ConJur – Opinião: O último indulto natalino de Bolsonaro – Consultor Jurídico
Por Diogo Abineder Ferreira Nolasco Pereira, João Guilherme Gualberto Torres e Ricardo Gueiros Bernardes Dias
No último dia 23, foi publicado o Decreto nº 11.302/22, que trata do indulto natalino concedido pelo presidente Jair Bolsonaro.
Sabe-se que o indulto, ato que tem como consequência a extinção da punibilidade/pena, como uma espécie de "perdão", é ato privativo do presidente da República, regido pelos critérios de conveniência e de oportunidade, no exercício da competência conferida pelo artigo 84, inciso XII, da Constituição. Assim, inclusive, decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 5874[1].
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Historicamente, o presidente da República, no exercício de seu mandato, em data próxima ao Natal, edita regras para indulto.
Tão logo publicado o Decreto nº 11.302/22 no Diário Oficial, os principais meios de comunicação noticiavam que o presidente Jair Bolsonaro havia concedido perdão de pena para militares das Forças Armadas e agentes do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) —polícias em geral.
Sem ingenuidade, para qualquer olhar sobre quem são os atores principais da pauta ideológica do governo Bolsonaro, tal qual percebido pela imprensa, é de se concluir que o Decreto nº 11.302/22 se resumiria a uma prática casuística e, sobretudo, com transversa faceta abolicionista. Afinal, essa é a crítica escrita nas entrelinhas dos títulos das matérias veiculadas sobre o referido decreto de indulto natalino.
Nesse contexto, percebe-se que todo discurso punitivista é flexibilizado quando se direciona sobre aqueles em que a afinidade exige um senso de imunidade. Não se sabe, porém, se tudo isso é feito intencionalmente ou em razão de mau assessoramento, como já objeto de crítica no Conjur por Streck e Bheron[2]. Prefere-se creditar que, independente das reais intenções ou motivos, as incoerências que os decretos de indulto natalino podem representar, invariavelmente, são consequências do ativo e criativo desempenho legiferante punitivista do legislador brasileiro.
E essa conclusão, talvez, esteja também no último decreto de indulto natalino do presidente sainte Jair Bolsonaro, especialmente no seu artigo 5º.[3]
Especificamente sobre os preferenciais alvos, indultam-se os agentes públicos que compõem o Susp que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados por crime na hipótese de excesso culposo ou por crime culposo, desde que tenham cumprido pelo menos um sexto da pena (ou metade desse tempo, se primário) e por ato cometido, mesmo que fora do serviço, em razão de risco decorrente da sua condição funcional ou em razão do seu dever de agir (artigo 2º).
Quanto aos militares das Forças Armadas, o decreto tem incidência nos casos em que o crime tenha sido cometido durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), resultando em condenação por crime na hipótese de excesso culposo.
O decreto beneficia ainda os agentes públicos que integram/integravam, no momento do fato, os órgãos de segurança pública de que trata o artigo 144 da Constituição — Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; e Polícias Penais federal, estaduais e distrital — e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação do Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática. Há, em rigor, direcionamento explícito às poucas pessoas condenadas ("ainda que provisoriamente") pelo massacre massacre do Carandiru (SP), que completou 30 anos em outubro de 2022, que resultou na morte de 111 internos, e o que pode vir a ser objeto de responsabilização internacional por violação a Direitos Humanos.[4] O ano vai se findando, mas os problemas já nos esperam em 2023. Se haverá ou não a flexibilização da prerrogativa presidencial e o cerceamento ao juízo de conveniência e de oportunidade, é suficiente, por ora, recordar os debates em torno do indulto (graça) do deputado Daniel Silveira, submetido à apreciação da Suprema Corte nas ADPFs 964, 965, 966 e 967, sob relatoria da Minª Rosa Weber.
Mas a incoerência da tentativa abolicionista de ocasião com a pauta governamental fica com o artigo 5º do Decreto nº 11.302/22 que dispõe: "Será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos".
Duas observações devem ser feitas. Primeiro, a previsão limita-se a "crimes", não abrangendo contravenções penais, o que implica, a princípio, um grave vício de proporcionalidade, com tratamento mais benéfico dispensado a condutas, em tese, mais graves. Segundo, não houve condicionamento a qualquer período de cumprimento de pena.
