ConJur – O que dizer da decisão monocrática do STF na ADI 7.236 – Consultor Jurídico
Por Luciano Ferraz
No último dia 12, esta ConJur publicou um texto com a opinião do advogado César Augusto Alckmin Jacob, intitulado "Ainda a (contra) reforma da Lei de Improbidade Administrativa", em que o autor critica a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, nos autos da ADI 7.236, ajuizada pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), contra várias disposições da Lei 14.230/01, que alterou a Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa, LIA).
Segundo o autor, as alterações da contrarreforma à lei de improbidade parecem não ter fim. Para além do tema 1.199 (RE 843.989) e da liminar concedida nas ADI 7.042 e 7.043, a mais recente decisão do ministro Moraes, adotada às margens do recesso forense, e às vésperas da entrada em vigor do novo regramento das decisões monocráticas do STF, suspendeu a vigência dos artigos 1º, §8º, 12, §1º, 12, §10, 17-B, §3º, 21, §4º, 23-C da Lei 8.420/92, com a redação dada pela Lei 14.230/21.
Os dispositivos suspensos versam os seguintes temas:
Como a decisão do ministro Alexandre Moraes é cautelar e monocrática, ainda subordinada ao veredito do plenário do Supremo Tribunal Federal (onde os placares não raro têm sido tomados por apertada diferença de votos), as discussões sobre a mencionada ADI 7.236 e sobre a constitucionalidade dos dispositivos nela impugnados, justificam o objetivo de escrever este ensaio, vertido à disposição do artigo 17-B, §3º da LIA (participação do TC no ANPC).
Antes de adentrar ao âmago, contudo, convém indagar da legitimidade da Conamp para impugnar todos os dispositivos citados da LIA. Exceção feita ao artigo 17-B, §3º (que será discutido mais à frente), as regras dos artigos 1º, §8º, 12, §1º, 12, §10, 21, §4º e 23-C não tocam diretamente às funções do parquet, porque versam sobre (i) configuração em si do ato de improbidade administrativa; (ii) penas pelo cometimento do ato de improbidade e sua extensão, (iii) comunicação de instâncias e procedimentos de apuração de responsabilidade.
Tais matérias são dependentes de lei, constituindo-se em espaços próprios de conformação do legislador democrático. Nesse sentido, dispõem os artigos 5º, caput, artigo 24, XI e art. 37, §4º, da Constituição, deixando ver a ausência de qualquer intromissão legislativa no exercício da competência funcional das corporações do Ministério Público.
Com efeito, na legitimação ao controle concentrado de constitucionalidade perante o STF, a Conamp não pode ser tratada como se fosse o procurador-geral da República (seja ele atuante ou não), justamente porque ela não se inclui no rol dos legitimados universais à função. Bem por isso, o reconhecimento da legitimação especial da Conamp é dependente de uma estreita e direta relação entre a norma impugnada e os fins institucionais de defesa dos direitos e prerrogativas dos membros do Ministério Público, conforme arrolado no seu estatuto.[1]
Assim tem se alinhado a jurisprudência do STF, servindo de exemplo a decisão do ministro Edson Facchin, nos autos da ADI 6.569/DF. Nos dizeres de sua excelência, seria equivocado supor que
"[a] Conamp, mera associação de classe, teria prerrogativas idênticas às do Ministério Público, e funcionaria como um equivalente funcional do procurador-geral da República. Dada a limitação hermenêutica do elenco do artigo 103 da CRFB/88, esta solução revela-se altamente problemática. Parece-me, antes, que o objeto associativo da Requerente não se confunde com as prerrogativas funcionais de seus membros, limitando-se a aportar representação dos interesses de classe. […] No particular, conforme anotado pelo ministro Marco Aurélio em voto condutor na ADI 1.873, "[o] interesse notado é mediato e poderia dizê-lo ligado, até mesmo, aos cidadãos em geral, no que atentos ao bom funcionamento das instituições públicas".
Relativamente ao artigo 17-B, §3º da LIA, compreende-se que a pertinência temática apta a ensejar a legitimidade da Conamp está presente. A disposição legal, como se disse, trata da participação do Tribunal de Contas no procedimento de firmação do acordo de não persecução cível (a cargo do Ministério Público), com a finalidade de proceder ao cálculo do valor do ressarcimento integral, que se apresenta como condição de procedibilidade do ANPC.
Sobre o tema, tive a oportunidade de escrever uma coluna publicada na Conjur, em 7 de abril de 2022, com o título "Tribunal de Contas como árbitro do ressarcimento na nova LIA"[2], onde sustentei que
"Os Tribunais de Contas brasileiros são órgãos constitucionais independentes que buscam, como tive a oportunidade de registrar em outra sede, 'na própria Constituição sua identidade e suas competências, as quais não podem ser mitigadas por legislação infraconstitucional, embora possam ser ampliadas por esta via'. O legislador da Lei 14.230/21 previu a participação do Tribunal de Contas competente no procedimento dos acordos de não persecução cível, notadamente para se incumbir de apurar, em 90 dias, o montante do dano a ser ressarcido por seu intermédio, se houver. Utilizou-se o legislador da expressão 'deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas', prenunciando que a provocação do órgão de controle não se trata de faculdade, senão de dever."
A decisão cautelar do ministro Alexandre de Moraes expôs que o dispositivo constitucional está a violar as prerrogativas funcionais do Ministério Público (artigo 127 e 128 da Constituição), porquanto "a norma aparenta condicionar o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação da Corte de Contas, transmudando-a em uma espécie de ato complexo apto a interferir indevidamente na autonomia funcional constitucionalmente assegurada ao órgão ministerial".
