Cenário de instabilidade jurídico-política consolidou novo Marco do … – JOTA

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Esforços da ANA para adaptação à nova legislação foram perceptíveis ao longo dos anos pelos atores do setor
A edição da Medida Provisória 1.154, de 1º de janeiro de 2023, provocou grande alvoroço no setor de infraestrutura e virou notícia em diversos veículos de comunicação, que enfatizaram a modificação do papel e das atribuições da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A medida gerou agitação ao alterar a competência da agência para editar normas de referência e regular o setor de saneamento[1] que, aparentemente, teriam sido transferidas para a estrutura interna do Ministério das Cidades.  
Foram sentidas reações econômicas quase instantâneas[2]. Isso se deu, sobretudo, no âmbito do mercado de capitais, cujas estatais listadas em bolsa perderam parcela não desprezível de seus valores de mercado.  
E por que nesse caso o barulho no mercado foi alto? Desde a publicação do novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), foi conferida à ANA, autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, a finalidade de implementar, no âmbito de suas competências, a Política Nacional de Recursos Hídricos e de instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. 
As novas atribuições e competência regulatórias, antes limitadas aos recursos hídricos, demandaram inúmeras adaptações de cunho técnico, organizacional, operacional, de governança, entre outros, a um custo econômico-financeiro significativo. 
Os esforços da ANA para adaptação à nova legislação foram perceptíveis ao longo dos anos pelos atores do setor e foram indicando ao mercado uma robustez institucional e regulatória. Inclusive, esse foi um dos pontos questionados por muitos quando da edição do novo marco, mas felizmente superado com o passar do tempo. 
De forma geral, quanto maior o nível de permeabilidade da intervenção política em setores regulados e sobre os prestadores de serviços públicos, menor é o interesse em adquirir e manter ações de sociedades sujeitas a tais políticas. Isso porque o acionista deixa de ter previsibilidade acerca das ações que serão impostas à companhia. Aliás, a mera percepção de instabilidade já gera efeitos devastadores no mercado. 
Os raros exemplos de empresas de saneamento listadas em Bolsa, como a Sabesp e a Sanepar, parecem ter um ponto em comum: um ambiente regulatório minimamente independente e técnico, sujeito à existência de agências reguladoras autônomas, com mandatos de diretorias intercalados entre os diferentes governos.  
Nessa linha, a Sabesp conta com a atuação da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp), enquanto a Sanepar conta com a Agência Reguladora do Paraná (Agepar). A atuação política, nesses casos, fica muitas vezes restrita, se limitando a chancelas de reequilíbrios contratuais ou tarifários, aplicados por meio de normativos técnicos definidos pela própria agência.  
A realidade, contudo, é que a maioria dos estados e municípios brasileiros não detém capacidade financeira e operacional para sustentarem agências com pessoal qualificado, que sejam reconhecidos e denotem confiança no mercado. Daí viria o papel primordial da ANA, como uma padronizadora nacional de metodologias analíticas de averiguação da qualidade dos serviços prestados e de regras contratuais de reequilíbrios econômico-financeiros, composições tarifárias, reversibilidade de bens, entre outros.  
As chamadas “normas de referência” poderiam constituir instrumento capaz de amadurecer o arcabouço institucional de saneamento (dando mais previsibilidade e segurança jurídica ao setor) e potencializando, quem sabe, o desenvolvimento no mercado de capitais no âmbito das companhias de saneamento (não somente estatais, mas concessionárias privadas e futuras empresas privatizadas).  
Movimentos governamentais que geram incertezas — que, diga-se de passagem, não são exclusividade do âmbito federal e nem do atual momento político brasileiro — podem ter impacto significativo no retrato de subdesenvolvimento do mercado acionário de empresas de saneamento listadas em bolsa.  
O posicionamento do mercado ficou evidente após a publicação da MP 1.154. É essencial que se dê condições para que a ANA possa atuar como ente regulador independente e autônomo, em conformidade com as delimitações do novo marco.
