As lembranças do Marrocos x Portugal de 1986, a primeira vitória dos marroquinos em Copas e o maior caos dos portugueses – Trivela

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Marrocos x Portugal se reencontram em uma Copa do Mundo, e as memórias do que ocorreu naquele 11 de junho de 1986 são completamente distintas às duas seleções. Os Leões do Atlas experimentaram no Estádio 3 de Marzo uma de suas maiores vitórias mundialistas. A equipe treinada pelo brasileiro José Faria dependia apenas do empate para se classificar, depois de ficar no 0 a 0 contra Inglaterra e Polônia. Foi então que conquistou sua primeira vitória na história das Copas, com um inapelável 3 a 1 no placar. Com isso, os marroquinos não só avançaram, como também terminaram na liderança da chave. Pela primeira vez a África tinha seu representante num mata-mata. Já aos portugueses, ficou a vergonha da eliminação precoce, numa jornada completamente turbulenta, especialmente pelos conflitos entre jogadores e dirigentes . O “Caso Saltillo” quase rendeu até CPI no país.
Era um momento badalado de Portugal, afinal. A Seleção das Quinas vinha de uma campanha marcante na Euro 1984, quando encerrou uma ausência de 18 anos fora das grandes competições e alcançou as semifinais, vendendo muito caro a derrota para a poderosa França de Michel Platini. Já a classificação ao Mundial aconteceu num grupo duríssimo que reunia Alemanha Ocidental, Suécia, Tchecoslováquia e Malta. Não foi uma campanha tão regular dos lusitanos, especialmente pelas derrotas diante de suecos e alemães em casa. Entretanto, a Seleção das Quinas compensou fora. Bateu a Suécia por 1 a 0 em Solna, logo na primeira rodada. Já no compromisso final, um memorável triunfo por 1 a 0 sobre a Alemanha Ocidental em Stuttgart, gol de Carlos Manuel, botou os lusos no México.
Marrocos, por sua vez, precisou passar pelas intrincadas Eliminatórias na África. Eram tempos em que apenas duas seleções do continente alcançavam o Mundial. Os Leões do Atlas tinham a experiência da Copa de 1970, num período relevante de seu futebol em termos continentais, mas a equipe passou por uma entressafra no início dos anos 1980 e chegou a se ausentar de duas edições da Copa Africana de Nações. No fim das contas, cresceu no momento certo. Primeiro, o time disputou os Jogos Olímpicos de 1984, por mais que tenha ficado pelo caminho no grupo de Alemanha Ocidental e Brasil. Já durante as Eliminatórias, o grande desafio aconteceu na penúltima fase, quando os marroquinos despacharam o Egito. Na etapa decisiva, derrotaram a Líbia e carimbaram o passaporte ao lado da Argélia. Outro sinal concreto de que os ventos sopravam a favor viria na CAN 1986, quando até tomaram o troco dos egípcios, mas alcançaram as semifinais.
O elenco de Marrocos era treinado por José Faria, treinador nascido no Rio de Janeiro que fez seu nome em países árabes. Depois de treinar a base do Fluminense e revelar diversos talentos, seria convidado para dirigir a seleção sub-20 do Catar na esteira do bom trabalho de Evaristo de Macedo. Depois comandaria clubes locais e de lá faria sua ponte a Marrocos, primeiro ao FAR Rabat, depois com a seleção. Convertido ao islamismo, Faria marcaria a história nos Leões do Atlas. Ainda contava com o apoio de Jorvan Vieira, outro fluminense a dirigir os clubes marroquinos com sucesso. Filho de portugueses e igualmente convertido ao islamismo, tornaria-se o auxiliar de Faria naquela jornada rumo ao México. Posteriormente, Vieira também ganharia fama por levar o Iraque ao título da Copa da Ásia em 2007.

