ConJur – Como disse Aristóteles, a política não é para bestas nem deuses – Consultor Jurídico

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Por Lenio Luiz Streck
Na crise da democracia, devemos ir aos clássicos. Aristóteles dizia que o homem é um ser sociável por natureza. É um politikon zoom, animal político. Ou isso, ou somos deuses. Ou somos bestas.
Por isso, foi enfático: a política é uma ciência estritamente humana, não é assunto nem de bestas nem de deuses.
Também Aristóteles dizia que, por ser um animal político, o ser humano busca parceiro(a) para se unir e formar família, grupos e assim vai.
Talvez hoje em dia o homem (ou mulher) busca parceiros de WhatsApp para formar neocavernas. É o novo "homowhatszapiens".
Acima dos grupos humanos estão os grupos de WhatsApp. Viva. E o TikTok, é claro.
Platão, professor de Aristóteles, talvez tenha sido o primeiro a criticar as bestas, os néscios. Contra esses, formulou a Alegoria da Caverna.
As sombras são sombras, denunciava. Mas de nada adiantava. O rei filósofo foi apedrejado ao dizer que as sombras não eram a realidade.
Hoje em dia já não há fatos. Há apenas narrativas. Mas, como vimos, isso é coisa velha. E, pior, sempre cabe qualquer narrativa. Eis o novo mundo. Vasto mundo. Que, assim, pode, sim, ser chamado de Raimundo, para desdizer o poema de Drummond.
Hoje já é possível dar às palavras o sentido que se quer, dando razão ao personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll.
Como exercitar a democracia nestes tempos em que já não há fatos? Eis a pergunta de 2.500 anos de filosofia. E de política.
Pergunta-se: do modo como se apresentam, hoje, as redes sociais são compatíveis com a democracia?
As redes, com seus algoritmos e quejandos, criam seus próprios critérios de verificação. É esse o ponto. Daí a incompatibilidade com a democracia.
A democracia moderna é uma questão de linguagem pública. Há critérios para se dizer as coisas — e esses critérios são públicos, construídos intersubjetivamente.
Por isso não surpreende os "outsiders". Outsider é quem vem de fora do jogo de linguagem da política. As redes facilitam isso. Por quê? Ora, exatamente porque criam seus próprios critérios de verdade.
O que é uma república? A resposta é polis. É res pública. Coisa pública. Política. Coisa essencialmente pública. Porém, quando o meio de se fazer política passa a ser as redes, privatiza-se os critérios de verificação. Desaparece a mediação.
Daí passam a valer todos os paradoxos e paroxismos: gente contra a corrupção que tem orgulho de sonegar. Médico a favor de cloroquina. Médicos que possuem autonomia absoluta para receitar cloroquina; mas canabidiol, não. Pastores e evangelizadores que apoiam tortura, misturam o que é de Deus e o que é de César para prosperar (anti)politicamente com base na fé alheia. Fracassamos? A pergunta é retórica.
As redes permitem isso, porque, assumindo o já paradoxal papel de meio — porque não há mediação —, substituem a política, pública e tradicional, por um simulacro em que os critérios são ad hoc.
A mentira como critério da verdade.
A política foi degenerada — pelos tais outsiders — e, fundamentalmente, "evangelizada": pastores da fé e da carteira alheia, "padres" de festa junina — os outsiders de um Estado que é laico.
A esperança? Recuperar o politikon zoom. O animal político. E não as bestas "políticas".
Afinal, fatos existem, por mais que as narrativas queiram se impor. E, sim, as sombras eram mesmo sombras.
Às vezes, o padre é mesmo só de festa junina. E o que é de Deus não é de César.
A política é pública. Como disse Aristóteles, a política não é assunto nem de bestas nem de deuses.
Logo, como os tais "outsiders" e os protagonistas — que misturam religião e sua (anti)política — à toda evidência não são deuses, resta-lhes a segunda hipótese, segundo o velho Aristóteles: bestas.
 é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 20 de outubro de 2022, 7h00
3 comentários
Marco Vicente Dotto Köhler (Serventuário)
21 de outubro de 2022, 11h08
Trecho bíblico muito citado pelo presidente da República é o “a verdade vos libertará”.
Resta saber qual verdade que vai prevalecer e que terá as chaves do cárcere, se a verdade em si, ou a verdade dos homowhatszapiens….
Não estou muito esperançoso de que a verdade fora da verdade whatsappiana prevaleça…
Responder
Professor Edson (Professor)
20 de outubro de 2022, 12h05
O correto é votar em um ladrão que montou o maior esquema de corrupção do planeta terra, é um deboche.
Responder
André Pinheiro (Engenheiro)
20 de outubro de 2022, 9h45
Para os outsiders nós somos os outsiders, fomos nós que invadimos o sistema como uma retórica de raciocínio, racionalidade e razão, a ratio.
Mas o que esses invasores iluminiilistas pretendem ou pretendiam? bla bla bla. O medo é a razão fundamental, somente o medo agrega e o amor é para fracos, os inimigos e fantasmas existem e a regra é simples, é necessário eliminar o inimigo.
Tudo são palavras e palavras são só ruídos, quem se interessa por cérebro é cientista precisamos de almas.
O resgate a Aristóteles é pretensioso, quem lê isso? A ingenuidade de Aristóteles ou Platão foi que o animal político, embora político, é animal.
Sendo animal, o bestialismo e bestialidade preponderam. A razão é inútil diante do medo.
A razão não vale de nada na guerra de todos contra todos, somente a união faz a força.
Sendo assim a política é para bestas e deuses, pois somente os deuses são capazes de unir as bestas.
A inteligência de cognição deve dar espaço à inteligência de adesão.
Os clubes de homens do século retrasado sabia disso, as conspirações e partido políticos se faz em grupos de pessoas partidárias que iram se alimentar e retroalimentar, porque me ufano?, para garantir a expulsão dos pretensiosos materialistas e sua razão ou razões anacrônicas.
Os grupos de Whatsapp is a new maçonaria
Papo de chato coroa, era a contra cultura hippie, papo de esquerdista é a contra cultura alt right.
Ninguém gosta de sabichão ou de textão, a imagologia é a única ideologia possível e os grupos de whatsapp e seus memes compreenderam isso além da razão.
Mas então porque todos não fazem seus grupos e fazem valer a sua ideologia?
Porque a política é feita de deuses, bestas e robôs, o Deus dos Algoritmos Google e o Deus do Narciso Meta estão no Olimpo das Coisas.
Responder
Fundamentamos ou ornamentamos? Um velho/novo problema!
Abraão, o 34º ano da CF-88 e a política entre deuses e bestas
Que tipo de sistema de justiça desejamos para o Brasil?
O que fazer quase 18 anos depois? A história de uma cautelar

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