Como diplomatas tentaram, de dentro do Itamaraty, conter atos de Bolsonaro – UOL Confere

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.
Colunista do UOL
07/12/2022 04h00Atualizada em 07/12/2022 14h06
Dois diplomatas entram em um café em uma capital europeia. Um deles é brasileiro e carrega informações ultrassecretas. Sua missão é desarmar uma bomba. Parece filme de espionagem, mas a cena é real e se repetiu no governo Bolsonaro.
Uma rede de resistência clandestina foi criada no Itamaraty para conter a política externa bolsonarista.

Temas como mudanças climáticas, direitos humanos, a questão palestina ou mesmo a Guerra da Ucrânia foram tratados nesses encontros sigilosos, confirmados pelo UOL com 13 funcionários do Itamaraty, incluindo embaixadores e servidores administrativos, e em um amplo e ainda inédito estudo de pesquisadoras da FGV e de Oxford. A rede não envolveria apenas alguns poucos nomes e, de fato, teria se espalhado por alguns dos principais departamentos da chancelaria.
Os objetivos da rede clandestina eram:
Para diplomatas, a palavra correta seria resistência, que existiu “em nome da democracia e da soberania”, e sempre ocorreu dentro de parâmetros da legalidade. No fundo, tais atos não eram nada mais que uma tentativa de “equalizar posições” diante daqueles que estavam destruindo as estruturas do Estado. A verdadeira sabotagem, neste sentido, era o que estava ocorrendo com o sequestro de décadas da diplomacia brasileira para atender aos objetivos da extrema direita.
Os encontros clandestinos eram apenas uma das táticas da resistência, que também:
Um clima de medo, represálias e perseguição se instalou no Itamaraty nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.
Saíram de cena a tradição e as nomeações técnicas, que sempre guiaram de forma explícita desde a promoção de diplomatas até as posições do Brasil no exterior, e entraram as indicações políticas e o alinhamento ideológico compulsório ao núcleo bolsonarista.
As mesmas condições foram identificadas na pesquisa coordenada pela professora da FGV Gabriela Lotta, em parceria com Izabela Corrêa, de Oxford, e Mariana Costa, também da FGV.
As pesquisadoras entrevistaram diplomatas em diferentes posições na carreira e que estão alocados em distintos países e setores do Itamaraty.
Todo o levantamento é feito de forma sigilosa e anônima, para preservar a identidade dos entrevistados.
Segundo os funcionários ouvidos a gestão Bolsonaro promoveu:
Mulheres e homossexuais foram especialmente alvo dessa nova fase. “Há uma masculinização e a volta de certas práticas, como piadas no corredor”, contou Gabriela Lotta, a pesquisadora da FGV.
O que mais escutava nas entrevistas era: O tio da Sukita se normalizou
Nada. Procurado para comentar a reportagem, o Ministério das Relações Exteriores se manteve em silêncio.
O número de pessoas removidas de seus cargos chegou a tal ponto que consolidou-se o apelido informal usado para designar diplomatas loteados em locais onde não faziam nada: “Departamento de Escadas e Corredores”.
Um exemplo emblemático aconteceu logo nos primeiros meses da gestão do ex-chanceler Ernesto Araújo, que decidiu isolar e deixar sem função o diplomata Audo Faleiro. A justificativa: ele teria trabalhado para os governos do PT.
Em meados de 2019, Faleiro deixou seu posto em Paris para voltar ao Itamaraty. Foi nomeado como chefe da Divisão da Europa e, dois dias depois, o gabinete de Araújo informou que o cargo teria de ser retirado.
O diplomata ficou por seis meses na biblioteca do Itamaraty, aguardando um novo cargo. Foi apenas em março de 2020 que ele foi colocado no Departamento Financeiro. Ainda assim, sem o direito de ir a algumas reuniões e com o compromisso de que, na ausência da chefia, não assumiria o departamento.
Para muitos, Faleiro foi usado como exemplo:
Olha o que pode ocorrer contigo. Não faça isso se não quiser virar o próximo Audo
Os relatos coincidem com quatro anos que transformaram o Brasil em um pária internacional.
Para a professora da FGV Gabriela Lotta, o impacto não se limitou aos muros do Palácio do Itamaraty.
“A diplomacia brasileira tem sua moral e influência construídas na tradição e expertise. O governo negou isso, prejudicou a política externa e enfraqueceu a diplomacia e a imagem do Brasil.”
Na opinião da pesquisadora e dos embaixadores e diplomatas ouvidos pelo UOL, resistir foi a saída encontrada para sobreviver a um dos momentos mais tenebrosos da democracia brasileira.
Muitos, porém, pagaram um preço elevado, tanto profissionalmente como em relação à saúde mental.
O uso de tarja preta foi disseminado.


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