Combate à corrupção: quais foram os retrocessos desde 2019 – Gazeta do Povo

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Os últimos quatro anos deixaram um saldo negativo no combate à corrupção, na avaliação de especialistas engajados na causa. Decisões nas três esferas de poder minaram a Operação Lava Jato e enfraqueceram regras que anteriormente possibilitaram prisões de políticos envolvidos com corrupção e lavagem de dinheiro. A anulação das condenações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a reforma da Lei de Improbidade Administrativa e a transferência de processos de corrupção à Justiça Eleitoral são alguns dos retrocessos apontados.
Do Congresso e do Judiciário saíram as decisões que mais prejudicaram o combate à corrupção, na opinião da jurista Vera Chemin, especialista em Direito Constitucional. Ela cita como especialmente danosas, do ponto de vista processual, o fim da prisão após condenação em segunda instância judicial, a anulação das condenações de Lula e a suspeição do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro.
Já o procurador Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, avalia que decisões do governo federal nos últimos quatro anos diminuíram a transparência do poder público. Ele classificou como retrocesso a quantidade de informações que foram colocadas sob sigilo de 100 anos – caso das visitas ao Palácio do Planalto.
Livianu também citou a decisão de Bolsonaro de não escolher o procurador-geral da República a partir da lista tríplice apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF). Para ele, foi um enfraquecimento da instituição.
Veja a seguir sete retrocessos no combate à corrupção, de 2019 até agora.
Em uma votação apertada em março de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que crimes comuns que estivessem relacionados a crimes eleitorais, como “caixa 2”, deveriam tramitar na Justiça Eleitoral. Era o caso da corrupção e lavagem de dinheiro associadas ao caixa 2 eleitoral.

A decisão afetou várias ações oriundas da Lava Jato e outros casos de corrupção. O ex-deputado federal Eduardo Cunha (MDB-RJ), o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB), o ex-ministro do PT Antonio Palocci, o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (PSD) e o senador José Serra (PSDB-SP) foram alguns dos políticos que se beneficiaram da decisão. Em alguns casos, as condenações na Justiça Federal foram anuladas por incompetência de juízo e outros casos foram arquivados após chegarem à Justiça Eleitoral.

Na época do julgamento no STF, procuradores alegaram que a falta de estrutura da Justiça Eleitoral e o fato de ela ser composta por membros temporários poderiam tornar mais difícil a responsabilização dos réus. A Justiça Federal, por outro lado, tem estrutura especializada na investigação de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Portanto, eles defendiam o desmembramento das investigações, o que permitiria que os casos de corrupção e lavagem de dinheiro continuassem tramitando na Justiça comum. 

A maioria dos ministros do STF, porém, foi a favor do envio desses casos para a Justiça Eleitoral, em respeito à legislação que diz que é “inviável a competência da Justiça comum, que é residual quando há Justiça especializada (no caso, a eleitoral)”.

O deputado federal eleito Deltan Dallagnol (Podemos), ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, avalia que mais de 90% das condenações anuladas ou dos processos que sofreram atrasos na operação tiveram como causa a transferência dos casos de corrupção para a Justiça Eleitoral.
Em 2019, outro entendimento do STF levou a anulações de condenações por corrupção. A Segunda Turma do Supremo decidiu que os réus que firmaram acordos de delação premiada devem apresentar alegações finais antes dos demais réus no processo, o que na época levou à anulação das sentenças contra Paulo Bendine, ex-presidente da Petrobras, delatado e condenado em primeira e segunda instâncias por corrupção e lavagem de dinheiro na Operação Lava Jato. Menos de um mês depois, o mesmo argumento foi usado para anular a condenação do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida Ferreira, no plenário do STF.
As alegações finais são a última oportunidade de os réus rebaterem as acusações contra eles antes da sentença do juiz. O juiz que conduz o processo abre prazo primeiro para as alegações finais do Ministério Público, depois para assistente de acusação e, por fim, aos réus. Quando há delatores entre os réus, o prazo para entrega das alegações finais era o mesmo para eles e os demais acusados.
Porém, naquele julgamento de setembro de 2019, o STF considerou que as alegações dos réus devem ser separadas: primeiro os delatores e depois os delatados. O intuito era garantir ampla defesa a todos os acusados, dando oportunidade aos delatados de rebater acusações dos delatores. A regra não era aplicada pelos juízes, porque não estava prevista em lei.

