ConJur – Opinião: Política climática e atribuições dos entes federativos – Consultor Jurídico
Por Marcelo Bedoni, José Irivaldo Alves de Oliveira Silva e Talden Farias
Na COP-27, o presidente eleito, Lula da Silva, fez uma fala enfática e esperançosa, reafirmando que "o Brasil está de volta" e que "o combate à mudança climática terá o mais alto perfil na estrutura do meu governo" [1]. O discurso, para a política climática brasileira, acena para o fim de um período de "negacionismo climático" e para o reinício de um período de "ativismo climático" [2]. Vale lembrar que "entre novembro de 2009 e outubro de 2010, o Brasil atingiu o mais alto nível de compromisso climático de sua história" [3]. Essa fase contou com a aprovação da Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) — Lei nº 12.187/2009 — e posteriores regulamentações. A lei climática, porém, contém uma série de lacunas e desatualizações, que devem ser superadas o mais breve possível. Uma das mais relevantes dessas é a falta de definição clara de competências dos entes federativos, bem como os instrumentos de cooperação.
Um grande desafio para qualquer lei climática é acompanhar os rápidos avanços da ciência do clima e as negociações internacionais. Ao analisar apenas as transformações científicas e políticas que ocorreram na agenda climática de 2009 até o corrente ano, a PNMC precisa ser atualizada com urgência. Nesse ínterim, surgiu o Acordo de Paris, em que o Brasil assumiu novas obrigações internacionais [4]; o Pacto Climático de Glasgow reforçou a necessidade de evitar um aumento da temperatura superior a 1,5 ºC [5]; o net-zero se consolidou como o principal alvo da política climática, ou seja, o norte agora é zerar as emissões líquidas até meados do século [6]; e os avanços na agenda de perdas e danos, que retrata um tempo em que não se admite mais a desconsideração dos efeitos deletérios da crise.
Porém, não só a passagem do tempo, pois a PNMC já nasceu com lacunas. A literatura critica, por exemplo, a falta de deveres jurídicos específicos aos setores público e privado [7]. Uma "grave omissão na legislação" trata-se da falta de dispositivos sobre governança climática [8], por exemplo, a despeito de a lei prever cinco instrumentos [9] institucionais, nada mencionou sobre os papéis que deveriam ser desempenhados pelo Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Economia, apenas para citar dois órgãos públicos estratégicos. Além disso, a legislação nada abordou sobre o papel que se espera dos atores econômicos, gerando uma enorme insegurança jurídica [10]. Isso na prática provoca uma desarticulação dos entes públicos e uma não inserção da relevância do clima na agenda pública, o que poderia ser classificado como invisibilização do clima.
De fato, no sistema jurídico brasileiro ainda não há regras claras e precisas sobre a responsabilidade de cada ente federativo na agenda climática [11]. A PNMC se restringe a abordar o papel dos estados, dos municípios e do Distrito Federal em apenas dois genéricos dispositivos [12], o que não parece adequado para a federação que possui o maior número de entes do planeta [13]. Essa lacuna é especialmente problemática no enfrentamento da mudança do clima, isso porque o sistema climático é afetado por milhões de pequenas decisões (quais eletrodomésticos usar, que carro dirigir, com que frequência dirigir, onde morar, bem como pelas decisões envolvendo energia e investimentos), e também por grandes decisões, envolvendo assuntos de energia e investimentos, de modo que não se pode dizer com propriedade que essa crise é puramente local ou global, ela envolve tanto o local quanto o global [14]. Além disso, uma política climática nacional atualizada precisa necessariamente dialogar com outras políticas como de recursos hídricos, saneamento, resíduos sólidos, meio ambiente, educação ambiental, entre outras.
A atuação de entes subnacionais na agenda climática já é uma realidade no Brasil, uma vez que a maioria dos Estados-membros possuem uma legislação climática e fóruns estaduais de deliberação junto à sociedade [15]. A atuação estadual na pauta do clima também ocorre por meio dos consórcios públicos, como exemplo pode-se mencionar a participação propositiva do Consórcio da Amazônia Legal, formado pelos Estados da região amazônica, na COP-27 [16]. Os municípios também começam a incorporar a preocupação em seu âmbito de regulamentação, seja por meio do Plano Diretor e/ou pela aprovação de planos de ação climática. Cerca de metade das capitais brasileiras possuem planos de ação climática e outras estão elaborando seus planos [17], a exemplo de João Pessoa, capital da Paraíba[18]. Porém, precisa-se avançar na análise acerca da implementação de uma política articulada.
Vale destacar que o protagonismo dos entes subnacionais acontece sob o manto de competências outorgados pela Constituição em outras temáticas. Como a mudança do clima é um tema transversal, basicamente qualquer obrigação jurídica apresenta a possibilidade de incorporar elementos climáticos, como as competências tributárias, administrativas, constitucionais, consumeristas, penais etc [19]. Porém, é evidente que a atuação da União, estados, municípios e Distrito Federal busca amparo diretamente na competência ambiental, seja legislativa ou administrativa.
