Argentina usou 30 anos da Guerra das Malvinas para retomar reivindicação; relembre – UOL
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Em abril de 1982, tropas argentinas chegaram às ilhas Falklands (ou Malvinas, na denominação de Buenos Aires) numa tentativa de retomar o arquipélago, que desde 1833 é de domínio britânico.
A guerra durou ate meados de junho, manteve a soberania do Reino Unido e terminou com o saldo de 649 mortos do lado da Argentina. O conflito completou 40 anos neste 2022; na efeméride de três décadas, reportagem da Folha mostrou como o governo argentino tentou usar a data para voltar a reivindicar o território —demanda que ainda perdura, em alguma medida, e irrita os moradores locais, que veem o pleito por soberania como obstáculo para romper o isolamento.
Leia a seguir o relato de 2012 da correspondente Sylvia Colombo, publicado à época na Ilustríssima.
O telefone de Patrick Watts, o jovem radialista da Falkland Islands Broadcasting Station, não havia parado de tocar durante toda a madrugada. Do outro lado da linha, habitantes de Stanley (Puerto Argentino), a capital e única cidade das ilhas Falklands (Malvinas), tinham virado a noite lhe contando como passaram as primeiras horas daquele 2 de abril de 1982: com a chegada das tropas argentinas.
Havia na época 1.800 habitantes nas ilhas, sendo 1.100 em Stanley e o resto espalhado pelo território.
Além de Stanley, o arquipélago tem pequenas vilas, como Darwin (homenagem ao cientista, que visitou as ilhas em 1833) e Goose Green. A capital e as vilas estão em East Falkland (isla Soledad, para os argentinos). Em West Falkland (ou Gran Malvina), vivem só fazendeiros. As Malvinas têm hoje 3.200 habitantes [pelo Censo de 2021, 3.662], com 1.800 deles vivendo em Stanley.
Depois da guerra, o Reino Unido incentivou a migração de famílias para trabalhar na indústria da pesca, que passou a responder por quase 70% do Produto Interno Bruto. Londres concedeu aos habitantes cidadania britânica, com vários benefícios. Cerca de 54% dos atuais moradores nasceram nas ilhas, 25% no Reino Unido, 14% na ilha de Santa Helena e 5% no Chile. O inglês é a língua oficial e a mais falada, embora o espanhol seja ouvido, por conta dos cerca de 200 moradores chilenos e 29 argentinos.
Enquanto levava ao ar o relato dos “kelpers”, os habitantes das ilhas, Watts recebia na rádio os primeiros soldados argentinos, que pediam para usar o banheiro e tomar água. Educadamente, eles impunham novas regras, como a obrigatoriedade da transmissão em espanhol. Entregaram a Watts fitas com mensagens aos habitantes, gravadas em Buenos Aires.
“Eles diziam que eram nossos amigos e que nada ia mudar em nossas vidas. Mas logo estavam impondo sua língua e obrigando todo mundo a dirigir do lado contrário [nas Falklands dirige-se na mão-inglesa]”, conta Watts.
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Naquela madrugada, os argentinos desembarcaram numa tentativa de “recuperação” do arquipélago, dominado pelos ingleses desde 1833, quando colonizadores argentinos foram expulsos do local. Até hoje, o resgate dessas ilhas frias, ventosas e isoladas, localizadas a 500 km da Patagônia, é uma reivindicação quase unânime na Argentina, da direita dos ditadores dos anos 1970/1980 à esquerda da atual presidente Cristina Kirchner [atualmente, em 2022, ela é vice de Alberto Fernández].
O ataque daquela fria manhã de abril de 1982 foi ordenado pelo general Leopoldo Galtieri, que procurava comover o país com uma campanha nacionalista para, no fundo, salvar uma ditadura militar (1976-83) já em seus estertores. Multidões foram às ruas para apoiar o envio das tropas.
O escritor Martin Caparrós, ex-militante montonero, que tinha acabado de voltar ao país após seis anos na Europa, diz que era impossível não se emocionar. “Via as pessoas indo para as ruas, gritando, cantando. Para mim, que via de fora, era estranho. Depois concluí que nós, argentinos, somos patrioteiros. Se não é com Maradona, é com as Malvinas.”
A guerra durou pouco mais de dois meses. Com tecnologia e forças superiores, além de mais experientes, o Reino Unido derrotou os argentinos em 14 de junho. Fizeram diferença os aviões Sea Harrier, trazidos a bordo dos HMS Hermes e HMS Invincible, e o reforço dos temidos “gurkhas”, brigada de guerreiros nepaleses do Exército britânico.
Os argentinos tinham a seu favor a proximidade das ilhas e a possibilidade de enviar aviões maiores para o combate, além da boa artilharia antiaérea e dos mísseis Exocet, para atingir navios.