Recentemente, o STF decidiu limitar o alcance dessa decisão ao estabelecer que as condenações em processos que não obedeceram à ordem das alegações finais só podem ser invalidadas quando as defesas apontaram o problema na instância originária. Isso, porém, só vale para ações penais anteriores à Lei 13.964/19 (o Pacote Anticrime elaborado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro e modificado pelo Congresso. A lei garantiu formalmente o direito ao réu delatado de fazer suas alegações finais após o delator.

Quanto à Bendine, ele foi novamente condenado pelos mesmos crimes em 2020, e posteriormente a sentença foi confirmada em segunda instância.
O STF reverteu em 2019 o entendimento de apenas três anos antes de que condenados em segunda instância judicial já podiam começar a cumprir a pena de prisão. Com a mudança, para o início do cumprimento de uma pena, é preciso esgotar todos os recursos em tribunais superiores – muitas vezes na quarta instância, o próprio Supremo.

A decisão, que acabou com a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, levou à soltura de vários políticos condenados e presos no âmbito da Operação Lava Jato: o hoje presidente Lula; o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu; o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha; e os ex-diretores da Petrobras Renato Duque e Jorge Zelada. Também se beneficiaram empresários como Sérgio Cunha Mendes, José Carlos Bumlai e Salim Taufic Schahin.

Além de ser considerada por defensores do combate à corrupção como um benefício a poderosos que tenham condições de arcar com os custos dos recursos judiciais até que a ação chegue às instâncias superiores, a decisão aumentou a percepção de impunidade. O fim da prisão em segunda instância também é visto como um desincentivo a colaborações premiadas e um retrocesso em termos de segurança jurídica devido ao curto espaço de tempo em que a jurisprudência sobre o tema foi alterada.
Em 2019, quando assumiu o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública no governo de Jair Bolsonaro, o ex-juiz Sergio Moro apresentou ao Congresso propostas para tornar a legislação brasileira mais rigorosa no combate ao crime organizado e a corrupção. O conjunto de projetos de lei ficou conhecido como pacote anticrime. Previa inicialmente a criminalização do caixa 2 eleitoral, a prisão em segunda instância e a alteração da competência para julgamento de crimes complexos relacionados a eleições (para evitar que as ações fossem para a Justiça eleitoral).

Contudo, durante os meses de tramitação no Congresso, o pacote anticrime foi desidratado e desfigurado. Muitas das propostas originais de Moro foram rejeitadas e os deputados incluíram emendas que significaram um retrocesso no combate à corrupção. 

Da forma como foi aprovada, a nova lei limitou as prisões preventivas, passando a exigir a “existência concreta de fatos novos ou contemporâneos” que justifiquem a detenção. Também dificultou novos acordos de colaboração premiada ao prever, no processo, a participação da defesa das pessoas delatadas.

Outra medida incorporada no projeto pelos parlamentares foi a criação da figura do “juiz de garantias”, que passaria a cuidar apenas da fase de investigação, enquanto outro magistrado deveria atuar na fase do processo e julgamento. A aplicação do juiz de garantias, porém, foi suspensa por decisão do ministro do STF Luiz Fux em janeiro de 2020 e ainda não foi pautada no plenário da Corte. Na visão do ex-coordenador da Lava Jato Deltan Dallagnol, o juiz de garantias aumentaria “a morosidade e a impunidade num sistema já lento e leniente em relação a crimes econômicos como a corrupção”.
Em 2019, ao nomear Augusto Aras como procurador-geral da República, o então presidente Jair Bolsonaro ignorou a lista tríplice de nomes indicados pelos membros do Ministério Público Federal (MPF) para comandar a Procuradoria Geral da República (PGR). A recusa em indicar alguém de fora da lista acabou com uma prática consolidada desde 2003 e adotada por três ex-presidentes: Lula, Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Em 2021, a lista tríplice foi novamente ignorada para uma nova indicação de Aras ao posto.

