ConJur – Fabíola Haselof: Inversão do ônus da prova em crime de … – Consultor Jurídico
Por Fabíola Utzig Haselof
"A adoção da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção enviará uma mensagem clara de que a comunidade internacional está determinada a prevenir e controlar a corrupção. Ela alertará os corruptos de que a traição da confiança pública não será mais tolerada" [1]. (Prefácio da Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção)
Vamos iniciar indo direto ao ponto: inversão do ônus da prova nos crimes de corrupção no setor público é a melhor tradução de prestação de contas que podemos imaginar. Além de ser uma medida alinhada com a transparência e a accountability, tem o importante efeito de elevar o custo do crime, tornando-o mais arriscado e, consequentemente, desestimulando e prevenindo sua prática. Ademais, facilita a recuperação dos recursos públicos desviados. Esses efeitos são todos incentivados nas mais importantes convenções internacionais que tratam do combate à corrupção e que foram ratificadas pelo Brasil [2].
A inversão do ônus da prova nos crimes de corrupção no setor público é uma das ideias que defendemos no livro Como As Nações Prosperam [3], não com base em argumentos genéricos e vazios, mas com foco específico na corrupção no setor público como maior causa de atraso no desenvolvimento dos países, no fato de que o funcionário público se submete a um regime que é diferenciado das pessoas que atuam no setor privado, e também na experiência de países mais desenvolvidos que o Brasil, como Singapura e Coreia do Sul, e mais bem sucedidos no combate à corrupção. E como se trata de uma pesquisa de doutorado, a obra descreve a estrutura jurídica anticorrupção dos países mencionados e dados estatísticos que corroboram nossas propostas.
Como As Nações Prosperam menciona três países que adotam a inversão do ônus da prova nos crimes de corrupção no setor público: Singapura, Coreia do Sul e Índia. Singapura, quando ficou independente da Inglaterra, em 1959, tinha uma população agrária, empobrecida e com baixa escolaridade. Atualmente é uma potência em geração de riqueza na sua população, sendo o país que possui a terceira maior concentração de milionários per capita, só ficando atrás do Qatar e da Suíça. Ou seja, Singapura é um país próspero e abundante, que também é mundialmente reconhecido pelo seu rigor no combate à corrupção, ocupando sempre as primeiras posições da Transparência Internacional.
A Índia, diferente dos outros dois, (ainda) não é mais desenvolvida que o Brasil, pois seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é médio, enquanto o IDH do Brasil é alto. Porém, como demonstramos no livro, com base em quadros comparativos de evolução do IDH nas últimas três décadas, a Índia vem se desenvolvendo em um ritmo muito mais consistente que o Brasil, devendo nos ultrapassar também em desenvolvimento humano (já ultrapassou em crescimento econômico) em pouco tempo.
Mas é sobre a Coreia do Sul, que é um país desenvolvido e com IDH muito alto, que vamos fazer considerações mais pontuais, especialmente em razão das similaridades que possui com o Brasil, já que ambos transitaram do regime militar para o democrático na década de 1980 e ambos enfrentaram recentemente grandes escândalos de corrupção. A Coreia do Sul atualmente possui dois ex-presidentes cumprindo pena no presídio e condenados a multa pesadas por crimes de corrupção. O último escândalo envolveu a ex-presidente Park Geun-hye e a gigante Samsung, revelado em 2016-2017.
Não obstante este recente escândalo, a Coreia atualmente ocupa sua melhor posição no ranking de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, que é o 32º. lugar. Ou seja, independente do escândalo, a percepção do povo coreano é que a corrupção está sendo bem enfrentada e que dispõem de uma estrutura jurídica à altura do desafio de combater a corrupção de forma efetiva.
Em síntese, o mecanismo preventivo e de enfrentamento da corrupção no sistema coreano consiste em submeter o funcionário público e as pessoas a ele equiparadas que se engajarem em atos de corrupção ao risco de serem enquadradas em uma das duas leis:
1) na Lei Criminal, que é a base do sistema anticorrupção, quando a conduta estiver relacionada a atos funcionais;
2) no Graft Act, que fixa critério objetivo (limite máximo de valor recebido de uma pessoa) a partir do qual o funcionário público ou equiparado incide na proibição de recebimento de dinheiro ou bens de valor, independe de qualquer relação com seus atos de ofício, e fica sujeito à pena ali prevista, de prisão, multa e confisco dos bens ou valores.
A formulação de um critério objetivo de valor máximo que pode ser recebido por um funcionário público ou equiparado tem o importante efeito de deslocar para o funcionário publico o ônus de comprovar que esse recebimento se enquadra em uma das exceções nas quais o recebimento pode ser considerado legítimo. O sistema coreano desenvolveu um mecanismo prático e eficiente para lidar com a questão da evolução patrimonial incompatível com os rendimentos legítimos recebidos pelo funcionário público.
