A violência de corromper a religião em nome da política – USP

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Por Danillo Lisboa, doutorando da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP
 
Entre os argumentos para incendiar a concorrência presidencial emergiram absurdos linguísticos, como: “haverá o fim do cristianismo”, “culto ao satanismo”, “proibição da palavra de Deus”, “a ideologia de gênero”, “o aborto”, “a ditadura anticristo”, “a implantação do comunismo no Brasil contra a religião”, “doutrinação”, entre vários outros.
O baixo calão utilizado para convencer os eleitores a votarem foi absurdo. E foi também absurda a convicção com a qual algumas pessoas passaram a aderir rapidamente a esses discursos sem qualquer senso crítico, demonstrando, claramente, que o Brasil falhou em uma parte significativa da educação de seus cidadãos. Até mesmo profissionais com ensino superior, que supostamente passaram por um treino científico, vêm aderindo a esses discursos sem criticismo ou reflexão. Alguns não sabem sequer o que tais conceitos significam, aderindo-lhes subitamente a partir das redes virtuais. Neste cenário, o que se evidenciou no mundo político brasileiro foi a estratégia de utilizar fantasias apocalípticas e/ou religiosas capazes de gerar comportamentos emocionados, irracionais e pavorosos em uma grande parte da população nacional.
Ao fazer o uso calculado e mal-intencionado da emoção e da fé das pessoas, certos políticos crescem e se fortalecem sem apresentar projetos sólidos que de fato resolvam problemas concretos da população brasileira, como: saúde, educação, moradia, alimentação e renda. A política atravessou a religião e descobriu no Brasil um potencial a ser manipulado e corrompido. No momento da eleição, muitos brasileiros encontraram-se emocionalmente convictos, sem qualquer fundamento concreto de que o atual presidente é um “enviado de Deus” e de que quem o contradiz é o “próprio demônio”. Assim, muitos preferiram acreditar que não estávamos em uma disputa eleitoral por projetos políticos, mas, sim, em uma “luta espiritual entre o bem e o mal”. A estratégia é tão eficaz para manipular o pensamento, que o atual presidente fez questão de usar repetidamente em seus discursos o recurso linguístico “a luta do bem contra o mal”.
Esse tipo de discurso ganha capilaridade social porque tem ressonâncias antropológicas e psicológicas muito básicas em cada cidadão. Em nossa existência, sabemos que a questão do mal nos apavora, pois a nossa condição humana guarda consigo uma vulnerabilidade e uma fragilidade que colocam o ser humano sedento de algo que o transcenda, que o faça perceber-se maior do que a precariedade das coisas que lhe acontecem e sobre a qual o ser humano não tem um poder total de controle e decisão. Exemplo disso são os próprios fatos que se dão na vida cotidiana como nascimentos, mortes, perdas, doenças, mudanças, envelhecimento, lutos e dores. Podemos ter algum controle sobre esses fenômenos, mas nunca um controle total.
É diante dessa consciência da imprevisibilidade e do mistério do existir que precisamos ardentemente de uma ideia de bem que afaste o mal e que nos garanta alguma segurança para guiar nossa existência. O que socialmente não aprendemos ainda é que o bem não é estático – como o uso político da religião quer fazer entender -, o bem em si é um mistério e uma busca contínua da condição humana. Mistério porque o bem para uma pessoa pode não ser para outra, e isso exige contínua interação comunitária que permita a reflexão dos próprios atos.
No decorrer da história, diante da necessária busca pelo “bem” (essa grande questão filosófica), a religião tem ocupado um lugar importante de resposta para a vida das pessoas, contribuindo para a orientação de diferentes povos e favorecendo, em alguns contextos, a convivência comunitária e o bem-estar espiritual. Em especial em situações difíceis da vida, diferentes seres humanos experimentam na religião e na fé um ponto fundamental de sustento e esperança. A gravidade da usurpação política da religião nas eleições de 2022 está na tentativa de encarnar o bem em um candidato e projetar o mal sobre o outro, corrompendo profundamente valores que deveriam sustentar as religiões e a política.
