ConJur – David Teixeira: A quase impagável dívida com a nação – Consultor Jurídico
Por David Teixeira de Azevedo
A instauração da república de Curitiba em 2013/14 com a operação "lava jato" rompeu os diques do Estado de direito. O direito-dever à publicidade dos atos processuais e a neutralidade e equidistância do magistrado, o que previne a suspeição; a imprescindibilidade do contraditório pela intimação regular das partes processuais e o respeito à ampla defesa; as regras sobre competência processual e o dever de fundamentação completa para decretação de medidas cautelares, sobretudo de prisão preventiva, tudo foi relativizado ou mesmo recebeu solene desrespeito, a fazer da Constituição terra arrasada da democracia e do respeito à pessoa humana. Nada ou muito pouco sobrou das garantias fundamentais do cidadão.
O distanciamento consciente de uma ética de princípios (faço o certo porque é o certo) e a entronização de uma ética pragmática, consequencialista (faço o errado porque o resultado é o certo), permitiu a queda no abismo de homens de grande estofo jurídico e elevada estatura moral e espiritual. Não é de esquecer o messianismo, com rasgos de fundamentalismo, dos atores envolvidos na derrubada do processo penal democrático e garantidor acolhido em nossa Carta, a pretexto da "luta" contra a corrupção, que implicava o foco mais fechado em determinado partido político e a busca final e a aniquilação de determinado líder político.
Uma sementeira de nulidades foi lançada nos diversos processos penais, todos sem exceção aculturados na delação premiada, instituto utilizado amiúde como espécie de tortura moderna e legal. No lugar do grotesco "pau de arara" e de choques à convulsão nas vítimas, o "indolor" depoimento de quem fora preso ilegalmente, a quem se anunciavam penas altíssimas, e a quem se punha como pano de fundo o envolvimento da família do delator; em lugar de dedos sujos de pólvora e sangue, as "mãos limpas" dos membros do MPF e da PF e em vez da ampla defesa, o arremedo de assistência pela presença de advogado emasculado em suas garantias profissionais e tolhido no exercício técnico porque sem esperança o manejo de instrumentos defensivos próprios e efetivos em um regular estado de direito. Era ou delação ou delação, tertium non datur.
A tudo a imprensa — sabidamente "quebrada" financeiramente — punha combustível. Uma ação dessa magnitude , com novas e novas operações inauguradas cronologicamente sob curiosos e chamativos nomes midiáticos e com prisões diárias de homens de alto status sócio, político e econômico constituíam a garantia de a matéria ser diariamente sorvida e asseguravam o necessário abastecimento do caixa, dada a audiência cativa.
O Poder Judiciário, de seu lado, em nenhum momento esteve ignorante de tamanho desrespeito à Constituição e às normas processuais e penais, que caracterizava a ação dos personagens da república de Curitiba. Preferiu coonestar com o abuso e permitir a Moro repetir cinicamente que as suas "decisões todas foram confirmadas pelas instâncias superiores".
Era voz corrente no STF que "esse moço foi longe demais". Todavia, constrangedora a covardia dos ministros do STJ e STF no enfrentamento crítico a decisões absolutamente ilegais. Isso só se explica pelo temor de lançar oposição jurídica a uma operação contra a corrupção de unânime apoio popular e de grande repercussão e densidade midiática.
Afinados na opção ética de "os fins justificarem os meios", como acontecia com Moro e Dallagnol, pouco se dava aos ministros a violação da CF, ou o desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, ou o "nadadizar" do "devido processo legal"”.
Contudo, essa conformação da operação "lava jato", de perseguição político partidária e encalço a Lula, e de omissão cúmplice das altas cortes, preparava o solo jurídico para a mutação genética da semente da justiça. De acusado com provas suficientes da prática de variadas infrações criminais e de uma culpabilidade certa e acentuada, brotou a planta final da anulação dos atos e termos processuais. Técnico-constitucionalmente presume-se inocente, mas gravado ficou o sentimento generalizado de injustiça material.
Houvesse sido observado o devido processo constitucional e legal, como o foi no Mensalão, a condenação de Lula e a de tantos outros personagens da "lava jato" não seria anulada mas permaneceria firme, a gerar todos os seus efeitos jurídico-políticos.
Certo, porém, que uma vez anulado todo o processo e tornada impossível a renovação da acusação, em razão da prescrição dos crimes praticados por Lula, inaugurou-se o discurso de inocência e da vitimização, justamente por quem fora condenado com provas certas, bastante e bastantes, da infração penal e da culpa pessoal. É como se o mega criminoso Marcola ficasse foragido 20 anos e depois, arquivados os processos todos em razão da prescrição, às dezenas e dezenas, com uma cara de pau irritante, aproveitando a presunção constitucional de não culpabilidade, se autoproclamasse inocente e injustiçado.
A república de Curitiba preparou o terreno da ilegalidade, acumpliciada pelas cortes de segunda e terceira instância, a gestar o processo nulo. Quem tornou Lula viável politicamente foi a própria república de Curitiba ao desobedecer aos princípios e regras do devido processo. E não se esconda ela a acusar o STF pela anulação derradeira dos processos. Ele acertou! A Suprema Corte no entanto agiu ao final como uma Vestal, de grande pureza e inocência, encenando caras e bocas de escândalo sobre ilegalidades graves constitucionais, processuais, da república de Curitiba, de que tinha total ciência, mas só reconhecidas depois de expostas todas pelo ação criminosa de hackers ou do Intercept, pela divulgação. Triste esta realidade: precisou-se cometer um grave crime para a Justiça deixar o cinismo e respeitar a Constituição e as leis. Fato é que o STF sob o aspecto jurídico constitucional e legal decidiu de modo correto. Errou inicialmente ao chancelar os desvios constitucionais e legais da república de Curitiba, escandalizando a comunidade jurídica; acertou jurídico-constitucional-processualmente ao final, escandalizando já agora o povo brasileiro.
A ética pragmática fortaleceu o infeliz adágio de que "o crime vale a pena", tanto que reconduzido Lula à presidência da República.
Agora como senador e deputado, Moro e Dallagnol devem pagar a dívida, jogando com os princípios e regras do estado de direito. Certamente serão competentes para fazê-lo, sem abreviar caminhos e desviar a atalhos duvidosos. Importante em todo este capítulo da história reter a óbvia e ética lição de que as regras do jogo democrático e de que os princípios do estado de direito devem ser incondicionalmente observados, não valendo qualquer espécie de ética de resultado.
David Teixeira de Azevedo é advogado criminalista e professor livre-docente de Direito Penal da USP.
Revista Consultor Jurídico, 27 de dezembro de 2022, 11h18
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