Como a política afeta a nossa saúde mental – Vogue Brasil
Por Filipe Batista (@FilipeBatista_)
25/10/2022 09h13 Atualizado 25/10/2022
Como a política afeta a nossa saúde mental — Foto: Colagem: Andressa Bezerra
Uma pergunta me vem à cabeça diante de quem se pensa deprimido hoje em dia: é mesmo depressão ou caso de Brasil? Independente de preferências ideológicas, é muito provável que a política esteja afetando sua saúde mental nesse momento. Na esteira de um processo iniciado nas eleições de 2014 e intensificado nos últimos quatro anos, a política — em ambas dimensões, direta e abrangente — passou a ocupar as mentes de todos brasileiros, de antigos entusiastas a recém-ingressos no debate. As mídias sociais são a principal arena, calibradas pelas tensões e disputas aprofundadas na pandemia e embaladas pelos algoritmos, que privilegia conteúdos relacionados a afetos negativos por gerarem maior engajamento. A necessidade de apoio material e psíquico para o enfrentamento e elaboração das experiências traumáticas vividas põe a saúde mental no centro de nossas prioridades e acende uma segunda pergunta: a saúde mental é política?
A resposta imediata é sim. Para quem ainda não se convenceu do caráter político que a saúde mental abrange, devo acrescentar argumentos. O Brasil enfrenta uma grave crise de saúde mental. Levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) realizado em 2017 já apontava o Brasil como o país com a maior taxa de transtornos de ansiedade no mundo (9,3% ou 18 milhões de pessoas), e o terceiro de depressão (5,8% ou 11 milhões). O total de mortes por suicídio dobrou de cerca de sete mil para 14 mil nos últimos 20 anos, o equivalente a mais de um óbito por hora, segundo o Datasus. No primeiro ano da pandemia, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou cerca de 25%, sendo mulheres e jovens os mais atingidos, de acordo com estimativa da OMS.
“Uma crise que afeta a saúde mental não é a mesma coisa que uma crise de saúde mental”, escreveu Danielle Carr, Professora Assistente no Institute for Society and Genetics da UCLA, em publicação recente no The New York Times. Se realmente pretendemos enfrentar os graves problemas de saúde mental no Brasil — cuja piora dos índices observada nos últimos anos agravou-se ainda mais na pandemia —, é fundamental que estejamos dispostos a tratar os efeitos disso, mas também atacar as causas, tensionar as forças de poder que forjam uma sociedade desigual em direitos e oportunidades. Como convencer sobre o valor da vida quem, desde o princípio, sofreu todas as violências e foi oprimido; como iluminar a esperança de quem nunca contou com amparo e tratamento digno por parte do Estado?
A atuação nociva de oligopólios tecnológicos globais — que viciam e determinam o que vemos, pensamos, sentimos, aspiramos e para onde caminhamos — tornou-se um poço sem fim, importante fonte de sofrimento psíquico na atualidade e uma das principais vias de ameaça à democracia (a citar, o uso de bots para propagação de desinformação e discursos de ódio). Somam-se o aumento das desigualdades econômicas, o agravamento da crise ambiental, a precarização do trabalho e as diversas perdas e privações relacionadas à pandemia. O público perdeu importância para o privado e a concorrência assumiu o lugar da solidariedade. Profundamente ressentido, o sujeito contemporâneo despreza o espaço comum, não acredita que encontrará o que almeja através da colaboração coletiva. Está disposto a se tornar o responsável absoluto por sua vida, se enxerga e acredita que deve atuar no mundo como empresário de si mesmo, fazer justiça com as próprias mãos. Ele assume o individualismo como valor central, afasta-se dos códigos da cultura e regras da comunidade e, para empreender sua façanha individualista, paradoxalmente veste-se das mesmas forças que o oprimem.
A democracia é desgastada pouco a pouco. Ganham força as crescentes investidas autocráticas que ameaçam as liberdades e minguam direitos, se fortalecem os discursos fundamentalistas e o uso equivocado da religião para controle social. A manutenção do caos fica a cargo de uma máquina responsável por produzir mentiras em série, deturpar e manipular os dados de realidade com a mesma facilidade que uma criança sem limites transgride regras. Encontrar saúde mental nesse cenário só parece possível se nos descolarmos da realidade, se nos encharcarmos de ilusão.
