Corrupção, prevenção e desigualdade (4) – Diário do Poder

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Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.
A corrupção eleitoral ocupa lugar de destaque entre os vários tipos de malfeitos observados nas esferas públicas e privadas. Está fora de dúvida que o fisiologismo eleitoral projeta suas consequências de formas estruturais e sistêmicas no exercício do poder político em todos os níveis de funcionamento da Federação. Afinal, alguém já disse com propriedade: “quem compra o voto do eleitor, vende o voto como parlamentar”.
Mas como a corrupção e as malversações operam por ocasião das eleições? A variedade e a criatividade dos esquemas indevidos atingem contextos inimagináveis. Vamos explorar, como meras exemplificações, algumas possibilidades a partir de registros literários e fortes referências coloquiais no universo da prática política.

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Uma campanha eleitoral baseada no “voto fisiológico” segue um roteiro caracterizado por algumas ações ou procedimentos bem conhecidos no mundo da política mais repugnante (e ignorados pela sociedade de uma forma geral). Destacamos dois expedientes muito eficientes para gerar votos (em quantidade) para qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida, munida da soma (grande) de dinheiro necessária para movimentar as engrenagens pertinentes.
A contratação interesseira de cabos eleitorais rende algumas dezenas de milhares de votos quando operacionalizada pelos profissionais certos do submundo mais abjeto da política. Imagine centenas de pessoas remuneradas  durante os quase dois meses de campanha. Elas vão agitar bandeiras, fazer número em eventos e distribuir panfletos? Também. Mas essa é a parte nitidamente secundária da “coisa”. O aspecto mais relevante é a promessa de alguma vantagem, normalmente emprego, se o candidato for eleito. Mas esse emprego reclama que o cabo eleitoral apresente uma lista com pelo menos 20 (vinte) ou 30 (trinta) nomes de eleitores comprometidos em votar no candidato apoiado pelo cabo eleitoral. Essa lista deve conter necessariamente número do título eleitoral, zona e seção de votação (para a devida verificação se os votos, como quantitativo total, aparecem no boletim de urna).
O outro expediente amplamente utilizado no campo do “voto fisiológico” é a compra de lotes de votos controlados por certas lideranças comunitárias, religiosas e afins. O termo utilizado foi “compra”. Embora criminoso, esse comportamento é realizado sem o menor pudor e em grande escala, notadamente, mas não só, nos bairros ou regiões que abrigam as parcelas mais vulneráveis da população. O pastor da Igreja do Evangelho Multidimensional (referência hipotética) mantém influência sobre um conjunto de 500 eleitores em Guaporé do Leste (outra referência inventada). Esse lote de votos pode ser adquirido por 100, 200 ou 300 mil reais pelo candidato que dispuser do numerário. Programa político? Propostas? Compromissos de atuação parlamentar? Métodos de exercício do cargo? Tudo isso é irrelevante. Sequer é tratado. O que interessa e é devidamente acertado: a) o número de votos no lote; b) o valor do lote; c) a forma de pagamento e d) a lista dos eleitores (sempre com número do título, zona eleitoral e seção, para conferência da “fidelidade” dos votos comprados).

Os três últimos parágrafos integram o meu livro “Como escolher seu deputado. Pequeno manual para orientar o eleitor no dia 2 de outubro de 2022”.
Observe, ainda, o relato da jornalista Míriam Moraes, quando foi candidata, presente no livro “10 coisas que descobri sobre corrupção e política quando fui candidata: um guia pra candidatos e interessados em entender como funcionam as campanhas eleitorais e os bastidores da corrupção”: “1. Ela [uma diretora de escola pública] organizava a reunião com os formandos [do ensino médio]. 2. O candidato anotava o número do CPF, título de eleitor e zona eleitoral de cada aluno. 3. Após a eleição, o candidato fazia a conferência nas zonas eleitorais para checar se teve mesmo o número de votos que constavam nos locais em que os alunos votavam. É possível conferir pelo boletim do resultado eleitoral os votos em cada sessão. 4. Se o número mínimo de votos conferisse com os dos alunos, a festa estava garantida. Fiquei horrorizada ao ver a naturalidade com a qual a diretora me explicou o arranjo”.
Ocorrências eleitorais das mais inusitadas estão representadas nos candidatos servidores públicos, que aparecem, ao final dos pleitos eleitorais, sem votos, com um ou dois votos. Não são candidatos ou postulantes de verdade. Essas pessoas registram candidaturas com o objetivo de aproveitar licenças remuneradas nos meses de campanha. Alguns buscam ficar três meses sem trabalhar (férias triplicadas). Outros tantos fazem campanhas para candidatos que estão verdadeiramente na disputa. E existem aqueles que além da ausência ao trabalho buscam negociar recursos para uma falsa campanha. O objetivo, nesses últimos casos, é embolsar a maior parte dos valores recebidos mediante despesas fictícias e outros expedientes escusos.

Boa parte da eficiência do processo de combate à corrupção e outras malversações depende do aumento significativo da conscientização e educação política dos eleitores. No livro referido (Como escolher seu deputado) afirmei: “Caro eleitor, considerando tudo que foi exposto, preste atenção, por favor, em relação aos candidatos: a) na trajetória pessoal, profissional e política; b) na forma de fazer política e, especialmente a campanha eleitoral; c) nas propostas e compromissos apresentados e d) sobretudo, nos interesses socioeconômicos defendidos ou representados (em que ‘lado’ está o postulante)”. Essas cautelas, em níveis adequados, produzirão eleitos avessos às negociatas e pautados pelo chamado “voto de opinião” (ou consciente).

Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.

Poder, política e bastidores, sem perder o bom humor. Desde 1998.

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