Já dentro de campo, o elenco de Marrocos tinha alguns jogadores em atividade na Europa, especialmente em clubes da França e da Suíça. O principal deles era o meia Aziz Bouderbala, destaque do Sion campeão da Copa da Suíça. Outra companhia de relevo no meio era Mustapha El Haddaoui, que defendia o Lausanne. Entretanto, os principais protagonistas vinham de clubes locais. Mohamed Timoumi vestia a camisa 10 e era considerado o grande cérebro dos Leões do Atlas. Estava em alta, depois de conquistar a Champions Africana em 1985 com a camisa do FAR Rabat, em temporada que também rendeu o prêmio de Melhor Jogador Africano do Ano. Já na defesa, enquanto Mustapha El Biyaz servia de esteio na linha de zaga, Badou Zaki estava pronto para fazer história. O goleiro do Wydad Casablanca se colocaria como uma figura lendária, considerado entre os melhores do mundo naquele período.
Já do lado de Portugal, 20 anos depois da histórica participação na Copa de 1966, os ecos daqueles tempos permaneciam presentes na figura do técnico José Torres. O antigo ídolo do Benfica assumira o comando da Seleção das Quinas depois da Euro 1984. Já dentro de campo, a forte equipe misturava principalmente destaques do Porto e do Benfica. O Dragão cedia o ponta-de-lança Fernando Gomes, bem como o prodígio Paulo Futre. Já entre os benfiquistas estavam o goleiro e capitão Manuel Bento, ao lado do meia Carlos Manuel entre as lideranças. Todavia, na convocação, chamavam atenção também as ausências de alguns sportinguistas. Rui Jordão ficou de fora por entrar em declínio após a estupenda Euro 1984. E a decisão de deixar de fora Manuel Fernandes, goleador do Campeonato Português pelos leoninos, causou ruído.
A história de Portugal naquela Copa do Mundo chamaria bem mais atenção pelos entraves do que pelo futebol. A começar pelo corte de António Veloso, lateral do Benfica que acabou pego no exame antidoping. Os jogadores avaliaram que não houve apoio suficiente ao jogador por parte da federação e, de fato, depois sua inocência seria provada. Mas aquele seria apenas o início dos embates. A preparação da Seleção das Quinas, afinal, beirou o caos. A equipe se concentrou em Saltillo, cidade ao norte do México onde também ficou a Inglaterra. Os relatos são de que o hotel onde se concentravam os lusitanos não tinha as melhores condições, longe de garantir uma boa preparação. Prova disso ficava no campo de treinamentos inclinado, localizado numa encosta, que dificultava as próprias atividades com bola.
Ao longo das semanas em que Portugal se acostumava ao clima e à altitude do México, os amistosos se concentraram com equipes amadoras. Já o maior absurdo aconteceu num duelo marcado diante do Chile, que acabou cancelado depois que a federação portuguesa não quis pagar os valores pedidos pelos adversários. No fim das contas, a Seleção das Quinas bateu bola com um time formado por cozinheiros e outros funcionários do hotel. Isso sem contar com as frequentes noitadas relatadas, com os portugueses acusados de frequentarem a zona do meretrício local.

Publicamente, o “Caso Saltillo” estourou com uma rebelião do elenco de Portugal. Se os jogadores de Benfica e Porto não costumavam se dar tão bem, eles se uniram para botar a federação contra a parede. Exigiam o pagamento de premiações melhores, em relação ao prometido pela entidade. Além disso, se recusavam a vestir os uniformes de treino com marcas de patrocinadores. Os atletas portugueses chegaram a participar de atividades somente de cuecas e alguns até mesmo nus, embora os treinos abertos à imprensa vissem os futebolistas com camisas de treino do avesso. Chegaram a fazer uma greve às vésperas da estreia, enquanto apareciam em festas.
A essa altura, o caso já ganhava repercussão nacional. O assunto era debatido no parlamento e alguns políticos pediam que os jogadores “voltassem para casa por envergonharem a pátria”. O próprio presidente pediu bom senso aos atletas, embora concordasse que a reivindicação por melhores premiações era justa. O presidente da Federação Portuguesa de Futebol, afinal, não se esforçava. Silva Resende se recusava a sequer se encontrar com os atletas, protegido pelas mordomias oferecidas pela Fifa.