Entre Exército, Marinha e Aeronáutica, a Argentina enviou mais de 14 mil homens. O Reino Unido, 29,7 mil. O saldo foi de 649 mortos do lado argentino e 255 do lado britânico, além de três “kelpers”.
Essas três únicas vítimas civis morreram na casa do escritor John Fowler. Abrigadas em sua casa de pedra, que destoa da maioria das construções de madeira, as mulheres foram atingidas por granadas lançadas por britânicos.
“Foi erro de cálculo, uma fatalidade”, diz Fowler, hoje subeditor do jornal local Penguin News. “Lembro-me das três, uma delas tinha 80 anos. Foram à minha casa porque parecia segura. Eu tinha criado um verdadeiro bunker na sala. Mas não pude evitar a tragédia. Uma delas morreu na cozinha, com uma xícara de chá nas mãos.”
Hoje há unanimidade da opinião pública e dos governos, tanto na Argentina como no Reino Unido, de que a guerra era desnecessária e absurda, pela desproporcionalidade dos dois Exércitos. Mas o desenlace não era evidente.
Quando os argentinos entraram em Stanley, estavam na cidade 68 Royal Marines. Eles tentaram resistir, mas se renderam. A foto desses rapazes submetidos às tropas argentinas causou furor em Buenos Aires e a clara sensação de que era possível vencer o conflito.
“Não fui para uma guerra. Fui retomar umas ilhas com a promessa de virar herói e voltar para casa rápido. Não achávamos que os ingleses reagiriam. Tinha medo de morrer e de ter que matar”, diz Roberto Herrscher, que tinha 19 anos ao ser enviado ao conflito.
“Não sabíamos nada. Fomos designados para um barco, mas no meu grupo ninguém nunca tinha navegado. Nossa referência eram os filmes de guerra. Tentávamos segurar as armas, andar, atuar como os soldados dos filmes.”
Herrscher diz que foi escolhido porque sabia falar inglês. Na guerra, serviria também como tradutor.
O ex-combatente lembra o poema de Jorge Luis Borges, “Milonga do Morto”, de 1985, que no Brasil saiu no volume “Poesia” (Companhia das Letras, 2009). Era dedicado aos soldados das Malvinas: “Ouviu vivas e ouviu morras,/ ouviu o clamor da gente./ Ele só queria saber/ se era ou não era valente.” Para soldados de 18, 19 anos, como Herrscher, esse era o desafio.
“Chegamos às ilhas e nos medimos com os que tinham chegado semanas antes. Nós os víamos como heróis. Dois meses depois, eu andava entre prisioneiros feridos pensando como havíamos sido levados ao engano e a um pesadelo.”
Vinte e quatro anos depois do conflito, em 2006, Herrscher, hoje professor de jornalismo na Espanha, decidiu revolver o passado e contá-lo no livro “Los Viajes de Penélope” (Tusquets, 2007), no qual reconstrói, paralelamente, a história do grupo de sete soldados que integrou e a do barco, Penélope.
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A escuna era uma embarcação histórica construída nos anos 1920 pelo alemão Gunther Pluschow, herói da Primeira Guerra, que pretendia desbravar a Patagônia. Na guerra, o Penélope foi usado para ajudar a abastecer tropas e vigiar algumas baías das ilhas.
Para pesquisar, Roberto Herrscher voltou à Argentina e às ilhas. “O retorno, ir ao cemitério onde estão meus colegas, teve poder curativo. Fez com que sentisse orgulho da minha profissão. Não escrevi memórias, fiz uma investigação jornalística.”
O vento, companhia mais frequente dos habitantes das ilhas, sopra mais forte nos descampados. Num deles, próximo a Darwin, fica o cemitério onde foram enterrados 237 corpos de soldados argentinos. O único ruído que se ouve ali é o choque dos rosários pendurados nas cruzes.
No governo de Carlos Menem (1989-99), que fez acordos de reaproximação com as ilhas, o cemitério era cuidado, e famílias de ex-combatentes, estimuladas a viajar para homenagear seus mortos.
Desde o começo dos problemas entre a gestão Kirchner e o governo britânico, o cemitério está abandonado. “Avisamos aos argentinos que é preciso cuidar dele, mas eles não enviam ninguém, nem dinheiro. É triste”, diz Jan Cheek, parlamentar local. Algumas lápides estão identificadas, outras têm a inscrição “Soldado argentino, somente conhecido por Deus”.
Quando a guerra terminou, as famílias britânicas puderam escolher entre levar seus mortos para a Inglaterra ou enterrá-los nas ilhas. Essa opção não foi dada às famílias argentinas. O governo quis que os corpos ficassem nas ilhas como símbolo da luta. Os restos dos poucos soldados ingleses que ficaram estão no cemitério de San Carlos, não longe do Darwin, num local mais bem cuidado, perto do mar.
