”).
Como argumentam os pesquisadores Michael Barlev e Steven Neuberg (íntegra – 254KB), em bom complemento ao trabalho de Williams, essas crenças não precisam ser epistemicamente racionais (isto é, não necessitam mapear o mundo com precisão), mas elas são racionais do ponto de vista evolucionário. Competição de grupos, em última instância, foi o que nos trouxe até aqui.
E não pense que é só no ecossistema bolsonarista. Na esquerda, acredita-se que a Venezuela é uma democracia, que o impeachment de Dilma foi golpe e por muito tempo circularam conspirações que acusavam a facada em Bolsonaro de ter sido inventada.
O argumento sobre a racionalidade evolucionária de ideias que tendem ao absurdo ajuda a entender por que esforços para educar a população sobre fake news ou o controle sobre meios de comunicação tendem a ter um efeito muito menor do que seus proponentes imaginam. O jogo ocorre em outro nível, muito mais profundo.
Hamilton Carvalho, 51 anos, pesquisa problemas sociais complexos. É auditor tributário no Estado de São Paulo, doutor e mestre em administração pela FEA-USP e ex-diretor da Associação Internacional de Marketing Social. Escreve para o Poder360 aos sábados.

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