Quando a bola rolou, Portugal esteve em campo para enfrentar a Inglaterra em Monterrey e parecia com sangue nos olhos. Venceu a estreia por 1 a 0, gol de Carlos Manuel. Enquanto isso, Marrocos não deixava de chamar atenção ao segurar o empate por 0 a 0 contra uma Polônia afamada pelas Copas recentes. Na rodada seguinte, seria a vez dos ingleses sucumbirem diante dos Leões do Atlas. O novo empate por 0 a 0 reforçava os elogios ao sistema defensivo do time de José Faria, especialmente pelas atuações do goleiro Badou Zaki. Enquanto isso, a Seleção das Quinas ligava o sinal de alerta. Perdeu por 1 a 0 diante dos poloneses, tento de Wlodzimierz Smolarek, num resultado que começava a transparecer as rachaduras. Além do mais, a perda do goleiro Manuel Bento antes desse jogo, com uma fratura sofrida no treino, custava uma liderança fundamental.
Na rodada final, Marrocos e Portugal se enfrentavam em Zapopan, região de Guadalajara. Em tempos de dois pontos por vitória e classificação dos melhores terceiros colocados aos mata-matas, a situação ainda era razoavelmente acessível aos dois times. Um empate poderia classificar ambos, e isso foi inclusive sugerido pelo técnico José Faria. Entretanto, José Torres afirmou que só o triunfo interessava aos portugueses e incomodou os jogadores marroquinos pelo teor de suas declarações. Foi o momento em que os Leões do Atlas, de fato, apresentaram sua qualidade. E transformaram a crise dos portugueses em desastre, com a vitória por 3 a 1.
A qualidade de Marrocos ficou evidente desde os primeiros minutos, com bom toque de bola e chegadas mais perigosas. Os Leões do Atlas não tinham receios de finalizar e mandavam frequentes tiros contra a meta de Vítor Damas. Enquanto isso, o capitão Badou Zaki não tinha tanto trabalho assim sob os paus, com intervenções seguras. E se o aviso parecia claro aos lusos, ele se concretizou em gol com apenas 19 minutos. Abderrazak Khairi roubou a bola nos arredores da grande área, deu uma finta seca no marcador e soltou a pancada de fora da área, no canto da meta de Vítor Damas. Nesse momento, a Seleção das Quinas dependia de uma reação. Ia ficando de fora porque, no jogo paralelo, Gary Lineker já tinha marcado dois gols diante da Polônia.
Entretanto, sem nem recobrar o sentido, Portugal tomou o segundo gol de Marrocos aos 27. Foi uma pintura de Khairi, ponta que fazia parte do forte FAR Rabat. Numa jogada pela direita, Abdelmajid Lamriss fez o cruzamento alto e o atacante marroquino passou livre do outro lado. Somente dois defensores protegiam a área portuguesa e não chegaram a tempo para bloquear o chute. Méritos também de Khairi, que pegou na veia e acertou o canto da meta de Damas, com um tiro potente. Antes do intervalo, Futre ainda mandou um chute pelo lado de fora da rede, mas era pouco ao que os lusos necessitavam. Até porque Lineker já completara sua tripleta e consolidara os 3 a 0 que, naquele momento, classificavam tanto Inglaterra quanto Polônia abaixo dos marroquinos. Segundo o livro ‘Lembrar um Mundial para Esquecer’, de Rui Miguel Tovar, José Faria teria falado aos jornalistas na saída para os vestiários: “Este treinador português é burro. Meteu-se com os meus meninos e se fodeu”.
Durante o início do segundo tempo, Portugal tentou realizar um bombardeio contra a meta de Marrocos. Zaki estava inspirado. O goleiro fez uma defesaça num chute de longe de António Sousa, antes de também salvar uma cabeçada de António Oliveira. A insistência do time de José Torres não dava resultado, por mais que reclamassem de um pênalti negligenciado pelo árbitro norte-irlandês Alan Snoddy. E a pá de cal veio num contragolpe, concluído por Abdelkrim Merry, com um leve toque na saída de Damas. Era o terceiro gol de Marrocos, aos 17 do segundo tempo. Ficava tarde para buscar a reação, especialmente num time português que não era bem conhecido pela união.
