Copa do mundo tira da política a camisa da seleção, em Niterói – A Seguir: Niterói

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Desde 2016, especialmente após o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (PT), a camisa da seleção brasileira de futebol, única pentacampeã do mundo, tem sido apropriada ou identificada por manifestantes de direita. Além disso, passou a simbolizar o patriotismo conservador dos bolsonaristas.
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Até hoje, apesar da derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas eleições, apoiadores mais fanáticos – e inconformados com o resultado do pleito – acampam em quartéis, trajados de verde e amarelo, para cobrar intervenção federal, o que é inconstitucional.
Por outro lado, brasileiros avessos ao bolsonarismo tentam resgatar o significado do uniforme, num processo de despolitização da “amarelinha”. Ainda mais agora, que o Brasil se garantiu nas oitavas de final da Copa do Mundo, apesar da derrota inédita desta sexta-feira (2) contra os Camarões, e segue mais vivo do que nunca na briga pelo hexacampeonato.
A própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF), além da Nike, patrocinadora oficial da Seleção, se empenharam nesta campanha. A empresa de material esportivo, para quem não lembra, chegou a proibir menções políticas – e até mesmo religiosas – em suas vendas online. Era – e continua sendo – proibido personalizar as camisas com nomes de Lula ou Bolsonaro, além de Jesus, Exú e Deus, por exemplo.
– Nossa mensagem é de incentivo. O futebol não vive sem o torcedor. E conectar as pessoas de todas as idades, lugares, cores, raças, ideologias e religiões ao futebol é o nosso propósito – disse Ednaldo Rodrigues, presidente da entidade, eleito em março deste ano.
Este processo de despolitização ocorre em todas as regiões do Brasil. Em Niterói, cidade que deu mais votos a Lula em ambos os turnos da eleição presidencial, lojistas e camelôs têm faturado com a despolitização. Até porque, o modelo mais recente de uma camisa original, desenhada para a Copa do Mundo do Catar, não sai por menos de R$ 349 nas lojas da Nike. E não é todo mundo que tem esse dinheiro sobrando.
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Na rua Gavião Peixoto, em Icaraí, ao menos cinco barraquinhas disputam território com camisas, shorts e outros tipos de artefatos da seleção brasileira. O vendedor ambulante Kevin Rios, que trabalha em um ponto localizado em frente à loja Giro, afirmou que as vendas aumentaram após o período eleitoral. As camisetas, réplicas de primeira ou segunda linha, saem por até R$ 100.
– A barraca já tinha um movimento bom, até por conta de toda a polarização política que vivemos neste ano. Mas nada perto das últimas semanas. Eu trabalho nesta barraca oito horas por dia, seis dias por semana, e nunca vi sair tantos produtos como atualmente. Parece que as pessoas não têm mais aquele receio de ter sua imagem associada a um partido político – salientou.
A cada cinco minutos, ao menos enquanto o A SEGUIR: NITERÓI esteve no local, um morador de Niterói visitava a barraca de Kevin. O estudante Iago Mattos, de 23 anos, comprou uma camisa amarela, como essa que os jogadores do Brasil estão usando na Copa do Mundo. Eleitor de Lula, ele não se preocupa com a possibilidade de ter a imagem ligado ao bolsonarismo.
– Eu não tenho nenhuma camisa do Brasil, e resolvi comprar porque estou otimista que vamos ganhar o hexa. Enquanto está acontecendo a Copa, acredito que é o momento oportuno para desvincular a camisa da Seleção do bolsonarismo. Todos nós somos brasileiros e as cores verde e amarela não pertencem a um partido. É a hora de usar a Copa para resgatar a união do Brasil. Resgatar a essência do que é ser brasileiro – reforçou.
Não é apenas no comércio que as cores da bandeira nacional são vistas com mais frequência. Ruas e bares espalhados pela cidade tornaram-se mais “amarelados” durante o mundial, sobretudo nos dias em que o Brasil entra em campo. Até mesmo na inauguração da Árvore de Natal de São Francisco, na última quinta-feira (1º), torcedores fizeram questão de enaltecer a amarelinha.
– Eu nunca concordei com a politização da nossa camisa. Pelo contrário. Nunca deixei de usar, mesmo não gostando do presidente que está aí. Diversas vezes fui confundida como apoiadora do Bolsonaro e me recusei a desmentir, porque uma coisa não tem nada a ver com a outra. Eu sou brasileira e tenho direito de usar essa camisa sem dar explicação para ninguém – reiterou Sandra Lopes.
Ao lado dela, estava seu marido, Rogério Lopes, também trajado com a camisa da seleção brasileira. Rogério pensa parecido e destaca o fato de o torneio acontecer no fim do ano, depois das eleições.
