Antes da Lei das Estatais, empresas viviam rotina de corrupção; relembre – Gazeta do Povo
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Pelo menos oito estatais federais e 12 fundos de pensão brasileiros foram alvos de operações policiais contra a corrupção nas últimas duas décadas. Os temores de que histórias assim se repitam ganharam força com a manobra da Câmara dos Deputados para afrouxar a Lei das Estatais e facilitar a indicação de políticos para essas empresas às vésperas da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Os casos mais notórios são o do mensalão, que veio a público ainda no primeiro mandato de Lula, e do petrolão, revelado pela Operação Lava Jato a partir do último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT).
O mensalão foi revelado em 2005 pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) depois que um apadrinhado dele nos Correios foi flagrado recebendo propina. Acuado pelas denúncias de que comandava um esquema de arrecadação de propina na estatal, Jefferson denunciou que o governo Lula pagava uma mesada a deputados federais para que votassem a favor de projetos de interesse do Planalto. Embora o PT tenha sido apontado como o principal beneficiário, o mensalão contava com a participação de outras legendas, como PTB, PSB, PP e PL.
Nove anos depois, um escândalo de corrupção na Petrobras virou o centro das atenções. As investigações do petrolão desvendaram um esquema de contratos fraudulentos e pagamento de propinas para financiar partidos e políticos aliados do governo, além de um cartel formado por grandes empreiteiras do país. A Operação Lava Jato alcançou, além de dirigentes petistas, parlamentares de outras legendas, como MDB, PP, PSDB, PSB e DEM (que em 2022 se fundiu com o PSL e formou o União Brasil).
Além de Correios e Petrobras, outras estatais foram envolvidas de uma forma ou de outra em escândalos, como o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB, depois privatizado), Transpetro (subsidiária da Petrobras), Furnas e Eletronuclear (ligadas à Eletrobras), Caixa Econômica e Banco do Brasil.
Em paralelo, fundos de pensão (previdência complementar fechada) de estatais estiveram envolvidos em denúncias de fraudes, aparelhamento partidário e má gestão, sendo alvo de investigações dentro da CPMI dos Correios em 2006 e uma CPI específica na Câmara dos Deputados em 2015 e 2016.
A primeira, no âmbito da apuração do mensalão, envolveu os fundos Prece (CEDAE), Nucleos (Eletronuclear), Real Grandeza (Furnas e Eletronuclear), Geap (30 órgãos públicos entre ministérios, universidades federais, fundações e institutos), Serpros (Serpro), Portus (Companhia Docas), Refer (Rede Ferroviária Federal S/A), Postalis (Correios), Centrus (Banco Central), Petros (Petrobras), Funcef (Caixa) e Previ (Banco do Brasil).
Já na segunda, uma evolução da CPMI dos Correios, se apurou que recursos dos fundos foram usados para viabilizar investimentos de infraestrutura de interesse do governo e também ajudar na expansão das chamadas “campeãs nacionais”. Somente três desses fundos – Petros, Funcef e Postalis – tiveram perdas calculadas em R$ 56 bilhões.
Aprovada em 2016, após o afastamento de Dilma de Presidência da República, a Lei das Estatais buscou profissionalizar a gestão e blindar as empresas controladas pelo Estado e também as agências reguladoras de interferências político-partidárias. Um de seus principais artigos veda a indicação de políticos que tenham participado da estrutura decisória de partidos ou de campanhas eleitorais nos 36 meses anteriores, prazo que os deputados decidiram reduzir para apenas 30 dias. Essa alteração ainda depende de aprovação do Senado – que deve ficar para 2023 – e de sanção presidencial para entrar em vigor.
A legislação também obriga que os altos cargos de direção das estatais sejam ocupados por pessoas com notório saber da função e reputação ilibada, o que confere mais profissionalismo à gestão das companhias.
“A lei blinda que as estatais sejam usadas, por exemplo, como cabide de emprego, ou que se façam investimentos em projetos ruins que são usados para desviar recursos. É mais difícil pressionar um diretor que tem uma reputação a zelar do que um político que foi colocado ali”, diz Felipe Pontes, diretor operacional da consultoria Economatica.
Para o senador Oriovisto Guimarães (PR), líder do Podemos no Senado e que vem criticando a alteração da lei, a permissão para a indicação de políticos servirá para “arrumar emprego pra cerca de 200 parlamentares que não foram eleitos”, segundo afirmou em entrevista à GloboNews.