Esse fenômeno político-partidário de projeção do bem em um candidato revela muito mais as raízes de uma manipulação de massa do que de fato o alcance do “bem” que buscamos. São graves tais fenômenos porque há uma intenção clara e objetiva de fazer uso político da fé e da religião das pessoas, tirando da política a sua vocação originária de propor e construir projetos coletivos a partir da pluralidade de ideias. É grave, ainda, porque esse tipo de abordagem, além de corromper a religião e a fé popular, torna-se fonte de adoecimento psíquico, gerando conflitos entre sentidos pessoais que ligam a pessoa a sua religião e à realidade coletiva. Quando se mistura intencionalmente a religião com a política partidária, a discussão concreta (saúde, educação, moradia, renda) vira uma abstração e o Outro se torna um demônio concreto a ser excomungado. É assim que entramos todos em um grande culto a céu aberto sem comunhão.
Sabemos que as mudanças culturais em curso no século 21 questionam várias identidades e estruturas existentes há séculos e que a prolixidade linguística dos novos termos que surgem a cada dia cria, em boa parte das vezes, mais confusões que esclarecimentos. Sabemos ainda que a ampliação das informações tem gerado uma falta de clareza sobre as coisas, tornando difícil encontrar referências sólidas para seguir. Não à toa, a cada dia surgem centenas de influencers e gurus digitais buscando ocupar o vazio referencial deixado pelo nosso tempo de complexidades. São muitas as questões e poucas as referências, tornando a religião e a fé presas fáceis para os fundamentalistas políticos com pretensões de respostas absolutistas para tudo e todos.
Transformar candidatos em mitos ou demônios é uma fonte perigosa para deixar-se manipular. Por isso, resistir no trabalhoso, necessário e libertador exercício do pensar, sobretudo, nesta era do algoritmo, quando só enxergamos o que insistem em nos mostrar, poderá contribuir para ampliar a visão de bem. De modo prático, indagar todo uso político da fé e da religião das pessoas com perguntas objetivas, como: “qual o seu projeto para esta área específica?”, é também um bom antídoto. Tudo isso porque é urgente a necessidade de respostas objetivas e mensuráveis para o Brasil lidar com a fome, com a falta de educação, com a inflação, com os problemas na saúde e com os vários outros dilemas brasileiros.
Ao criar um cenário abstrato subsidiado por fantasias apocalípticas e religiosas, em que chegamos a ponto de um dos candidatos precisar explicar em rede nacional que “não conversou com o Diabo”, políticos brasileiros estão a construir um cenário infantilizado e doentio para a política e para a saúde mental de milhares de fiéis. Ao sustentar-se em abstrações, criadas propositadamente para gerar medos, ansiedades, caos, distorções e violência, nenhum projeto de futuro se consolida para o País. É preciso salvar a religião do uso político que está em curso no contexto político nacional, e que se agravou nestas eleições. Não será transformando políticos em mitos que resolveremos as questões complexas do nosso tempo. Pelo contrário, precisamos ampliar o uso da razão por meio do fortalecimento da convivência com a diversidade de ideias, sem endeusamentos, e solicitar soluções concretas para os problemas reais do País. É urgente questionar o uso perverso da religião e da fé das pessoas feitas por políticos dispostos a tudo, pois é assim que voltaremos a enxergar a gravidade dos seus atos individuais.
Não estivemos diante de uma luta do bem contra o mal nas eleições de 2022 no Brasil, estamos diante de um embate entre projetos políticos distintos. Quando essa maré de emoções terminar de passar e a consciência da gravidade do que vivenciamos vier à tona, a religião terá pago um preço alto demais por permitir que a corrupção política adentrasse seus templos. Não é confundindo fiéis ou manipulando informações que se alcança a verdade. Salvar a religião da usurpação política continuará a ser um imperativo ético aos autênticos fiéis.

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Por Fernando Facury Scaff, professor da Faculdade de Direito da USP
Por Charles Mady, professor da Faculdade de Medicina da USP
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