Não se compreende, data vênia, como a só elaboração do cálculo do ressarcimento e apresentação da metodologia respectiva pelo Tribunal de Contas poderia interferir na autonomia funcional do Ministério Público. A razão de ser do envolvimento do Tribunal de Contas parece ser o de evitar o desprezo do órgão de contas aos termos do acordo, tal como aconteceu em relação aos acordos de leniência, como também para que não haja duplicidade ou continuidade de processos de tomada de contas especial (que visam ao ressarcimento ao erário), mesmo após a sua celebração.[3]
Cesar Augusto Alckmin Jacob, no texto citado no introito desta razão, anotou sobre os argumentos da decisão do ministro Moraes que "a intenção do legislador foi a de evitar que discussões intermináveis sobre o montante do dano ao erário prejudiquem a realização do acordo". "Atribuir aos Tribunais de Contas a tarefa de se manifestar sobre o valor do dano, indicando parâmetros, não significa dizer que o valor indicado será obrigatório."
Portanto, a par da interpretação que externei na minha primeira coluna, seria possível conceber, com Jacob, uma linha de raciocínio no sentido de que a participação do Tribunal de Contas, conquanto obrigatória, não teria o condão de produzir um cálculo vinculante ao parquet, até porque o fechamento do acordo ainda estaria na dependência da aprovação da instância superior do Ministério Público ou do juiz ou Tribunal, conforme o caso (artigo 17-B, §1º, II e III da LIA).
Uma terceira forma de compreensão do dispositivo, também capaz de manter a higidez do artigo 17,-B, §3º da LIA, consistiria em aplicar ao caso a técnica da interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto, para excluir do preceito qualquer intepretação no sentido da obrigatoriedade da oitiva do Tribunal de Contas.
Nesse caso, o Ministério Público, com ou sem a adesão da parte acordante, teria a faculdade de solicitar o pronunciamento da Corte de Contas, para fins de obter o valor do quantum debeatur e sua metodologia. Porém, o conteúdo do cálculo do Tribunal de Contas não seria vinculante para o Ministério Público.
Portanto, para enaltecer o debate vislumbram-se quatro alternativas possíveis em face da impugnação do preceptivo legal pela ADI 7236 (relativamente ao artigo 17-B, §3º da LIA):
Aguardemos…
[1] Dispõe o estatuto da entidade que: Art. 1º A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público — Conamp, entidade de classe de âmbito nacional, é uma sociedade civil, integrada pelos membros do Ministério Público da União e dos Estados, ativos e inativos, que tem por objetivo defender as garantias, prerrogativas, direitos e interesses, diretos e indiretos, da Instituição e dos seus integrantes, bem como o fortalecimento dos valores do Estado Democrático de Direito. Art. 2º São finalidades da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp: I – defender os direitos, garantias, autonomia, prerrogativas, interesses e reivindicações dos membros do Ministério Público da União e dos Estados, ativos e inativos; II – defender o fortalecimento do Ministério Público, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; III – defender os princípios e garantias institucionais do Ministério Público, sua independência e autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, bem como os predicamentos, as funções e os meios previstos para o seu exercício; IV – promover a unidade institucional do Ministério Público Brasileiro; V – promover a representação e a defesa judicial e extrajudicial dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos membros do Ministério Público da União e dos Estados, ativos ou inativos, e de seus pensionistas, podendo, para tanto, ajuizar mandado de segurança, individual ou coletivo, mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade e outras medidas, independentemente de autorização assemblear; VI – atuar como substituto processual daqueles por cujos direitos, interesses e garantias cumpre velar; VII – pugnar por remuneração condigna, que assegure a independência dos membros do Ministério Público; VIII – buscar melhores condições de seguridade social, previdenciárias e de assistência social e médico-hospitalar aos membros do Ministério Público e a seus beneficiários; IX – estimular o intercâmbio entre os integrantes de seu quadro institucional, prestando apoio e assistência, na área de sua atuação, àqueles que lhe solicitarem auxílio; X – congregar os membros do Ministério Público Brasileiro, promovendo a cooperação e a solidariedade entre todos, de modo a estreitar e fortalecer a união da classe; XI – colaborar com os Poderes Públicos no desenvolvimento da justiça, da segurança pública e da solidariedade social; XII – colaborar com o Governo, como órgão técnico e consultivo, no estudo e solução de problemas que se relacionem com o Ministério Público e seus membros; XIII – desenvolver ações nas áreas específicas das funções institucionais, dentre outras, as dos direitos humanos e sociais, do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio coletivo, da infância e juventude, as criminais, cíveis e eleitorais; XIV – estimular a produção intelectual e cultural dos membros do Ministério Público, através de convênios de edição de livros, órgãos informativos próprios e formação de grupos de estudos; XV – desenvolver outras atividades compatíveis com sua finalidade, aprovadas pelos seus órgãos.”
[2] Ver, ainda, FERRAZ, Luciano. Acordos de Não Persecução Cível e Ressarcimento ao Erário na Lei de Improbidade Administrativa, In. MOTTA, Fabrício. VIANA, Ismar. Improbidade Administrativa e Tribunais de Contas: as inovações da Lei 14.230/2021, Belo Horizonte: Forum, 2022. p. 179-188.
[3] FERRAZ, Luciano. Acordos de Não Persecução Cível e Ressarcimento ao Erário na Lei de Improbidade Administrativa, In. MOTTA, Fabrício. VIANA, Ismar. Improbidade Administrativa e Tribunais de Contas: as inovações da Lei 14.230/2021, Belo Horizonte: Forum, 2022. p. 179-188.
Luciano Ferraz é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Revista Consultor Jurídico, 26 de janeiro de 2023, 8h00
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