Bolsonarismo e violência política: uma questão de responsabilização – JOTA

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ataque à democracia
As instituições permaneceram de pé, mas para que isso se consolide, ainda há muito trabalho pela frente
O maior ataque às instituições democráticas no pós-1988, ainda que tenha se dado há poucos dias, já possui contornos bem claros: premeditado, anunciado, convocado e organizado. Essas características afastam, pelo menos em parte, explicações comportamentais centradas somente no afloramento de uma mentalidade de turba durante os atos de depredação do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.
Os atos de 8 de janeiro de 2023 tinham uma finalidade: causar distúrbio social apto a pretender uma inconstitucional intervenção militar ou algum outro tipo de ruptura que favorecesse o grupo político que se dirigiu a Brasília. Um grupo que se recusa a reconhecer a legitimidade do resultado das eleições presidenciais de 2022. Seus objetivos golpistas se enquadram em uma narrativa e forma de percepção da política própria do movimento bolsonarista.
Tornou-se bastante difundida a ideia de que, contemporaneamente, faz mais sentido alcançar uma finalidade política autocrática e de perpetuação no poder através das instituições jurídicas. Todo um vocabulário foi desenvolvido nesse sentido com erros e acertos. 
Não há novidade no fato de líderes políticos subverterem o direito em seu favor. Talvez o que se possa acrescentar, sem necessidade de reinvenções conceituais, é a complexidade dos movimentos autoritários atuais: além de um legalismo autocrático, há o manejo de redes sociais, desinformação em massa, radicalização da polarização, entre outros fatores. 
Aprendizados comparados e transdisciplinaridade indicaram que é necessário perceber causas de índole comportamental coletiva e transnacionalidade nos movimentos pautados pelo iliberalismo e por um tipo específico de populismo acentuadamente hostil às instituições da democracia constitucional.
Democracias se deterioraram em diversas regiões do mundo. O Brasil não fugiu do quadro global. Nossas peculiaridades, contudo, erigiram um contexto não totalmente favorável à consolidação do autoritarismo. 
De um lado, a erosão constitucional foi perceptível em vista do limitado tratamento de problemas transicionais; do aprofundamento da desigualdade social; do insulamento de um Judiciário elitista (característica também presente no Ministério Público); de uma contraditória rede de decisões que judicializavam a megapolítica; do protagonismo de organizações ilegais, como milícias, na política; da militarização dessa mesma política; e da incapacidade de lidar com a digitalização informacional, para elencar apenas alguns fatores. 
De outro lado, o projeto autoritário liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro encontrou obstáculos internos e externos: a incapacidade de seu líder de se pautar pelo direito (ainda que para deturpá-lo); a dificuldade de lidar com forças políticas que preferiam a linguagem do dinheiro (leia-se, centrão); um sistema federalista com, pelo menos, alguns incentivos contra a centralização; e, sim, a preferência majoritária popular por menos radicalismo, mais pragmatismo político e democracia.
É quase impossível enxergar homogeneidade no movimento que apoiou Bolsonaro. Mas ele existe e tem uma forma; não fosse isso, não se explicaria os votos obtidos e a perpetuação de suas ambições políticas.
Sociólogos, filósofos, juristas e cientistas políticos procuram definir seu desenho fundamental, que é eminentemente iliberal. É um movimento que enxerga apenas direitos da maioria, nunca de minorias – talvez essa seja a melhor explicação para que ele não aceite ser apenas oposição no contexto político atual.
O bolsonarismo reivindica uma compreensão própria de liberdade, mas nunca com responsabilidade. No calor da violência de 8 de janeiro de 2023, seguindo o roteiro, bolsonaristas acusavam aqueles que cometiam crimes em Brasília de serem infiltrados. Nessa dinâmica, é possível enxergar outra característica do movimento, o exacerbado oportunismo político. No caso, oportunismo que é levado às últimas consequências: não importam os aliados, eles atendem a objetivos específicos e podem ser rapidamente descartados.
Mas o segundo domingo de 2023 (com todo o cuidado para não tornar a data um ícone) apontou uma característica central do movimento. Uma das dificuldades de melhor defini-lo se assentava na impossibilidade de reconhecer que sua metodologia se baseia apenas na deterioração democrática por meio do próprio direito. 
Pelo contrário, a violência política está na raiz do movimento. Ela ganhou corpo, há muito, na trajetória política de Jair Bolsonaro, principalmente como violência verbal. Mas ela também aparecia como violência física: planejar explodir unidades militares, associar-se a milicianos e seus ganhos políticos (um ponto que o novo governo deveria ter todo o cuidado de evitar, mas parece deslizar sobre ele), agredir e defender (quando não executar) a eliminação física de opositores políticos.
Tudo isso inflamado por um discurso reiterado de agressões às instituições por parte de Bolsonaro: não cumpriria decisões judiciais; não aceitaria medidas que prejudicassem a si ou aos seus; diversas vezes, durante seu governo, ameaçou golpes de Estado e até “previu” o que viria a ocorrer no último dia 8. Some-se a isso a ausência de reconhecimento efetivo do resultado eleitoral de 2022 e sua conveniente partida para os Estados Unidos antes do fim do mandato (em verdade, abandonando o cargo).