A boa notícia é que o governo federal pareceu sensível a essa percepção e indicou, por meio de declarações e notícias, que o arranjo da ANA na MP teria sido equivocado e será corrigido[3] 
O interessante é que o conceito de regulação independente no setor foi introduzido pelo primeiro Marco Legal do Saneamento — a Lei 11.445, nos idos de 2007 (segundo mandato do atual presidente). A partir daquele momento, agências ao redor do Brasil passaram a fiscalizar — ainda que de maneira incipiente – a qualidade dos serviços prestados por empresas estatais e concessionárias. Até mesmo em benefício da população mais carente, uma boa regulação é importante. 
Diga-se de passagem, para além da segurança jurídica, a função primordial de uma agência é, mesmo, defender o consumidor. Muito da reação contrária à uma regulação independente deve derivar do receio de algumas empresas de saneamento que não oferecem um serviço de qualidade para a população. Historicamente, no intuito de não explicitar a ineficiência dessas empresas – em sua maioria estatais – opuseram resistência a um fiscalizador externo que cobre delas melhores entregas aos usuários.  
De qualquer modo, mesmo com eventuais desgastes, o governo federal sinalizou um maior fortalecimento do novo marco. Essa vitória do novo Marco do Saneamento — embora tenha se dado em meio a um cenário político, digamos, conturbado — pode ser uma sinalização positiva de que um ambiente mais robusto ao investimento será respeitado e continuado.
[1] A agência havia tido sua subordinação transferida para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e, aparentemente, sua competência regulatória de saneamento transferida para o Ministério das Cidades. Contudo, as competências da agência no novo Marco do Saneamento não tinham sido transferidas, gerando grandes dúvidas acerca do arranjo realizado. Veja-se mais em: Empresários do setor de saneamento reagem a mudanças em agência – 03/01/2023 – UOL Economia. Acesso em 4 de janeiro de 2023.  
[2] Somente as cinco principais estatais federais perderam cerca de R$ 31,8 bilhões em valor de mercado. Pontua-se que isso não é exclusividade das alterações feitas em relação à ANA. Veja mais em: Estatais perdem R$ 31,8 bilhões em valor de mercado no primeiro pregão do ano (cnnbrasil.com.br). Acesso em 4 de janeiro de 2023. Mesmo assim, estatais importantes de saneamento perderam valor de mercado. A cotação das ações da Sabesp, por exemplo, saiu de uma cotação média de R$ 56 por ação (em 30 de dezembro) para uma média de R$ 53 em 3 de janeiro, conforme o índice SBSP3 • BVMF.
[3] Autoridades do novo governo informaram que a competência regulatória da ANA será mantida, inclusive para edição de normas de referência. Veja-se, por exemplo: Miriam Belchior diz que Agência Nacional de Águas deve manter regulação do saneamento | GloboNews Mais | G1. Acesso em 4 de janeiro de 2023.
Isadora Cohen – Secretária-executiva de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo. Sócia licenciada da ICO Consultoria. Fundadora e apresentadora do Infracast. Presidente Infra Women Brazil. Professora do MBA de PPPs e Concessões da PUC Minas e do MBA LSE FESP
Luísa Dubourcq Santana – Pós-graduada em Direito Administrativo e mestra em Direito do Estado e Regulação pela Universidade Federal de Pernambuco. LLM em Regulação e Infraestrutura pela Universidade Católica de Pernambuco. Certificada pela APMG International como CP3P-F. Sócia da ICO Consultoria
Ana Carolina Sette – Pós-graduada em Direito Ambiental, MBA em Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas pela PUC Minas. Consultora jurídica na área de Direito Público e Infraestrutura e sócia da ICO Consultoria
Matheus Silva Cadedo – Graduando pela FGV Direito SP.  Aluno da Escola de Formação Pública (EFp) da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
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