Portugal conseguiu descontar aos 35 do segundo tempo. Numa saída de Zaki, o goleiro trombou com o zagueiro e a sobra ficou viva nos pés de Diamantino, que deu um belíssimo toque por cobertura. Isso reavivou os portugueses, que voltaram a insistir, principalmente com Futre e Fernando Gomes na frente. De qualquer maneira, o milagre já estava distante. O placar se encerraria mesmo em 3 a 1. Os portugueses ficaram pelo caminho, bem distantes de repetir a fama de 1966. Já Marrocos conquistava a primeira vitória de sua história em Copas e se tornava a primeira equipe africana a alcançar os mata-matas, logo na primeira posição de uma chave tão difícil.

O sonho de Marrocos se encerraria nas oitavas de final, até porque o chaveamento foi bastante difícil: a Alemanha Ocidental aparecia no caminho. Zaki voltou a se agigantar na meta dos magrebinos e colecionou milagres ao longo da tarde. Porém, aos 42 do segundo tempo, Lothar Matthäus garantiu o triunfo por 1 a 0 do Nationalelf. O craque cobrou uma falta e teve auxilio do morrinho artilheiro para finalmente vencer o paredão dos Leões do Atlas. O reconhecimento de Zaki, entretanto, seria bem maior que os quatro jogos do Mundial. Foi eleito o Melhor Jogador Africano do Ano em 1986. Também descolou uma transferência para o Mallorca, se transformando em ídolo histórico do clube. Foi eleito o melhor goleiro de La Liga em três oportunidades e usava a braçadeira de capitão na final da Copa do Rei de 1990/91. Curiosamente, perdeu para o Atlético de Madrid capitaneado por Paulo Futre.
Já do lado de Portugal, a crise teve suas consequências. O técnico José Torres se demitiu, enquanto parte do elenco seria suspensa nos meses seguintes. “Nas reuniões entre os jogadores e a federação, o presidente nunca dava a cara. Mandava sempre o Amândio de Carvalho e o César Grácio [outros dirigentes]. Depois da eliminação, pela primeira vez, teve de se confrontar conosco e nós com toda a raiva do mundo. É essa a viagem que provoca o afastamento de oito colegas meus da seleção. Lembro-me muito bem dessa viagem e lembro-me muito bem de chegar a Portugal e de sentir vergonha ao reencontrar o meu pai”, relembrou Futre, em entrevista ao zerozero. “Naquela altura, para nós, só federação é que estava mal. Mas todos cometeram erros, dirigentes e jogadores. Foi uma vergonha a forma como não soubemos representar Portugal”.
Os embates impactaram nas campanhas seguintes de Portugal. A Seleção das Quinas chegou a empatar em casa com Malta no qualificatório da Euro 1988. Enquanto isso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi ventilada no país para discutir os temas relativos à preparação, sobretudo a queda de braço pelos patrocínios. Não seria simples remendar os problemas nos anos seguintes. Não bastou a força continental de Porto e Benfica naquele momento para garantir outras participações do país em Euro ou Copa do Mundo, em situação que seria abrandada apenas pela geração de talentos surgida a partir dos anos 1990. Quase quatro décadas depois, a grandeza da seleção de Portugal é outra. Mesmo assim, existem memórias de 1986 que ficam, especialmente quando Marrocos ressurge do outro lado.
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Abaixo, as páginas do Diário de Lisboa antes e depois do jogo. O detalhe fica para o discurso repetido sobre a Batalha de Alcácer-Quibir, evento histórico ocorrido em 1578, no atual território de Marrocos, em que o rei Dom Sebastião desapareceu na batalha contra os islâmicos – causando grande impacto na constituição do estado português e ainda originando o mito do “sebastianismo”, de que um dia o monarca ressurgiria para dirigir os lusitanos a dias melhores.

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