Charanga, 80, luta para continuar exibindo 'a alma lírica de um povo' – UOL

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Houve um tempo em que o barulho da multidão não era parte do jogo de futebol. Ruídos incomodavam.
A arquibancada já não era exatamente silenciosa nos anos 1940, mas narizes se torceram quando uma bandinha passou a frequentar as partidas do Flamengo. “Uma charanga”, observou, jocosamente, Ary Barroso. O goleiro do São Cristóvão reclamou que as cornetas o atrapalhavam.
Mas era um caminho sem volta.
A participação do público era incentivada pelos clubes, pela imprensa e pelo próprio Estado. O presidente da Federação Metropolitana de Futebol, que organizava o Campeonato Carioca, era Vargas Netto, sobrinho do presidente da República, Getúlio Vargas. Em artigo publicado no Jornal dos Sports, Netto explicou que o barulho era mais do que brulho.
“Pode ser um elemento de perturbação sonora no panorama do match, confundindo o juiz, servindo de ‘chave’ para o team da charanga, como aviso ou voz de comando. Isso só o juiz da partida poderá saber”, escreveu, antes de concluir: “Mas também poderá ser, apenas, uma demonstração da alma lírica de um povo”.
É essa alma que habita o corpo da Charanga Rubro-Negra há oito décadas. Em 11 de outubro de 1942, o baiano Jayme de Carvalho foi ao jogo que definiu o título carioca carregando uma faixa com a inscrição “Avante Flamengo”, naquele que ficou marcado como o dia 1 da tradicional torcida organizada. Oitenta anos depois, em outro cenário, os seguidores de Jayme tentam honrar sua vocação lírica.
“Ele era um apaixonado, um flamenguista apaixonado. Gostava de música e adorava festa, era festeiro, tudo para ele era festa. E é a mesma coisa hoje. Estamos sempre fazendo festa”, diz Grimário Nascimento, 74, o Gui Gui, que há mais de três décadas preside a Charanga.
A torcida surgiu como Avante Flamengo, mas logo adotou a identidade Charanga, popularizada a partir do escárnio do músico e radialista rubro-negro Ary Barroso, que considerou o grupo pouco harmonioso. “Ele dizia: ‘Ah, está desafinado’. Mas aquilo era uma folia, uma vontade de cantar. Eu achei bonito, engraçado, o pessoal fazendo bagunça. Fui ficando, ‘vou ficar’. E estou aí até hoje”, afirma Gui Gui.
Ele se esforça para manter de pé a instituição octogenária e pede: “Escreve aí que não temos patrocínio”. A torcida hoje precisa remunerar os músicos, que tocam instrumentos metálicos como o trombone, para dar sequência à tradição.
“Tem um custo para funcionar. O grupo de artistas a gente tem que pagar. Na época do Jayme, era mais por amor, um grupo de amigos. As coisas foram mudando, né? Mas estamos felizes com nossos 80 anos, porque não é para qualquer um. Daqui a pouco, é centenário”, orgulha-se o presidente.
Nos velhos tempos, havia cerca de 30 instrumentistas. Atualmente, há uma autorização para dez, possível apenas pelo histórico imaculado da Charanga. Só ela pode levar metais ao Maracanã, permissão concedida porque não há registro de ocorrências violentas.
“A Charanga tem 80 anos e nunca se envolveu em um episódio de violência. Isso é uma coisa que só ela tem no Brasil, acho que no mundo. Toda torcida organizada, por mais pacífica que seja, já se envolveu em algum episódio”, afirma Vinicius Felix, 46, advogado que socorreu a entidade em 2014, quando a extinção, como ocorrera outras vezes, parecia iminente.
“O primeiro objetivo era não deixar a Charanga morrer. O segundo era levar a Charanga de volta para o Maracanã. O terceiro era provar documentalmente a linhagem, mostrar que a Charanga do Jayme é a mesma Charanga do Gui Gui. O Gui Gui não pegou uma camisa Charanga e vestiu. Ele recebeu o bastão”, diz Felix.
Foi o advogado quem redigiu o primeiro estatuto da instituição e lhe deu um CNPJ, o que permitiu parcerias como a firmada com a loja Espaço Rubro-Negro, licenciada do clube da Gávea. Sobreviver é difícil, mas Gui Gui e seus companheiros fazem o possível em um panorama bem distinto do observado há oito décadas.
O momento do surgimento da Charanga foi também o do nascimento de outras associações de torcedores, como a Legião da Vitória, do Vasco, no Rio de Janeiro, e a Tusp, do São Paulo, em São Paulo. No contexto do Estado Novo de Vargas, que redefinia simbolicamente o significado do trabalhador urbano, o cenário era propício para a formação desses grupos.
