A tremenda paixão de Erasmo Carlos pelo futebol e por seu Vasco – Trivela

0
76

As arquibancadas do Maracanã e de São Januário eram como uma segunda casa para Erasmo Carlos. O carioca frequentou os estádios por décadas, desde sua infância, sem deixá-los mesmo quando havia se consagrado como uma das maiores figuras da música brasileira. O garoto que idolatrava Ademir e Bellini, depois, pôde se tornar amigo de Roberto – outro Roberto, o Dinamite. Erasmo compôs até um samba-exaltação ao seu Vasco. Era um torcedor daqueles doentes, que evitava compromissos no horário dos jogos e, se não dava para desmarcar, gravava a partida para assistir depois. “Nasci vascaíno e fiquei encantado com o Expresso da Vitória”, dizia.
Nesta terça-feira, o Brasil e a música brasileira perderam Erasmo Carlos, aos 81 anos. Para homenageá-lo, relembramos sua forte relação com o futebol. E por suas próprias palavras. Na autobiografia “Minha fama de mau”, o Tremendão possui dois capítulos dedicados ao esporte. No primeiro, ele reconstrói sua ligação com o futebol desde a infância e também com o Vasco, bem como o impacto que isso teve em sua vida. Já no segundo, Erasmo relembra uma passagem em que, antes da fama, encontrou-se com Pelé e recebeu elogios do Rei. Duas histórias deliciosas, que dimensionam bem a paixão do vascaíno pelo futebol.
É com profundo pesar que recebemos a notícia do falecimento do ilustre Vascaíno e símbolo da música brasileira, Erasmo Carlos.
"Sai da frente,
que o nosso Vasco vai passar…"
Sabemos que sempre estará conosco. Descanse em paz, Tremendão. 🖤🌹#VascoDaGama pic.twitter.com/R0W7B2lY7j
— Vasco da Gama (@VascodaGama) November 22, 2022

*****
Com a mesma idade que passei a odiar política, comecei a amar futebol. A bola de meia foi minha primeira “bola oficial” nas peladas infantis que rolavam no chão de cimento da Vila Matoso, com direito a risíveis, porém empolgadas, imitações dos locutores esportivos da época. Eu jogava e narrava ao mesmo tempo. Ary Barroso, com sua famosa gaitinha, era um dos que eu imitava. Incorporava artilheiros como Ademir Marques de Menezes na hora do gol, sempre comemorado com morteiros imaginários. De forma soprada e com emoção, emitia alto o som da letra “A”, para reproduzir o barulho da torcida ensandecida.
Eu havia sido arrebatado pela grande euforia e expectativa em torno da Copa do Mundo de 1950. Eu e a torcida do Brasil. O Rio de Janeiro, por ser a casa do Maracanã, respirava futebol. Na seleção brasileira havia um monte de jogadores do Vasco e acho que foi isso que provocou meu interesse pelo clube. Depois da derrota brasileira nessa Copa, eles voltaram para São Januário e foram campeões cariocas. A simpatia inicial foi virando admiração, até se transformar numa febre que um dia reconheci como paixão. Um amor tão forte que, depois da minha sagrada família e da música que me guia, é o maior da minha vida.
Nas peladas com meus amigos, a bola de meia evoluiu para a de borracha e depois para a de couro com gomos, que exigia o trabalho de passar vela nos sulcos para não estragar o barbante da costura. Aprendi linha de passe, embaixadinha, roda de bobo e ataque-defesa. No Vasco, novas gerações vencedoras foram aparecendo e eu já não era mais Ademir, e sim Bellini, meu grande ídolo até hoje.
A primeira vez que fui ao Maracanã, levado por seu Ângelo, meu vizinho na Vila Matoso, foi um impacto. Fiquei maravilhado ao constatar que o gramado era verde, a camisa do Bangu, branca com listras vermelhas, e a da Portuguesa de Desportos, verde e vermelha – acostumado a ver os jogos pela televisão em preto e branco, também na casa do seu Ângelo, jamais imaginei que ao vivo fosse tudo colorido.
Montei então um time de futebol de botão. Estava cansado dos botões convencionais de galalite com escudinho, então passei a raspar casca de coco em superfícies ásperas, até conseguir a forma arredondada desejada. Em seguida, lustrava com cera de assoalho, o que melhoraria muito seu desempenho ao deslizar. Valiam também botões de sobretudo, além de tampas de relógio de pulso, feitas de plástico transparente que eu mesmo pintava com esmalte de unha da minha mãe. As balizas eu também construía artesanalmente, cortando cabides com serra escolar tico-tico, pintando tudo de branco e colando redes de filó. As bolinhas podiam ser de rolhas, dadinhos, miolo de pão, papel laminado de bombom (amassado até ficar bem redondo), feltro ou botõezinhos de camisa.
Em 1956, seis anos depois daquela fatídica Copa, eu viveria um sonho. Num domingo, quando voltava do Maracanã, após um 2 a 1 do Vasco contra o Bangu, vi o ônibus do meu time parado em frente à minha casa na rua Professor Gabizo. Tomei um susto antes de me lembrar que do outro lado da rua morava o médico do Vasco, o dr. Valdir Luz. Ele havia convidado os jogadores para o seu aniversário. Fiquei boquiaberto ao ver as feras que idolatrava ali, bem pertinho de mim. Bellini, Orlando, Sabará, Vavá, Valter Marciano, Pinga e outros ficaram um tempão na festa, enquanto eu, numa atitude típica de torcedor, entrei correndo em casa e pendurei minha bandeira na janela, só para eles saberem que ali morava um vascaíno. Zagallo também morava na mesma rua e todos os dias acenava para mim quando ia comprar pão na padaria.
Minha “carreira futebolística” passou pelo futebol de salão e de campo (no time da rua do Matoso e no exército), por um teste no America Football Club e pelo time da gravadora Polygram (atual Universal), até que fui proibido de praticar esportes de impacto por culpa de uma hérnia inguinal e problemas na coluna. Hoje, meus filhos e eu temos uma pequena, porém especial, coleção de camisas com autógrafos de Djalma Santos, Pelé, Zico, Roberto Dinamite, Palhinha, Mazinho, Cláudio Adão, Bebeto, Zinho, Romário, Alcir Portela, Donato, Giovane e de todo o time do Vasco de 86 (essas ganhei num show meu no qual os jogadores foram), entre outros. Tenho também uma bola cujas assinaturas o tempo apagou, mas não me importa, porque sei quem as escreveu: Evaristo de Macedo, Alcir Portela, Felipe, Hélton e Euller.
Hoje, ao marcar algum compromisso, verifico se não vai coincidir com o horário dos jogos do Vasco. Se for o caso, peço desculpas e marco outra hora. Se não houve jeito, assumo o compromisso, mas faço de tudo para não saber o resultado – gravo o jogo para ver depois. Se alguém faz algum comentário sobre o jogo, ou um rádio ou uma TV nas redondezas transmite a partida, chego a tapar os ouvidos e gritar para abafar completamente todo e qualquer som externo.
Meus três filhos herdaram a minha paixão pelo futebol, mas, por um capricho dos deuses, Gil e Léo são flamenguistas e somente Gugu é vascaíno. Ele inclusive gravou comigo um samba-exaltação que fiz para o clube.