Para o professor Jefferson Oliveira Goulart, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), a legislação provocou um endurecimento excessivo nas indicações às estatais. “É óbvio que esse personagem [indicado pelo presidente para presidir uma estatal] não pode ser qualquer pessoa. Mas é preciso sim estar afinado programaticamente com as ideias que consagraram e legitimaram o governo, e que tenha o conhecimento técnico para lidar com os temas e problemas destas empresas. Não acho que devemos personificar um ou outro, e sim ter controles e mecanismos de ‘accountability’, de prestação de contas das empresas públicas”, avalia, observando que os casos de corrupção nas estatais envolveram vários partidos e também servidores de carreira.
Para Goulart, tais práticas decorrem de uma fragilidade nos mecanismos de controle e combate à corrupção. “O Estado brasileiro é muito suscetível aos interesses privados, uma cultura patrimonialista endêmica. E isso, evidentemente, estimula a ação de agentes privados no sentido de capturar ilicitamente os recursos que essas grandes empresas operacionalizam”, completa.
A preocupação do mercado com a mudança na Lei das Estatais não é à toa. Até o último ano do governo Dilma, em 2016, empresas como Correios e Petrobras enfrentaram dificuldades financeiras.
Na empresa postal, por exemplo, a Controladoria-Geral da União (CGU) apontou uma redução de aproximadamente 90% no patrimônio líquido entre os anos de 2011 e 2016 (veja o relatório completo aqui). No ano seguinte, o lucro bruto despencou aproximadamente 40%, com uma queda de aplicações financeiras de curto e longo prazo de R$ 2 bilhões para R$ 990 milhões.
“No período de 2011 a 2016, a empresa apresentou crescente degradação na sua capacidade de pagamento no longo prazo, aumento do endividamento e da dependência de capitais de terceiros, e principalmente, redução de sua rentabilidade, com a geração de prejuízos crescentes a partir do exercício de 2013”, disse a CGU.
Parte dessa crescente degradação se deu por conta de obrigações trabalhistas de aumento salarial e demissões que, mais ao fim do período, demandaram um acordo com o Tribunal Superior do Trabalho (TST) para estancar a sangria dos problemas de gestão.
Em 2017, os Correios apresentaram um plano de recuperação com 40 iniciativas estratégicas e 15 indicadores e metas para reverter as contas até 2022. A partir daquele ano, a estatal reverteu os sucessivos prejuízos que alcançaram R$ 3,9 bilhões entre 2013 e 2016, e registrou resultados líquidos que somaram 6,160 bilhões até 2021 – ano em que o lucro chegou ao recorde de R$ 3,7 bilhões.
O mesmo aconteceu com a Petrobras, que conseguiu reequilibrar as contas após a Lei das Estatais, com um programa de venda de ativos e uma política de preços independente das vontades do governo de plantão.
Em 2014, quando a investigação veio à tona, a Petrobras registrou o primeiro resultado negativo desde 1991, com um prejuízo de R$ 21,5 bilhões. Foram quatro anos consecutivos de perdas até que, em 2018, a estatal voltou a registrar lucro – R$ 25,7 bilhões.
Desde então, a petrolífera acumulou ganhos de R$ 40,1 bilhões em 2019, R$ 7,1 bilhões em 2020 – um recuo ligado à queda da demanda global de combustíveis por conta da pandemia da Covid-19 – e R$ 106,6 bilhões em 2021.
“Desde que a lei foi criada, a Petrobras teve lucros recordes, diminuição do seu endividamento – chegou a ser uma das empresas mais endividadas do mundo –, desinvestiu de ativos que não eram bons, e reduziu seu endividamento. Isso claramente é uma das consequências da criação da Lei das Estatais”, afirma Anand Kishore, gestor dos fundos de investimento da Daycoval Asset.
Entre os desinvestimentos da companhia, estão a desistência de concluir as obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), iniciado em 2008 e nunca concluído após se gastar R$ 47 bilhões, além de outras obras que não saíram do papel, como as refinarias Premium 1 e 2 no Maranhão e no Ceará, respectivamente, que geraram perdas de R$ 2,7 bilhões.
A Transpetro, subsidiária da Petrobras, saiu do radar dos desinvestimentos da companhia. A estatal foi alvo de uma das fases da Operação Lava Jato, em 2020, por suspeita de corrupção em operações de compra e venda de navios em 2008. Outra fase da Lava Jato descobriu um esquema de corrupção que arrecadou R$ 11,9 milhões em propinas em 2010.