Mas nem todos os mortos argentinos estão em Darwin. Muitos jamais tiveram os corpos recuperados do mar. É o caso dos mais de 300 soldados mortos no afundamento do ARA General Belgrano, em 2 de maio. Sob ordem direta da premiê Margaret Thatcher, o navio foi eliminado, causando uma escalada na brutalidade da guerra.
As marcas da guerra estão também nos locais das batalhas mais memoráveis. Um deles é do vilarejo de Goose Green, então habitado por 90 pessoas —hoje, por 120.
Em Goose Green, na época, viviam famílias que cuidavam da criação de ovelhas. Havia também uma pequena escola. Hoje, há ainda uma cafeteria, onde fotos e mapas lembram a batalha local.
Os argentinos chegaram ali em 4 de abril, a bordo do Isla de los Estados. A tomada de Goose Green teve um episódio curioso. O tenente Juan Gomez Centurion preparou um discurso para fazer ao administrador do povoado. Só que os argentinos tinham um endereço antigo do homem, e Centurion acabou falando à pessoa errada, o dono da loja de suprimentos locais —que, no fim, o levou de moto até o verdadeiro administrador.
O discurso era esse: “Estamos aqui para libertá-lo do colonialismo. Você levará sua vida como sempre e construiremos uma grande base aqui para protegê-lo.”
Os argentinos não imaginavam que os moradores fariam espionagem, passando informações aos soldados ingleses por rádio. Quando entenderam isso, aprisionaram os “kelpers” num galpão.
Com a chegada dos ingleses, em 28 de maio, houve um enfrentamento nos arredores da vila, um descampado que dificultava trincheiras. Os britânicos chegaram por ar, e os argentinos responderam com a artilharia antiaérea.
Mais perto de Stanley ocorreram os embates que levaram à capitulação argentina.
Em Wireless Ridge e Mont Longdon, montanhas sujeitas a fortes ventos, há vestígios da passagem dos soldados. Entre pedras que foram usadas como proteção, há pás, objetos de cozinha e restos de barracas, além dos buracos onde os argentinos se abrigavam do frio.
“Os principais inimigos dos argentinos foram o frio e a fome”, diz Fowler. “Foi um imenso desperdício de vidas. Os militares argentinos têm culpa, mas Thatcher tem mais. Deveria ter pensado duas vezes antes de enviar as tropas.”
A batalha de Tumbledown foi levada a cabo em 13 e 14 de junho. Com os ingleses estavam a guarda escocesa e os “gurkhas”, totalizando 900 do lado britânico, contra 500 argentinos. Ao fim, morreram 40 soldados.
Às vésperas dos 30 anos do conflito, o governo argentino voltou a reivindicar as ilhas em fóruns internacionais. Exige que o Reino Unido acate determinação da ONU e dialogue sobre a soberania do território. Os britânicos se recusam, evocando o princípio de autodeterminação dos ilhéus.
Nos últimos meses, a Argentina conseguiu o apoio dos países do Mercosul, mais parte do Caribe. O país acusa a Inglaterra de “militarizar” a região, com o envio de navios e submarinos de guerra. Nas últimas semanas, o príncipe William, segundo na sucessão do trono inglês [em 2022 ele se tornou o primeiro, com a morte da rainha Elizabeth 2ª e a ascensão do rei Charles 3º], esteve entre os oficiais na base militar de Mount Pleasant. William vem realizando exercícios como piloto de helicóptero.
“Acho essa politicagem uma falta de respeito. Se os líderes vissem as tumbas e notassem como a guerra marcou os sobreviventes, ficariam calados”, diz Daniel Biggs, que nasceu um ano após conflito e integra uma milícia civil de defesa das ilhas. “Ninguém quer amanhecer como naquele 2 de abril. Por isso acordo cedo e treino todo dia. É preciso estar vigilante.”
A Falkland Islands Defence Force é um grupo de voluntários criado em 1892. Na guerra de 1982, os argentinos prenderam membros da força e a declararam ilegal. Financiada pelo governo local, com orçamento de 400 mil libras por ano, tem pouco mais de cem integrantes, com armas para combate terrestre e treinamento para operações de resgate. O comandante é o pai de Daniel, Peter Biggs.
Os últimos dias nas ilhas foram tristes para Roberto Herrscher, que serviu como intérprete entre os comandantes ingleses e os argentinos prisioneiros. “Havia insultos dos dois lados, assim como pedidos de ajuda dos feridos. Eu não sabia o que traduzir.”
Muitos argentinos foram levados a um galpão para ovelhas em Goose Green. Dias depois, começaram a ser devolvidos, levados à Patagônia. Dali, no meio da noite, a Buenos Aires. O governo argentino não queria que aparecessem à luz do dia como sinal do fracasso.
Hoje, no galpão, apesar de as ovelhas terem recuperado sua casa, ainda estão inscritas do lado de fora as letras “POW” (prisioner of war). Sempre que tentam apagar, aparece uma nova pichação.
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