ConJur – Callegari e Linhares: O equívoco do STJ na AP nº 989/DF – Consultor Jurídico

0
48

Por André Luís Callegari e Raul Marques Linhares
Em decisão proferida na Ação Penal nº 989/DF, relacionada a operações envolvendo o então governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, entre outros servidores públicos, advogados e empresas, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça reafirmou a sua jurisprudência (e a do STF) a respeito da possibilidade de imputação da "autolavagem" em crime de corrupção passiva; ou seja, a imputação do crime de lavagem de dinheiro ao mesmo autor do crime antecedente de corrupção. Conquanto concordemos com esse posicionamento, entendemos que se equivocou a Corte Superior ao aplicá-lo ao caso julgado.
Em síntese, a corte proferiu decisão de recebimento de denúncia por alegados favorecimentos a empresas, inicialmente com habilitações em processos judiciais para recebimentos de débitos trabalhistas por parte do Rio, com posteriores pagamentos pelo Estado desses valores e de honorários advocatícios. Em um segundo momento, parte dos valores pagos a título de honorários advocatícios, depositados em conta bancária de escritório de advocacia, teriam sido transferidos para conta de advogada, e posteriormente para conta de agente público envolvido nos fatos, a título de propina.
Em relação a essa parte da denúncia, a Corte Especial do STJ afirmou a existência do crime de lavagem de dinheiro, por entender terem sido praticados atos autônomos em relação ao crime antecedente de corrupção passiva, nos termos do seguinte trecho do voto da relatora ministra Nancy Andrighi:
"(…) o grupo criminoso se utilizou do artifício consistente no pagamento de honorários advocatícios (…) para dar aparência de legalidade às vantagens indevidas advindas dos crimes antecedentes. (…) Nota-se, ainda, que não há falar em ausência de autonomia entre a corrupção passiva e a lavagem de dinheiro, com a consunção do segundo delito pelo primeiro. Isso porque não é possível ao agente, a pretexto de não ser punido pelo crime anterior ou com o fim de tornar seguro o seu produto, praticar novas infrações penais, lesando outros bens jurídicos."
De fato, a prática de atos novos e independentes da infração antecedente, destinados a ocultar ou dissimular a origem dos valores ilícitos, importam na prática do crime de lavagem de dinheiro, mesmo que tais atos sejam praticados pelo mesmo agente da infração prévia. Se o desfrute ou a ocultação precária (como o caso do agente que simplesmente enterra dinheiro em seu quintal, ou o oculta em parede falsa) dos ativos ilícitos são, em certa medida, esperados como atos posteriores ao delito que gere ativos maculados, diferentemente, não é natural se esperar que o agente do delito principal implemente um complexo de atos sucessivos e às vezes custosos, a fim de lavar os ativos. Inegavelmente, a lavagem de dinheiro possui uma complexidade própria (muitas vezes superior à da infração antecedente) e, também, uma autonomia, o que impede que seja considerada mero desdobramento normal da infração principal.
Contudo, em nosso entendimento, no caso da AP nº 989/DF, a dinâmica dos fatos relatada acima não se refere a condutas independentes em relação ao crime de corrupção passiva, mas a condutas de execução e consumação desse crime — ou, no máximo, de exaurimento, se fosse considerado o momento consumativo da solicitação. Afinal, a corrupção passiva é tipicamente constituída pelos verbos nucleares solicitar ou receber (exaurimento), o que inclusive pode ocorrer indiretamente (ou seja, de forma dissimulada, por terceiro). As transferências patrimoniais realizadas em momento prévio ao recebimento da vantagem pelo funcionário público (leia-se: em momento prévio à consumação da corrupção), destinadas a viabilizar uma prática mais segura desse delito, não podem ser consideradas atos de lavagem, justamente porque são condutas integrativas da execução do crime de corrupção.
Portanto, o recebimento de valores ilícitos sob a roupagem de honorários advocatícios, e a sua posterior transferência para conta de terceiro, para somente então se realizar o pagamento da vantagem ao funcionário público, são verdadeiros atos de execução do crime de corrupção passiva, crime que tem o último momento (o recebimento da vantagem pelo funcionário) como instante consumativo ou de exaurimento. Se o crime de corrupção passiva, nessa modalidade, se consuma com o recebimento da vantagem pelo funcionário público, o ato realizado em momento anterior a esse recebimento não pode ser considerado ato de lavagem, justamente por faltar crime antecedente; há crime em execução, e gestão de ativos ilícitos que compõe essa execução.
 é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília, sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.
 é advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Público, sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.
Revista Consultor Jurídico, 4 de novembro de 2022, 9h09
0 comentários
Callegari e Linhares: Massificação do delito de lavagem
Callegari e Linhares: Crime de lavagem e devassa patrimonial
André Callegari: Sigilo do advogado e lavagem de dinheiro
André Callegari: Tutela penal das instituições democráticas

source

Leave a reply