Em 2018, quatro vice-presidentes da Caixa foram afastados pelo então presidente Michel Temer (MDB) após recomendação do Banco Central e do Ministério Público Federal (MPF), alguns deles por ligação com casos de corrupção descobertos ao longo da Lava Jato.
Foram descobertos esquemas de pagamento de propina e lavagem de dinheiro envolvendo diretores do banco e deputados, e a manipulação de investimentos dos fundos de pensão Funcef e Petros em ativos superavaliados.
Em meados de 2014, a então presidente Dilma Rousseff nomeou como vice-presidente corporativo do banco o primeiro-tesoureiro do PTB, Luiz Rondon, em um acordo pelo apoio do partido à sua reeleição. No entanto, Rondon já tinha sido alvo de investigações do mensalão em 2005, quando ocupava a diretoria de gestão, planejamento e meio ambiente da Eletronuclear, subsidiária da Eletrobras que operava as usinas nucleares de Angra dos Reis (RJ).
Além da Caixa, outros políticos tiveram mais cargos em estatais por acordos de apoio ao PT, como Benito Gama, ex-presidente do PTB e nomeado vice-presidente de governo do Banco do Brasil na primeira gestão Dilma. E o ex-deputado Geddel Vieira Lima (MDB) na vice-presidência corporativa e de pessoa jurídica da Caixa.
Após a aprovação da Lei das Estatais, que afastou políticos ligados às vice-presidências, a Caixa teve um salto nos lucros, de R$ 4,1 bilhões em 2016 para R$ 17,3 bilhões em 2021.
O Banco do Brasil, ainda, foi usado para desviar recursos de contratos de publicidade com o pagamento de um “pedágio” de 2% que era enviado ao PT, segundo denunciou o empresário Marcos Valério durante as investigações do mensalão. Segundo ele, tido como “operador” do esquema, os repasses superaram os R$ 400 milhões, e o dinheiro foi usado para pagar parlamentares do Congresso Nacional entre 2003 e 2005.
Na mesma época, foi descoberto um esquema de pagamento de propina envolvendo o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), com a perda de R$ 12,2 milhões e a saída do então diretor, Lídio Duarte, ligado ao ex-deputado Roberto Jefferson (PTB).
Em 2020, Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras nos governos petistas, foi condenado a seis anos e oito meses de prisão pelo crime de corrupção passiva em ação relacionada à Operação Lava Jato. Conforme a denúncia, ele teria recebido R$ 3 milhões da Odebrecht, em 2015, para proteger a empreiteira em contratos da Petrobras.
As duas estatais ligadas à geração de energia foram citadas durante as investigações do mensalão e do petrolão como escoadouros de dinheiro para abastecer os cofres do PT e de partidos aliados, e para o pagamento de deputados.
Em uma das fases da Lava Jato, por exemplo, o ex-ministro de Minas e Energia entre 2005 e 2007, Silas Rondeau, foi preso por fraudes na Eletronuclear. Em outra operação, realizada em 2015, o ex-presidente da estatal, o almirante da reserva Othon Luiz Pinheiro da Silva, foi indiciado pela Polícia Federal por suspeito de receber propina na construção da usina de Angra 3 – investigadores apontaram, na época, um montante que poderia chegar a R$ 30 milhões.
Em 2015, o então procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, do Ministério Público Federal, afirmou que tanto a Eletronuclear como a Petrobras estavam ligadas nos esquemas de corrupção do mensalão e do petrolão desde o governo Lula, a partir da Casa Civil. Na época, José Dirceu, então ministro da pasta, se tornou réu por supostamente ter recebido R$ 11,8 milhões em contratos fechados pela Engevix Engenharia para obras da estatal petrolífera.
Outra subsidiária da Eletrobras, a Furnas Centrais Elétricas, também foi alvo de investigações por um esquema semelhante ao do mensalão em meados de 2006. Na época, as investigações apresentadas pelo MPF resultaram na denúncia de 11 pessoas, entre empresários, lobistas, dirigentes e funcionários da estatal.
O caso ficou conhecido como “lista de Furnas” e envolvia políticos supostamente beneficiados com dinheiro desviado da estatal com sede no Rio. O esquema reproduzia o praticado no mensalão, segundo a procuradoria. A corrupção em Furnas foi citada nas delações premiadas do doleiro Alberto Youssef e do lobista Fernando Moura, na Lava Jato. Ambos apontam como beneficiário de desvios o então senador Aécio Neves (PSDB-MG), que negou as acusações.
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