O termo "reificação" é usado por alguns cientistas sociais para designar o processo pelo qual os efeitos de um determinado arranjo sociopolítico passam a parecer realidade objetiva e inevitável aos olhos de quem se encontra submetido. Esse processo brutaliza o ser humano ao aproximá-lo da máquina, desinveste-o de humanidade e turva seu olhar a respeito da própria condição. Em última análise, substitui um problema político por um científico ou técnico, como lembrou Danielle Carr. É exemplo disso entender o burnout como problema de saúde mental meramente individual, sem reconhecer seus determinantes externos e endereçar ações também nessa direção. Incorre em grave equívoco quem acredita que antidepressivo e psicoterapia são suficientes para tratá-lo, sobretudo se entendermos o burnout como uma síndrome depressiva própria do nosso tempo, e cujo enfrentamento esbarra-se diretamente em fortes estruturas de poder.
O psiquiatra e psicanalista francês J. D. Nasio, em seu livro recente Depressão é a perda de uma ilusão, defende a ideia contida no título de que a depressão não é uma entidade em si, isolada, e sim a falência de outra entidade chamada neurose. Segundo Nasio, o deprimido está triste não por ter perdido o que tinha, mas sobretudo por ter perdido o que era, por ter perdido a ilusão que lhe dava força para ser o que era. A que ilusão ele se refere? A ilusão de ser onipotente e invulnerável à infelicidade. Cabe acrescentar que o excesso de positividade e a forte cobrança por felicidade são curiosamente muito marcantes numa sociedade cujas taxas de depressão e transtornos de ansiedade só crescem. A depressão, como todos os demais transtornos mentais, possui múltiplas causas — neurobiológicas, genéticas, psíquicas e psicossociais — e, embora o autor não as despreze em absoluto, debruça sua analise nas motivações psíquicas. Quero chamar atenção de que todas as causas são, na verdade, indissociáveis, e apesar de o entendimento dessa complexa interrelação servir muito mais como horizonte do que a total apreensão, não devemos perdê-la de vista, muito menos recusar investigar ou negar sua atuação.
Embora as realidades político-sociais do Brasil e Estados Unidos sejam muito distintas, compartilhamos a intensificação recente das tensões políticas divididas em dois principais polos ideológicos. Nesse sentido, é útil observar algumas pesquisas americanas recentes. Um estudo comparou os dados colhidos em três pesquisas coletadas em março de 2017, outubro de 2020 e duas semanas após as eleições americanas de 2020. Os resultados da pesquisa pré-eleitoral sugeriram que um quinto a um terço dos adultos – cerca de 50 a 85 milhões de pessoas – culparam a política por causar fadiga, insônia, sentimentos de raiva, bem como dificuldade em parar de pensar sobre o tema e consumir informações políticas, ou postar comentários nas redes sociais dos quais mais tarde se arrependeram. Um quarto relatou considerar seriamente se mudar por causa da política, e cerca de 40% – mais de 100 milhões – identificam a política como uma fonte significativa de estresse em suas vidas. Embora a proporção de pessoas que relataram esses efeitos tenha permanecido estável ou ligeiramente aumentada entre 2017 e 2020 antes da eleição presidencial, a deterioração nas medidas de saúde física tornaram-se piores após as eleições. O impacto negativo foi mais proeminente naqueles que eram jovens, politicamente engajados ou contrários ao governo. As três pesquisas indicam também que cerca de cinco por cento dos adultos relataram ter pensamentos suicidas por causa da política – aproximadamente 12 milhões de pessoas.
Por aqui, a situação não é muito diferente. O assunto política tornou-se proibido nas famílias, núcleos de amizade e trabalho, por frequentemente levarem a intenso sofrimento e até rupturas simbólicas e práticas. Nessa reta final das eleições, é muito importante buscar os pontos de apoio que foram esgarçados nos últimos anos. Quando não se tem nenhum controle sobre o que ocorrerá externamente, cabe o exercício de cuidar do que é possível, visando algum conforto psicológico. Evitar confrontos exaltados e brigas acaloradas também está no pacote.
Não se trata de negar a política, tampouco recusar a polarização que, aliás, sempre existiu, o que mudou talvez sejam os limites que ela abrange, num jogo de vale tudo feito para confundir e manipular, temperado por desinformação, intolerância e violência. A sensação de perda daquilo que nos ampara, sustenta e confere sentido — mesmo que ilusório — nos conduz à fragilidade psíquica que alimenta a impressão de que a realidade externa é uma ameaça, e o outro, aquele que é diferente de mim, um inimigo a ser extirpado. Como iremos nos reconstruir, individual e coletivamente, se não estivermos permeáveis à troca e tolerantes à diversidade? O respeito e a disposição para escutar são fundamentais no exercício da empatia. Um mundo sem conflitos não é um mundo pacificado, mas um mundo controlado a partir de uma autoridade intolerante às diferenças. Ou partimos para o diálogo dentro dos preceitos da civilidade, dignidade humana e solidariedade, ou estaremos fadados a seguir adoecidos juntos com o Brasil.
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