Não existe, no nosso sistema, proibição que impeça a inversão do ônus da prova em crimes específicos, quando a ponderação dos valores em jogo justificar essa inversão. No caso de corrupção no setor público, os valores em jogo são, de um lado, recursos públicos e o interesse público, e, de outro lado, a privacidade do funcionário público, que seria flexibilizada em atenção à necessidade de dar à prestação de contas o seu verdadeiro significado que é: o funcionário público precisa dar conta de toda riqueza que acumulou quando no cargo público e que seja incompatível com a remuneração deste cargo.
Há algum tempo passou a haver uma tendência de abordagem mais flexível do princípio da presunção de inocência, no sentido de que seu alcance depende de todas as circunstâncias em jogo no caso concreto. Essa tendência ficou bem clara no julgamento da Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento do caso Salabiaku v. France, e deu origem ao que ficou conhecido como teste Salabiaku. É uma abordagem que se mostra consistente com o nível de evolução atingido pela maioria das nações, onde a condenação de uma pessoa inocente seria algo abominável, assim como a utilização da proteção presunção de inocência para impedir que uma pessoa evidentemente culpada responda pelo crime que cometeu.
No caso de aumento desproporcional do patrimônio do funcionário público, sua privacidade seria flexibilizada, exatamente como ocorre quando se impõe ao funcionário público a necessidade de ter seus rendimentos e despesas publicados em portal de transparência, bem como de fornecer ou disponibilizar acesso aos seus órgãos de controle das suas declarações anuais de imposto de renda. Tal obrigação não existe no setor privado, pois são informações constitucionalmente protegidas por sigilo fiscal. Entretanto, tal proteção é afastada no setor público porque o funcionário público, diferente das demais pessoas, possui um poder de decisão e de manejo de recursos públicos que pertencem e são de interesse de toda a sociedade.
Portanto, o funcionário público já se submete a um regime que flexibiliza sua privacidade. E o nosso ponto é por que justamente quando surgem graves evidências de aumento desproporcional do seu patrimônio, a privacidade é alegada como se fosse uma pessoa comum, que não lida com recursos públicos e nem toma decisões que impactam o interesse público. Essa trajetória, de criar um sistema que dificulta a responsabilização dos culpados e a recuperação dos ativos desviados, cria um ambiente que estimula a prática da corrupção no setor público. Por isso, diferente da Coreia, que atualmente ocupa sua melhor posição no ranking da Transparência Internacional desde o ano 2000, o Brasil atualmente ocupa o 96º lugar, sua terceira pior posição desde o ano 2000.
A gente até poderia entrar em um debate filosófico sobre o que é privacidade, o que são recursos públicos, o que é interesse público, o que é corrupção. Apesar do nosso apreço por um bom debate filosófico, quando se trata de grande corrupção, que é o nosso foco, ficamos com Vito Tanzi quando afirma que: "No entanto, como um elefante, embora possa ser difícil de descrever, a corrupção geralmente não é difícil reconhecer quando observada" [4].
[1] "The adoption of the United Nations Convention Against Corruption will send a clear message that the international community is determined to prevent and control corruption. It will warn the corrupt that the betrayal of the public trust will no longer be tolerated." (United Nations Conventions Against Corruption – Foreword)
[2] A título de exemplo, a Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção (Uncac), de 2003, em seu art. 20, e a Convenção Interamericana Contra Corrupção da Organização dos Estados Americanos, de 1996, em seu art. 9, vão ainda mais longe e incentivam os Estados Partes a instituírem o crime de enriquecimento ilícito de funcionário público quando o aumento significativo do seu patrimônio não possa ser razoavelmente justificado em relação aos seus rendimentos legítimos. A Uncac ainda dedica todo seu Capítulo V à recuperação de ativos, já que se trata de um dos princípios fundamentais da convenção.
[3] A obra é resultado da tese defendida no programa de doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 8/8/2022, e que teve na sua banca de examinadores a honrosa participação do min. e Prof. Luiz Fux, do desembargador Federal e prof. Aluisio Mendes, do desembargador estadual e Prof. Humberto Dalla, do desembargador federal, corregedor regional, e prof. Theophilo Antonio Miguel, bem como dos professores estrangeiros das universidades Fordham, dean e prof. Toni Jaeger-Fine, e Columbia, prof. Albert Fishlow.
[4] "However, like an elephant, while it may be difficult to describe, corruption is generally not difficult to recognize when observed" Vito Tanzi, Corruption Around the World: Causes, Consequences, Scope and Cure, IMF Staff Papers, vol. 45, nº 4 (1998)
Fabíola Utzig Haselof é doutora em Direito Processual pela Uerj, juíza federal no Rio de Janeiro desde 2005, autora dos livros Como as Nações Prosperam e Jurisdições Mistas (Editora Fórum) e pesquisadora visitante na Fordham University e na Columbia University, ambas em Nova York.
Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2022, 18h26
2 comentários
Osvaldo Aires Bade (Administrador)
15 de setembro de 2022, 8h22
O fato do PT ainda está aí mostra que o crime continua compensando no Brasil.
André Pinheiro (Engenheiro)
15 de setembro de 2022, 8h04
Sabe aquela sensação que nem errado está para refutar, com certeza é caso de internação clínica.
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