O cerne de algum grau de controle do bolsonarismo centra-se, assim, em contrapor-se à sua característica irresponsabilidade: significa gerar mais responsabilidade em todas as esferas relevantes, observando, sempre, o devido processo legal.
Certamente, há uma agenda educativa de preservação das instituições constitucionais, mas isto é para o longo prazo. A democracia, em perigo, não espera. Diferentes camadas indicam como propiciar imediata responsabilização.
A organização de um amplo contingente de pessoas mostrou-se um trunfo do bolsonarismo. Não foram poucos os que se dirigiram a Brasília. Haverá, sim, muito trabalho (e necessário) para a Polícia Federal identificar e triar os mais de mil acusados detidos nos últimos dias. 
O que é preciso é contornar o discurso que pode fortalecer a ideia de que havia justificativa para as ações. Assim, celeridade é importante para separar os que estavam acampados dos que destruíram prédios, ainda que seja necessário depurar quem ficou em barracas no momento dos eventos, mas foi fundamental em atos de planejamento. 
Essa complexa tarefa deve ser feita considerando-se que ainda há algum apoio aos atos de invasão das sedes dos Poderes: 10% das reações nas redes ou 18,4% de entrevistados não são, de forma alguma, percentuais irrelevantes. Assim, definir e responsabilizar aqueles que praticaram os crimes dos arts. 359-L e 359-M do Código Penal (além de outras infrações) é fundamental para demonstrar que as instituições não tolerarão ataques à democracia.
Certamente, medidas de responsabilização civil, administrativa e criminal também devem atingir apoiadores, estimuladores e financiadores dos atos. Isso envolve apurar a responsabilidade daqueles que financiaram o deslocamento e manutenção dos agentes criminais em Brasília, de veículos de mídia que estimularam os ataques – como a Rádio Jovem Pan, já sob investigação do Ministério Público Federal – e do próprio do ex-presidente Bolsonaro.
Deve-se reiterar que a militarização mais recente da política trouxe consequências nefastas para o bom funcionamento das Forças Armadas e das forças auxiliares.
O que se viu no 8 de janeiro de 2023 foi a mais clara condescendência da Polícia Militar do Distrito Federal, que, inicialmente, escoltou os radicais e, posteriormente, foi vista tirando fotos dos protestos e confraternizando com manifestantes.
É possível afirmar que esta condescendência foi um reflexo da postura de altas autoridades da força policial: o Comando da PM-DF, o ex-secretário de Segurança Pública do DF e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres – que se encontrava na Flórida – e o governador agora afastado do DF, Ibaneis Rocha, que se omitiu até depois da eclosão da violência na praça dos Três Poderes.
As consequências jurídicas das ações e omissões praticados por esses atores já podem ser percebidas com a determinação da prisão do ex-secretário de Segurança Pública do DF e do ex-comandante da PM, e com o afastamento, por 90 dias, de Ibaneis, que agora enfrenta pedidos de impeachment.
Entretanto, é necessário apurar também a responsabilidade de militares das Forças Armadas, principalmente do Exército. A leniência com os acampamentos em frente aos quartéis, por várias semanas, bem como a oposição à sua retirada, demonstrava que a instituição não se opunha à contestação do resultado eleitoral e, até mesmo, à reivindicação de um golpe de Estado pelos bolsonaristas.
Outras evidências também apontam para a necessidade de responsabilização de membros das Forças. Há indícios, por exemplo, da participação de militares nos atos, e de que militares do Gabinete de Segurança Institucional garantiram impunidade de agentes criminais protegendo sua saída do Palácio do Planalto. Nada explica, ainda, a razão pela qual se opuseram à desmobilização dos acampamentos em Brasília na data dos eventos.
Além dessas medidas, também se faz necessária a responsabilização de atores políticos que contribuíram para o caos. No Senado Federal, a iniciativa para a instauração de uma CPI já cumpriu todos os requisitos necessários, restando apenas a aprovação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para que a comissão seja instaurada.
Uma vez que o apoio e até mesmo a participação não se restringiu a membros do Legislativo federal, também é necessário que Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais cumpram seus papéis nas investigações e, em caso de violações, responsabilizem seus membros, inclusive por meio da cassação de mandatos.
Por fim, é importante aferir a responsabilidade – por comissão ou omissão – de outras autoridades que tiveram papel determinante na escalada da violência. Por um lado, o ministro da Defesa, José Múcio, que desde antes de sua posse foi complacente com os acampamentos antidemocráticos em frente aos quartéis. Por outro lado, o procurador-geral da República, Augusto Aras, que, apesar de ágil para processar professores universitários que o criticam, atuou contra membros do MPF que investigavam atos golpistas, e agiu apenas quando não tinha mais opção e as medidas necessárias já haviam sido tomadas.
Em conclusão, é possível afirmar que o decreto de intervenção federal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ágil e vigorosa resposta das instituições da república foram bons pontos de partida para assegurar o controle de atos criminosos. É central, contudo, conduzir uma pormenorizada definição de responsabilidades. As instituições permaneceram de pé, mas para que isso se consolide, ainda há muito trabalho pela frente.
Emilio Peluso Neder Meyer – Professor associado de Direito Constitucional da UFMG. Pesquisador em Produtividade do CNPq. Coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG
Felipe Guimarães Assis Tirado – Visiting Lecturer e doutorando em Direito no King’s College London (KCL). Mestre em Direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao CJT/UFMG, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute
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