– A gente precisava sair daquele momento aflitivo que o Brasil estava passando. A Copa ser direcionada para o final do ano parece até que não foi obra do acaso. Imagina se fosse em junho, com todo aquele clima no Brasil. Seria um inferno. A mudança de datas foi essencial para o Brasil, para que as pessoas se unam em torno de um ideal, mesmo que seja no futebol – concluiu.
Ao longo dos três anos e 11 meses de governo Bolsonaro, muitas camisas da seleção brasileira acabaram engavetadas, já que passaram a simbolizar somente a metade bolsonarista do país. Ao mesmo tempo, uma parcela da população criou aversão à “amarelinha”. Especialistas em política e estudiosos do esporte, no entanto, veem com otimismo o processo de despolitização.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, José Carlos Marques, livre-docente em comunicação e esporte pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), afirmou que é preciso voltar às origens da amarelinha.
– Temos que devolver a camisa amarela ao lugar dela e não permitir que seja um símbolo apropriado pela direita, até porque o amarelo não é um símbolo da direita em nenhum lugar do mundo. Isso depende muito de a esquerda voltar a usar o amarelo com orgulho para impedir que a camisa fique refém da direita – ressaltou.
Já para o coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens), da Universidade de São Paulo (USP), “o bolsonarismo capturou, sequestrou esse símbolo oficioso do Brasil, que é a camiseta amarela”.
O também professor de história lembrou, contudo, que o uso partidário da camisa é ainda anterior ao bolsonarismo, remetendo às manifestações de junho de 2013, no governo de Dilma Rousseff.
– Ela se tornou um símbolo da derrubada da Dilma e depois um símbolo da campanha do Bolsonaro, em 2018, e do bolsonarismo agora, até com esses grupos golpistas que conclamam a ruptura institucional e o não reconhecimento do resultado das eleições – completou.
Uma Copa do Mundo que possa pacificar e reunificar o Brasil, resgatando paralelamente o significado da camisa amarela, passa também pela atitude dos expoentes políticos, especificamente os de esquerda, avaliam os estudiosos. O cientista político Carlos Pereira, também em declaração à Folha, disse que uma possível trégua vai depender da atitude do presidente eleito.
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– Vai depender fundamentalmente da atitude do Lula e do PT durante a Copa. Se ele vestir a camisa brasileira, assumir uma postura de defesa do time independentemente das questões políticas ou eleitorais, é bem possível que as potenciais animosidades se diluam e o país se unifique em torno do time brasileiro – ilustrou.
A resposta veio do próprio petista, que vem adotando o verde e amarelo durante a competição. Não apenas ele, como sua esposa, Janja, e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB).
– A Copa do Mundo começa daqui a pouco e a gente não tem que ter vergonha de vestir a camiseta verde e amarela. A camiseta não é de partido político, é do povo brasileiro. Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13 – enfatizou Lula, em postagem no dia 20 de novembro.
Em 1978, a oposição crescia no Brasil, havendo pressão pela Anistia e pelo fim da ditadura militar. Foi então que as Forças Armadas tentaram “usurpar” um símbolo nacional. Sem apoio na classe média e incapaz de controlar a crise econômica ou de desenvolver o país, eis que os militares tentaram utilizar a seleção brasileira para recuperar prestígio.
Um brigadeiro dirigia o Conselho Nacional de Desportos, um almirante era o dirigente da Confederação Brasileira de Desportos, o técnico da seleção, Claudio Coutinho, era um capitão, e toda a comissão técnica era formada por militares. Na Copa do Mundo da Argentina, por exemplo, todos os jogadores eram submetidos a normas de controle e vigilância.
O atacante Reinaldo, camisa 9 da Seleção, defendia a anistia e eleições diretas publicamente. Na estreia do Brasil contra a Suécia, ele marcou o gol do empate e levantou o braço com punho em riste, em gesto inspirado no movimento dos Panteras Negras e que desafiava o regime. Dois jogos depois, Reinaldo foi barrado do time titular.
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Mesmo chegando ao terceiro lugar do torneio, vencido pelos anfitriões, a imagem que ficou da Copa e da seleção foi da farra que os dirigentes esportivos e os militares fizeram, ostentando com dinheiro público. Mais do que isso, a torcida concluiu que os militares, com a sua tecnocracia, destruíram o futebol arte que caracterizava a seleção.
Na copa de 1982, na Espanha, não havia mais militares na comissão técnica e nem na gestão da recém-fundada CBF. O técnico Telê Santana ouvia sugestões dos atletas, o samba era permitido na concentração e até um pouco de cerveja era liberada após os jogos. Os jogadores casados não precisavam dormir na concentração e era permitido ir em shows durante a Copa.
O time recuperou o futebol arte e, mesmo sendo derrotado pela Itália, conseguiu recuperar a identificação da sua torcida. Dois anos depois, Sócrates, que foi capitão desta seleção, estava nos palanques das Diretas Já, assim como outros jogadores. Os manifestantes, aliás, usavam o verde-amarelo que a ditadura havia se apropriado por duas décadas.

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