Copa além da Copa: Uma conturbada história política que, a cada Mundial, tenta se redimir pelo futebol – Yahoo Noticias

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Copa Além da Copa é um projeto que traz ao GLOBO textos que relacionam política, cultura, história, arte e sociedade com o futebol
Apaixonada por futebol, a Argentina tenta hoje seu terceiro título mundial. Os dois primeiros, em 1978 e 1986, ocorreram em contextos políticos turbulentos. Em 2022, a vice-presidente Cristina Kirchner, que recentemente foi vítima de um atentado frustrado, também foi condenada à prisão durante a Copa do Mundo.
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Apoiadores e rivais do kirchnerismo têm opiniões calorosas sobre a sentença, mas isso não parece ter tido impacto na campanha da Argentina no Catar. Ao contrário de 1978 e 1986, quando a política do país era pauta durante o Mundial.
Instabilidade e violência
A instabilidade política é uma marca do século XX na Argentina. Em 1973, Héctor José Cámpora, um peronista, venceu eleições livres. Ele cancelou o banimento de Juan Domingo Perón da política nacional e imediatamente renunciou junto com seu vice, chamando novas eleições.
Ícone da história argentina, Perón, depois de mais de uma década no exílio, foi eleito com facilidade. Já idoso, morreu durante a Copa de 1974, quando foi homenageado, e foi sucedido por sua vice e terceira esposa, Isabelita.
Em 1976, novo golpe de Estado derrubou Isabelita e instalou uma ditadura militar com sede de sangue. Ligada à Operação Condor, campanha estadunidense que visava exterminar toda militância de esquerda da América Latina, ela deixou um número de mortos que chega a 30 mil em algumas estimativas.
A Argentina fora escolhida sede da Copa do Mundo de 1978 em 1966, mas, uma vez no poder, a ditadura militar sabia a força do evento que tinha em mãos.
Tradição da Fifa
Realizar a Copa do Mundo em uma ditadura, como faz no Catar em 2022, não é novidade para a Fifa. Mesmo com denúncias de abusos contra direitos humanos, o Mundial de 1978 ocorreu na Argentina.
Vice-campeão na primeira Copa do Mundo, em 1930, e celeiro de craques históricos do futebol, o país nunca havia levantado o troféu do Mundial. A ditadura militar precisava desse título inédito para tentar transformá-lo em popularidade e sequestrar o sucesso para si.
A Copa do Mundo de 1978 foi marcada por acusações de arbitragens tendenciosas a favor da Argentina e, sobretudo, pela goleada de 6 a 0 sobre o Peru, quando os argentinos jogaram sabendo que precisavam golear o rival sul-americano para avançar. Há denúncias sobre um resultado arranjado, mas nada nunca foi provado.
O título argentino enfim veio com a vitória sobre a Holanda por 3 a 1 na final, disputada no Monumental de Nuñez. A poucos metros do estádio, na ESMA (Escola de Mecânica da Marinha Argentina), funcionava o maior centro de detenção, tortura e assassinatos da ditadura, e os presos podiam ouvir a torcida cantar, gritar e celebrar. Hoje, o espaço funciona como um memorial para as vítimas, e há salas dedicadas à controversa conquista argentina.
Surge uma lenda
Campeã do mundo no profissional, a Argentina repetiu a conquista no Mundial Sub-20 de 1979. O craque da competição foi o jovem Diego Armando Maradona, que despontava como o futuro do futebol do país. A equipe juvenil foi recebida pelo ditador Jorge Videla, e Maradona diria, anos mais tarde, que a primeira coisa que o general lhe disse foi que ele precisava cortar sua cabeleira.
Nascido numa comunidade pobre, a Villa Fiorito, Maradona era filho de “cabecitas negras”, nome pejorativo dado à população miscigenada que migrou do campo para a cidade durante a industrialização argentina nas décadas de 1930 e 1940. O apelido vem de um pássaro que tem a cabeça escura, fazendo referência aos cabelos pretos dessa população, evidenciando origem indígena e não europeia.
Mas o jovem Maradona ainda não se interessava tanto pela efervescente política argentina, então dominada por militares, que encontrariam na reivindicação das ilhas Malvinas (Falklands para os britânicos) a desculpa perfeita para tentar se manter no poder. A ditadura havia fracassado na economia, com uma inflação anual que chegou aos 90% em 1980, fazendo com que o fôlego político conquistado com o Mundial de 1978 se desfizesse rapidamente.
Como a repressão continuava, os protestos aumentavam. Videla foi substituído por Roberto Viola e, em seguida, por Leopoldo Galtieri. Se o futebol não dava mais jeito, só o tema das Malvinas poderia unificar o país. O governo argentino ordenou a invasão das ilhas, administradas desde o século XIX pelo Reino Unido.
Malvinas e o futebol
Localizado a 480 km da costa argentina no Atlântico Sul, o arquipélago das Malvinas trocou de mãos diversas vezes antes de ser ocupado pelos britânicos em definitivo a partir de 1833. Isso nunca foi aceito pela opinião pública argentina, que considera até hoje que essas terras lhe pertencem.
Para a ditadura, recuperá-las repetiria o efeito de orgulho nacional da conquista de 1978. Foi um grande erro: o governo da primeira-ministra Margaret Thatcher, que também estava em queda de popularidade, viu ali sua própria chance de se recuperar. Com uma força militar muito superior, os britânicos venceram a guerra em 74 dias, com um resultado de mais de 600 argentinos mortos.
A guerra acelerou o fim da ditadura e terminou às vésperas da Copa de 1982, em que a Argentina não conseguiu defender o título. A transição para a democracia ocorreu no ano seguinte. Mas a redenção mesmo veio quatro anos depois, nas quartas de final da Copa de 1986: contra a Inglaterra, o “cabecita negra” Maradona fez uma das maiores exibições da história do torneio, marcou duas vezes e lavou a alma argentina.
O segundo gol é um dos mais bonitos da história das Copas, em que ele sai driblando ingleses desde o meio-campo. Mas o primeiro, feito com a mão, é quase uma licença poética para vingar o que os argentinos consideram uma injustiça sobre a questão das Malvinas.
A guerra, embora um capricho da ditadura, ainda habita o imaginário coletivo, já que a causa é considerada justa. Não à toa, o canto que embala a torcida argentina na Copa diz que “nunca se esquecerão dos garotos das Malvinas”.
No país, a seleção ainda hoje se mistura à política. Não à toa, em meio à atual crise econômica, a ministra do Trabalho, Kelly Olmos, foi questionada em novembro se preferia a conquista da Copa ou a queda da inflação, projetada para chegar a 100% em 2022. Ela não hesitou: primeiro, a Copa.
Confira as principais notícias do espaço da semana 10 a 16 de dezembro de 2022 e fique por dentro de tudo o que mais importa no universo da astronomia!
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