Pela disposição, os crimes de furto simples (pena máxima de 4 anos — CP, artigo 155, caput; e também a figura do furto privilegiado no §2º), e outros de natureza patrimonial (por exemplo, apropriação indébita, estelionato e receptação); falsidade ideológica e algumas modalidades de falsidade documental; uso compartilhado e tráfico privilegiado (Lei nº 11.343/06, artigo 33, §§2º e 3º), os tipos previstos nos artigos 12 a 15, da Lei nº 10.826/03 (embora essa seja uma pauta conhecida do governo) e a grande maioria das condutas proscritas no Código de Trânsito brasileiro estariam abrangidos pelo Decreto, em benefício daqueles condenados. Também os crimes de menor potencial ofensivo, que não encontrem óbice nas vedações do artigo 7º do decreto, estão abarcadas, a exemplo da exploração de jogos de azar ou de prática de jogo do bicho.
O próprio Decreto nº 11.302/22, como de costume, excetua os casos os quais não incidirá (artigo 7º). Não estão abrangidos pelo decreto os crimes considerados hediondos ou a eles equiparados; de tortura; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; praticados mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa ou com violência doméstica e familiar contra a mulher (excetuados os listados no artigo 6º, por força do §3º, do artigo 7º); de integrantes de organizações criminosas; terrorismo; que envolvam violação sexual mediante fraude; assédio sexual; sedução; estupro de vulnerável; corrupção de menores; satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente; favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável; divulgação de cena de estupro, sexo ou pornografia; peculato; concussão; e corrupção (ativa ou passiva); tráfico de drogas, exceto o privilegiado (Lei nº 11.343/06, art. 33, §4º); alguns crimes militares; e infrações relacionadas à pornografia infantil.
Importante reconhecer que, dada a amplitude do artigo 5º do decreto, nada obsta a incidência do indulto sobre crimes culposos cuja pena máxima em abstrato seja inferior a cinco anos, a exemplo do homicídio culposo (CP, artigo 121, §3º) e da lesão corporal culposa (CP, artigo 129, §6º), ainda que na condução de veículo automotor (Lei nº 9.503/97, artigo 302, caput, e 303, caput e §1º), e naqueles casos em que a ameaça não seja grave. A violência somente importa na vedação do indulto em infrações dolosos, pois, em crimes culposos falta ao agente o elemento volitivo, a intencionalidade, que desvaloriza a ação e inibiria a concessão do indulto. A problemática já vem sendo enfrentada há algum tempo quando diante dos requisitos para a celebração do acordo de não persecução penal, em que, igualmente, não há vedação para crimes culposos.[5]
É de se reconhecer que a abrangência do Decreto nº 11.302/22, como aqui denunciado, independente de eventual e louvável afinidade abolicionista, não faz parte da pauta do governo Bolsonaro.
Por isso é que fica a pergunta: é o tiro saindo pela culatra?
[1] STF. ADI 5874. Pleno. Rel. Min. Roberto Barroso. Rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes. j. 09.05.2019. DJe 05.11.2020.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-13/streck-bheron-veja-punitivistas-sao-abolicionistas. Acesso em 23/12/2022.
[3] O Decreto nº 11.302/22, além daquilo que fora noticiado, na esteira dos decretos anteriores, concede o “indulto humanitário”, beneficiando condenados acometidos por doenças relacionadas no art. 1º, ou pessoas com mais de 70 anos, condenadas à pena privativa de liberdade.
[4] Infeliz coincidência temporal, o anunciado futuro Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, indicou, para assumir o cargo de secretário nacional de Políticas Penais no governo do presidente Lula, um Coronel que teve participação, ainda que indireta, no episódio, considerado um dos mais trágicos eventos da história das prisões no Brasil. Outras fontes noticiam que, em razão da repercussão negativa da indicação, o próprio indicado teria desistido da nomeação.
[5] Nesse sentido, cf. BIZZOTTO, Alexandre; SILVA, Denival Francisco da. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: Dialética, 2020. pp. 81-82.
Diogo Abineder Ferreira Nolasco Pereira é advogado, mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e professor de ensino superior.
João Guilherme Gualberto Torres é advogado criminalista, professor e mestre em Direito Processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).
Ricardo Gueiros Bernardes Dias é pós-doutor pela University of Houston (EUA), doutor em Direito pela University of California (Hastings)/UGF, mestre em Direito pela UGF/Uerj (Universidade do Estado do Rio) e professor da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2022, 17h22
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