*****
Em 1964, lancei meu primeiro compacto, Terror dos Namorados / Jacaré, pela RGE Discos. Logo depois, fui para São Paulo divulgá-lo. Fiquei empolgado com as inúmeras oportunidades de trabalho que começaram a aparecer, o que no Rio não acontecia. Fui ficando, conhecendo pessoas, fazendo visitas a rádios, programas de TV e reportagens para revistas. O rock em português era uma realidade e tive a sorte de ser um dos primeiros a sacar isso. Só que a gravadora se responsabilizou apenas por quinze dias de hotel e refeições. Ao sentir a necessidade de incrementar a divulgação, teria que continuar lá por conta própria.
Aceitei então o convite da minha divulgadora e grande amiga Edi Silva, para morar por uns tempos em sua quitinete na avenida São João, em cima da loja Mappin. Eu estava ganhando uns trocados e ajudaria nas despesas.
Um dia, Ademarzinho Dutra, famoso DJ da época, me convidou para uma apresentação numa boate de Santos. Naquele tempo meus shows eram só eu e Deus – Ele representado pelo meu violão. Nem repertório conhecido eu tinha. Além das músicas que estava divulgando, só contava com Splish Splash e Parei na Contramão, que Roberto Carlos havia gravado. Então, “enchia linguiça” com meus sambas, completamente desconhecidos, e alguns rocks em erasmês. Um dos sambas, Moleque Trinta, que depois foi registrado por Luiz Carlos Ismail no disco Samba Jovem, era assim:
Moleque trinta já vem vindo da escola / Hoje vem contente, vem sorrindo feliz / Soube a lição, ganhou uma bola / Para brincar com sua solidão / É tão pretinho que de noite nem se vê / E não tem carinho de ninguém / Amanhã de manhãzinha, sua bola é seu café / Vai correndo começar a ser Pelé
Como estava em Santos, terra de Pelé, logicamente eu cantei o samba. A casa não estava cheia, mas foi legal. Depois do show, num camarim improvisado, chega Edi eufórica e diz:
“O Pelé taí! Tá com a namorada num cantinho lá no fundo e viu você cantar a música que você fala nele. Prestou muita atenção”.
Pelé estava lá. O camisa 10. Aquele que, ao lado de outro craque, anos depois, me faria imortalizar em verso um desejo oculto de torcedor: “Zico tá no Vasco, com Pelé”. Infelizmente, numa música chamada Pega na Mentira.
Na hora em que Edi me deu a notícia, engasguei com a bebida que tomava e não acreditei. Me enchi de coragem e fui falar com ele. No trajeto até a mesa, fui pensando: “Quem mandou eu botar o nome dele na música sem autorização? Ele não deve ter gostado, e vai me dar um esporro. O que é que vou dizer para ele?”.
Quebrei a cara. Pelé se levantou, me abraçou, foi simpaticíssimo. Disse ter gostado muito da música e desejou-me sucesso, enquanto eu, agora mais relaxado, contava que o vira fazer três gols no Maracanã, vestindo a camisa do Vasco, num combinado com o Santos, no 6 a 1 contra o Belenenses de Portugal. Ele sorriu com sua simplicidade e foi embora. Empolgado e ainda sem acreditar muito no que acabara de acontecer, eu não via a hora de contar a Roberto sobre meu encontro com o Rei Pelé.

source

Leave a reply