Apesar de ser prerrogativa exclusiva do presidente a escolha do PGR e de que a indicação de Aras tenha sido aprovada pelo Senado, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Transparência Internacional Brasil e outras organizações avaliam que tal posicionamento “fragilizou” o Ministério Público. “O não atendimento da lista enfraquece o anseio pela independência do Ministério Público Federal (MPF) e fragiliza a posição da instituição no exercício de seu papel”, afirmou a ANPR em nota, na época da indicação de Aras.

No comando da PGR, Aras deu espaço a queixas de advogados, determinando, em 2020, que a instância central do Ministério Público Federal obtivesse acesso aos dados das forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Aras acusou-as de “deficiência de institucionalidade, sobretudo em alguns procedimentos de investigação”. Também levantou a suspeita de que procuradores de primeira instância poderiam estar realizando investigações clandestinas contra autoridades com foro privilegiado. Na época, em um evento online, ele disse que era “hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure”. 

Foi durante o mandato de Aras que as forças-tarefas acabaram – inclusive a da Lava Jato, oficialmente encerrada em 1.º de fevereiro de 2021. O modelo passou a ser substituído por investigações organizadas dentro dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos). Na prática, a extinção das forças-tarefa tirou seus integrantes de dedicação exclusiva para tocar casos complexos.
O Congresso também teve participação nas investidas contra o combate à corrupção. A principal delas, na avaliação de Roberto Livianu, foi a aprovação de uma nova Lei de Improbidade Administrativa, em outubro de 2021. A partir da revisão, passou-se a considerar que só podem ser classificados como atos de improbidade administrativa (passíveis de punição, portanto) aqueles em que o agente público comete uma ação ou omissão dolosa – ou seja, com intenção.

Isso significa que o acusador tem que provar que houve intenção por parte do agente público de praticar a improbidade para que ele possa ser punido. Atos culposos (não intencionais), por mais que gerem prejuízos à administração pública, não são passíveis de punição pela nova Lei de Improbidade Administrativa. Os prazos do processo também ficaram mais curtos. 

O Congresso ainda determinou que a lei se aplicaria a atos processuais realizados no passado, o que geraria uma revisão gigantesca de condenações. Em agosto de 2022, porém, o STF decidiu que a nova Lei de Improbidade não retroage para os processos que já tenham sido encerrados. Contudo, abriu-se uma brecha para absolvições futuras de quem foi condenado apenas por ato de improbidade culposo, sem que as possibilidades de recurso tivessem sido esgotadas.
Em 2021, outras decisões do STF ajudaram a enfraquecer os legados da Operação Lava Jato. 

Atendendo a um pedido de habeas corpus da defesa de Lula, a Corte decidiu que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgar os casos relacionados ao petista. Na visão dos ministros do STF, as acusações contra Lula não se limitaram à Petrobras e, portanto, a análise dos processos não caberia à Justiça Federal em Curitiba, que só poderia tratar de casos relacionados exclusivamente com a estatal.

O resultado imediato foi a anulação das condenações de prisão de Lula por corrupção nos processos do sítio de Atibaia do triplex do Guarujá. Assim, o ex-presidente ficou livre para concorrer às eleições presidenciais de 2022.

Poucos dias depois, também a pedido da defesa de Lula, a maioria do STF declarou que Moro foi parcial ao condenar o petista no caso do tríplex do Guarujá (SP), valendo-se de provas obtidas ilegalmente por ação de um hacker que divulgou mensagens privadas trocadas entre Deltan e Moro. Como resultado da decisão, todas as provas colhidas pela força-tarefa da Lava Jato e que davam sustentação ao processo foram anuladas – não puderam nem sequer ser reaproveitadas pelo juízo do Distrito Federal, para onde a investigação foi enviada por decisão do próprio Supremo quando julgou a incompetência da 13.ª Vara Federal para julgar vários casos da Lava Jato.

A decisão favorável à suspeição de Moro também fez com que outros condenados pelo então juiz da Lava Jato, como Eduardo Cunha, questionassem a validade das sentenças.
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