Alcides Bahia: como deputado negro foi embranquecido no jornal que dirigiu – UOL Confere
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Patricia Alves Melo é professora titular da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e bolsista de produtividade do CNPq. Orienta na pós-graduação de História da mesma instituição. É doutora em História (UFF/RJ) e desenvolve pesquisa nas áreas de História Indígena e do Indigenismo, História colonial/imperial (Brasil), História da escravidão africana na Amazônia e História da Ciência. Atualmente, é investigadora visitante na Universidade de Lisboa. É autora de vários capítulos, artigos e livros, entre eles, “Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia” (2012) e “O Fim do silêncio: presença negra na Amazônia” (2011 e 2021).
Colunista do UOL
23/11/2022 04h00
Uma grande agitação tomava conta do Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, naquele dia. Entre os oradores, estava José do Patrocínio (1854-1905), famoso intelectual negro, jornalista e abolicionista. Não há muitos detalhes sobre o evento. Alguns dizem que era uma festa cívica, outros falavam em comício. Nem a data é precisa. Algo entre 1895 e 1898. Vou ficar devendo essa.
Só sei que quem viu fez questão de registrar os discursos inflamados, mas um, em especial, provocou comoção. O jovem negro Alcides Bahia (1878-1934), paraense, aluno da Escola Politécnica, poeta e ativista republicano falou com tanta energia que recebeu um beijo de um comovido Patrocínio. O episódio foi recuperado por Nei Lopes, reconhecido intelectual negro carioca e militante dos direitos do povo negro, em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana.
Duas décadas depois, Alcides Bahia retornaria ao Rio, como deputado federal eleito pelo Amazonas com a maior votação da sua bancada. Entre os 195 parlamentares eleitos em 1924, ele era o único homem negro. E, por pouco, não tomou posse porque sua eleição foi contestada.
Apesar do risco de seu mandato, acabou diplomado graças a uma mobilização política que atravessou o país. Literalmente. Foi a enérgica atuação do Centro Cívico Alcides Bahia, criado em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 1924, que garantiu a posse como deputado federal pelo estado do Norte.
Hoje, o notável orador, a despeito de sua incrível trajetória intelectual e política na Amazônia, é relembrado pelo Jornal do Comércio (JCAM), que ele dirigiu em Manaus e é citado entre seus “líderes”, como um homem branco de fartos bigodes.
O periódico foi procurado por email e mensagem pelo UOL, mas não retornou o contato. Quando fizer, o posicionamento será incluído neste artigo
Fundado com o objetivo de defender os interesses da “raça etíope”, sob a presidência de Eusébio Barcellos Queiroz Coutinho, o Centro Cívico Alcides Bahia enviou contundente mensagem ao presidente da República, Arthur Bernardes (1922-1926). Nela, os intelectuais e militantes negros pelotenses denunciaram a tentativa de degola do deputado recém-eleito “sob o pretexto de ser negro” e demandaram o empenho de Bernardes em defender o princípio constitucional da igualdade impedindo aquela tentativa de não-diplomação. Alguns podem dizer (como já disseram) que tal intervenção foi vã, mas fato é que Alcides assumiu a cadeira no parlamento. A essa altura, você, leitora/leitor, pode se perguntar: como isso foi possível?
Não era a primeira vez que a intelectualidade militante negra de Pelotas se articulava dessa maneira. Na verdade, em 1909, mobilização similar foi feita para dar apoio à diplomação do deputado federal Manoel da Mota Monteiro Lopes (1867-1910) considerado por muitos o primeiro parlamentar negro da República. Carolina Viana Dantas e Juarez Silva Jr, historiadores que se dedicaram à sua trajetória, revelam muitos episódios de discriminação racial que enfrentou ao longo da carreira. Sua posse foi o resultado de uma impressionante rede nacional de articulação política que reuniu diferentes organizações de trabalhadores, entre outras a citar. Essa história vale muito a pena ser conhecida, mas não é dela que vou falar hoje e, por isso, sugiro outras fontes.
Quero destacar a capilaridade dessas redes políticas excepcionais que se conectavam, especialmente, por meio da imprensa. Vejam só. Monteiro Lopes mantinha conexões com associações negras de vários lugares, entre elas, a Federação Paulista dos Homens de Cor, e com lideranças negras como Rodolfo Xavier, em Pelotas, fundador do jornal “A Alvorada”, que se tornou uma referência nas lutas por direitos do povo negro.