A competência administrativa em matéria ambiental engloba tanto atividades autorizativas em sentido amplo, quanto de fiscalização [20]. É no artigo 23 do texto constitucional que essa espécie de competência está consagrada, pois é "competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: […] VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII – preservar as florestas, a fauna e a flora" [21]. O uso da expressão "competência comum" criou o mito de que todas as três esferas federativas deveriam tutelar o bem ambiental com o mesmo nível de atuação e intensidade [22]. O parágrafo único deste artigo deixou claro, porém, que posterior Lei Complementar (LC) regulamentaria a competência administrativa de cada ente, o que só se concretizaria mais de duas décadas depois, com a LC nº 140/2011.
Essa lei buscou colocar fim nas infindáveis contendas e discussões acerca da competência administrativa, assim, ela procurou apontar as atribuições de cada ente federativo na matéria ambiental, bem como os instrumentos de cooperação [23]. As ações administrativas da União estão no artigo 7º, dos estados no artigo 8º, dos municípios no artigo 9º, do Distrito Federal no artigo 10, bem como os instrumentos de cooperação encontram-se nos arts. 4º e 5º. Cumpre lembrar que a repartição de competência administrativa é apontada como uma das questões mais conflituosas — senão a mais conflituosa — do Direito Ambiental brasileiro [24]. Nem mesmo a LC nº 140 foi capaz de resolver todos esses problemas [25], contudo, a sua aprovação revelou-se fundamental na medida que prestigiou o modelo cooperativo de federalismo e a proteção do meio ambiente como bem jurídico autônomo, contribuindo consideravelmente para a diminuição de tais conflitos.
Essa concepção deve chegar imediatamente à política climática brasileira, por isso essa norma é utilizada no presente texto como uma analogia. Essa comparação é válida, pois desperta o debate necessário e urgente acerca das competências e deveres da União, estados, municípios e Distrito Federal na governança climática. Nem mesmo se defende necessariamente uma nova lei, tendo em vista que podem ser realizadas alterações na PNMC, criando obrigações materiais, e na LC nº 140, repartindo competências executórias, a fim de superar essas lacunas.
O importante é destacar que a ausência de competências administrativas claras entre os entes federativos inviabiliza completamente a governança climática brasileira. Há, pelo menos, quatro razões justificadoras dessa constatação: 1) as políticas podem gerar uma sobreposição de ações, que podem ser contraditórias, uma anulando a outra; 2) uma omissão institucionalizada, quando, por exemplo, determinada medida regulatória se mostrar politicamente desinteressante; 3) a falta de definição das normas dificulta o controle social e jurisdicional [26]; e 4) confusão entre as políticas de mitigação e de adaptação, haja vista que essa precisará abordar questões mais amplas e um conjunto difuso de problemas do que aquela [27]. A delimitação de competências e obrigações é algo preliminar para qualquer política pública, e na seara climática não seria diferente.
É verdade que alguns avanços começam a despontar no horizonte, a exemplo do Projeto de Lei nº 4.129/21, que está progredindo na Câmara dos Deputados e procura estabelecer diretrizes para a formulação do plano nacional e dos planos estaduais e municipais de adaptação às mudanças climáticas, sendo uma perspectiva mais concreta acerca dos papéis dos entes da federação. Realmente, são inúmeras as questões que devem ser enfrentadas. É o caso da competência executiva climática, pois a LC 140 é muito voltada à fiscalização e ao licenciamento ambiental; do papel das regiões metropolitanas, que concentram grande parte da população nacional, e dos Planos Diretores; da delimitação dos padrões de qualidade climáticos, inclusive dentro do licenciamento e dos termos de referência de estudos ambientais; da necessidade de instituição de uma responsabilidade administrativa e criminal climática, sem deixar de lado o papel dos instrumentos econômicos, que nessa matéria tende a ser mais relevante do que o uso do mero poder de polícia; e da relação entre orçamento e clima, assunto que foi objeto da ADPF 708, assim como do próprio sistema de incentivos fiscais.
Espera-se, então, que o Brasil retorne ao período de "ativismo climático" como ponto de partida para uma agenda agora ainda mais ambiciosa e que as repostas internacionais do país sejam efetivadas a partir de uma integração do governo nacional e dos governos subnacionais. O "negacionismo climático" colocou o país e o mundo mais próximo da beira do abismo, o que passou a exigir uma atuação mais organizada e forte. A legislação nacional vigente não apresenta respostas mais concretas de como os entes federativos devem agir diante da problemática, seja na repartição de competências ou na definição de obrigações materiais. O enfrentamento da crise pelo Brasil requer a implementação do federalismo cooperativo climático, e, para tanto, faz-se urgente a discussão e aprovação de normas jurídicas precisas e firmes.
[1] G1. Veja íntegra do discurso de Lula na COP-27. G1 Meio Ambiente, 16 nov. 2022.