De acordo com o historiador Renato Coutinho, 40, que pesquisou o processo de popularização do futebol no século passado e está preparando um livro sobre a Charanga, uma série de fatores impulsionou o nascimento das torcidas organizadas. O primeiro era a estabilidade do próprio futebol, que “já havia superado os seus maiores dramas”, como o embate profissionalismo x amadorismo. Os principais clubes estavam consolidados e incentivavam as associações –a Legião, por exemplo, foi arranjada dentro do Vasco.
A imprensa esportiva também teve papel ativo. Diante do fracasso de público dos Cariocas de 1940 e 1941, O Globo Sportivo e o Jornal dos Sports passaram a debater os motivos da baixa assistência e a promover concursos entre torcedores, com prêmios como barris de chope.
E era uma questão de Estado. O que levou Vargas Netto, diretamente ligado a Getúlio, a defender a expressão da “alma lírica de um povo”.
“É a ideia de um povo festivo, de um povo harmonioso, de um povo que se organiza para festejar, para celebrar. O surgimento da Charanga está muito associado, primeiro, a uma visão do protagonismo do trabalhador no processo de modernização do Brasil, que é um elemento central do Estado Novo. E, segundo, é também a ideia de um trabalhador harmonioso festivo, que se comporta de maneira civilizada nos espaços públicos da cidade”, afirma Coutinho.
As organizadas de então eram bem diferentes das atuais –muitas nascidas nos anos 1960 e 1970 como “jovens”, em oposição às velhas. Na velha Charanga, palavrões eram proibidos. Mas, mesmo com limitações lexicais, as associações de torcedores eram um meio de expressão do trabalhador na ditadura do Estado Novo.
“Existiam antes ações individuais de torcedores. Mas a Charanga e outras torcidas uniformizadas vão entender a ação da torcida como uma força coletiva. Na própria imprensa, passa-se a usar o termo torcida. Não é mais o torcedor. É a torcida do Flamengo, a torcida do Vasco. Então, esses caras começam a ter mais uma força”, diz Coutinho.
“As torcidas organizadas são exemplos de associação mesmo durante uma ditadura. As pessoas se organizam coletivamente para torcer para um clube de futebol, mas também para participar da vida pública da cidade. A torcida demanda construção de estádio, demanda aluguel de bonde para ter lazer. A festa é um componente dessa associação, mas não é o único”, acrescenta o historiador.
Foi nesse contexto que brotou a Charanga, como expressão da brasilidade popular. O barulho orquestrado, afinado ou não, encantou toda uma geração, com ações pioneiras como vestir a torcida com a roupa do time –antes, a plateia via os jogos de casaca e chapéu.
O modelo das organizadas mudou com o surgimento das “jovens”, combativas, inspiradas na Revolução Cubana e em uma cultura política guerrilheira –de novo, em uma ditadura. Mas mesmo muitos dos então jovens admiravam a Charanga.
Cláudio Cruz, 59, fundador da Raça Rubro-Negra, diz que Jayme de Carvalho é seu maior ídolo. “Não é Zico, não é Adílio, não é Andrade”, costuma dizer o torcedor, que escreveu um livro sobre o criador da Charanga e cobra que uma estátua seja erguida em sua homenagem na Gávea.
Jayme morreu em 1976. A viúva, dona Laura, manteve-se à frente da torcida enquanto teve saúde. Depois, quem passou a tomar conta foi Gui Gui, com a ajuda de figuras como Cunhado –que tinha a chave do Maracanã na época em que a Charanga tinha uma sala no estádio Mario Filho para guardar bandeiras e instrumentos– e tantos outros.
A Charanga esteve perto da extinção algumas vezes, mas, com dificuldade, foi ficando. O lugar atual é outro –inclusive no estádio–, porém há seu espaço. Em um momento de crise das organizadas combativas –que não têm apoio da imprensa nem dos jogadores, embora mantenham influência na política dos clubes–, existe novamente um apreço da mídia por figuras pinçadas da arquibancada, como o Gabigordo, do Flamengo, ou o Cássio genérico, do Corinthians.
A diretoria do Flamengo tem uma boa relação com a Charanga e a recebeu para um churrasco antecipado de aniversário.
As cornetas soarão na final da Copa do Brasil.
Hoje, é verdade, há mais cornetas metafóricas do que literais na exigente torcida rubro-negra. Mas a Charanga, 80, vive.
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