Rodolfo Xavier foi figura central na mobilização em torno do deputado, inclusive com a criação do Centro Etiópico Monteiro Lopes que se encarregou de chegar ao presidente da república, Afonso Penna (1906-1909), a indignação contra o preconceito sofrido e demandando o reconhecimento do mandato, somando-se ao grande movimento articulado para garantir os direitos políticos de Monteiro Lopes. O rico trabalho da historiadora Beatriz Loner analisa outras dimensões desse processo.
Onde quero chegar? Saibam vocês que Rodolfo Xavier também estava na diretoria do Centro Cívico Alcides Bahia, repetindo a estratégia bem-sucedida de mobilização por meio da imprensa com fortes vínculos com movimentos sociais organizados. Importante notar ainda que a imprensa era usada como forma de divulgação de pessoas negras “de destaque”. Bahia, por exemplo, apareceu em uma dessas listas no jornal paulista “Clarim da Alvorada”.
Verdade seja dita, essa não é a primeira rede de intelectuais negros, articulada nacionalmente, por meio da imprensa. Uma leitura cuidadosa de “Escritos de Liberdade”, livro da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, ajuda a iluminar questões cruciais para nossa conversa: a relação de pessoas negras com a política na passagem da monarquia para a república, o protagonismo e ativismo político, além das redes de relações que conectavam um número expressivo de intelectuais de diferentes lugares.
As histórias de Lopes e Bahia não seriam as únicas tentativas de degola de parlamentares negros e negras na história do Brasil. Nosso tempo também registra e reitera a pergunta da mesma historiadora: Afinal, gente negra pode se eleger?
Não quero que as histórias de Bahia, de Monteiro Lopes e de tantas outras pessoas negras sejam tomadas como parte de um repertório que é, de modo usual, classificado na categoria “outras histórias”. Eu me explico. Essas não são histórias “extraordinárias” e que, inadvertidamente, são tomadas até mesmo como histórias de “superação”. O assunto aqui é muito diferente. Importa pautar é o modo como se estão constituindo (e se conformando como hegemônicos) modelos de narrativas históricas.
Há um ano, em um emblemático 20 de Novembro, era tempo de marcar os 50 anos da criação do Dia da Consciência Negra. A Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros planejou e construiu algo radicalmente novo e distinto de tudo que já havíamos experimentado. Em vez de atender demandas de veículos de comunicação com temas, na maioria das vezes, formatados no senso comum que reduz a experiência negra à escravização, resolvemos montar uma ocupação na imprensa brasileira. Foram mais de 40 artigos publicados em todo o país. A pauta foi toda nossa. A história toda, junto com os artigos, está aqui.
Por que lembro disso? Porque foi assim que a coluna Presença Histórica nasceu e, nesse novembro, completamos um ano de atividades. Esta é uma coluna da Rede de Historiadores, expressa sua horizontalidade e seus compromissos políticos com letramento histórico.
É uma ação articulada de História Pública comprometida com uma historiografia que não compactue com a exclusão e nem com a reprodução de uma narrativa hegemônica de negação da humanidade da maioria da população desse país. Atuar em rede, para nós, significa também construir modelos e estratégias de produção intelectual que não reiterem as mesmas chaves de apagamento e silenciamento. A luta contra a negação da humanidade de gente negra e indígena também é uma luta contra essas (e outras) estratégias de invisibilização.
Alcides Bahia é um exemplo. Foi figura atuante no cenário intelectual amazônico, respeitado orador, presente em instituições como a Mina Literária no Pará, Associação Amazonense de Imprensa e foi um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras, reconhecido como seu primeiro poeta negro. Além do parlamento, trabalhou em vários jornais, articulado com outros intelectuais negros em Manaus e Belém. É co-autor de um trabalho essencial sobre a imprensa no Amazonas escrito com J. B. Faria e Souza. Ainda assim, a memória de Bahia foi sendo esmaecida até o ponto de ter sua imagem substituída nas histórias institucionais da imprensa manauara.
Como bem disse Edson Cardoso, no seu livro “Nada os trará de volta”, é preciso falar do “silêncio que recobre em nossa história, pessoas, experiências, memórias. Um silêncio que desafia nossa própria sobrevivência. Não sobrevive um coletivo impedido de compartilhar sua própria experiência – a qual simplificada, distorcida, se transforma em alguma coisa completamente diferente.” Volto à pergunta: Que histórias e que memórias de país queremos construir?
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
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