[2] VIOLA, E.; FRANCHINI, M. A. Governança ambiental: da destruição das florestas até os objetivos de descarbonização. Revista USP, São Paulo, n. 134, p. 143-162, 2022.
[3] VIOLA; FRANCHINI, 2022, p. 150.
[4] BRASIL. Decreto n. 9.073, de 5 de junho de 2017. Brasília: Presidência da República, 2017.
[5] UNFCCC. Decision CP. 26: Glasgow Climate Pact. United Nations, 2021.
[6] FANKHAUSER, S. et al. The meaning of net zero and how to get in right. Nature Climate Change, v. 12, p. 15-21, jan. 2022.
[7] NUSDEO, A. M. de O. Mudanças climáticas e os instrumentos jurídicos adotados pela legislação brasileira para o seu combate. In: NUSDEO, A. M. de O.; TRENNEPOHL, T. (Coord.). Temas de direito ambiental econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 196-214.
[8] WEDY, G. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 373.
[9] Art. 7º: "Os instrumentos institucionais para a atuação da Política Nacional de Mudança do Clima incluem: I – o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima; II – a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima; III – o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima; IV – a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais – Rede Clima; e V – a Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia" (BRASIL. Lei n. 12.187, de 29 de dezembro de 2009. Brasília: Presidência da República, 2009).
[10] SABBAG, B. K. Incorporação da dimensão climática no regime jurídico-ambiental pátrio. In: ROSSI, F. F.; DELFINO, L.; MOURÃO, L. E. R.; GUETTA, M. (coord.). Aspectos controvertidos do direito ambiental: tutela material e tutela processual. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 61-86.
[11] WEDY, G.; MOREIRA, R. M. C. Competência federativa e combate às mudanças climáticas. In: FARIAS, T. (Org.). 10 anos da Lei Complementar 140: desafios e perspectivas. Andradina: Meraki, 2022.
[12] Art. 3. "A PNMC […] será considerado o seguinte: […] V – as ações de âmbito nacional para o enfrentamento das alterações climáticas, atuais, presentes e futuras, devem considerar e integrar as ações promovidas no âmbito estadual e municipal por entidades públicas e privadas”. Art. 5º. “São diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima: […] V – o estímulo e o apoio à participação dos governos federal, estadual, distrital e municipal, assim como do setor produtivo, do meio acadêmico e da sociedade civil organizada, no desenvolvimento e na execução de políticas, planos, programas e ações relacionados à mudança do clima" (BRASIL, 2009).
[13] Não obstante outras federações preverem municípios, o Brasil é o único que os reconhece expressamente como entes políticos autônomos e integrantes da federação.
[14] FARBER, D. A. Climate change, federalism and the constitution. Arizona Law Review, v. 50, p. 879-924, 2008.
[15] INSTITUTO CLIMA E SOCIEDADE. Leis climáticas dos Estados brasileiros. Brasília: iCS, 2019.
[16] SOBRAL, A. COP 27: Helder Barbalho entrega carta de compromisso comum de transição climática para Amazônia a Lula. G1 Pará, 16 nov. 2022.
[17] FÓRUM DE SECRETÁRIOS DE MEIO AMBIENTE DAS CAPITAIS BRASILEIRAS. Caderno de transição. Rio de Janeiro: CB 27, 2020.
[18] BEDONI, M.; FARIAS, T. O município, a questão do clima e os planos de ação climática: o caso de João Pessoa. Conjur, 25 dez. 2021.
[19] RUHL, J. B.; SALZMAN, J. Climate change meets the law of the horse. Duke Law Journal, v. 62, n. 5, p. 975-1.027, 2013.
[20] BIM, E. F.; FARIAS, T. Repartição de competência legislativa e administrativa em matéria ambiental. In: FARIAS, T.; THENNEPOHL, T. (Coord.). Direito ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 105-165.
[21] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2022.
[22] BIM; FARIAS, 2021.
[23] FARIAS, T. Competência administrativa ambiental: fiscalização, sanções e licenciamento ambiental na Lei Complementar 140/2011. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[24] FARIAS, 2022.
[25] Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4757. Relatora Mina. Rosa Weber, 2012.
[26] WEDY; MOREIRA, 2022.
[27] GLICKSMAN, R. L.; LEVY, R. E. Climate change adaptation: a collective action perspective on federalism considerations. Environmental Law, v. 40, nº 4, p. 1.159-1.193, 2010.
Marcelo Bedoni é mestrando em Ciências Jurídicas pela UFPB, bacharel em Direito pela UFRR e membro da Laclima e do FFF/PB.
José Irivaldo Alves de Oliveira Silva é professor da UFCG (Campina Grande), UFPB e da UEPB, pós-doutor em Direito pela UFSC e doutor em Direito pela UFPB, com doutorado sanduíche na Universidade de Alicante (ESP).
Talden Farias é doutor e pós-doutor em Direito da Cidade pela Uerj, advogado e professor da UFPB e da UFPE e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Direito Urbanístico.
Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2022, 17h18
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