Corrupto ou revolucionário – VEJA
Os 100 anos do tratado de criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 30 de dezembro de 1922, só foram lembrados pelos muito nostálgicos ou por quem traça paralelos entre a Rússia atual de Vladimir Putin e o império vermelho. Apesar do banho de sangue que o precedeu, o nascimento da URSS era visto na época como o caminho para a realização de uma utopia mesmo por quem não confiava no projeto bolchevista. O novo mundo não poderia ser pior do que o velho que substituía, imaginavam. Numa entrevista bizarra, da qual poucos hoje se lembram, a H.G. Wells, Lenin ouviu o escritor de ficção científica insistir que “a própria alma do povo russo tinha de ser reformatada para aceitar o novo mundo”.
“Volte aqui e veja o que teremos feito na Rússia em dez anos”, respondeu Lenin. Ele morreu muito antes disso, deixando ao sucessor todos os fundamentos da máquina totalitária sem precedentes em que a União Soviética se transformaria. O horror teria sido menor se os bolchevistas, em vez de uma utopia maximalista que mudaria o mundo, a história e o homem, quisessem apenas carona para uma nova forma de governo, sem o arcaísmo da Rússia czarista? Ou se aspirassem a ter apartamentos melhores, escolas no exterior para os filhos e férias na Côte d’Azur, como tantos russos mais bem posicionados da era Putin? Se fossem simplesmente corruptos, dispostos a muita coisa para melhorar de vida, em vez de revolucionários, dedicados a fazer tudo para torturar a realidade até que se moldasse ao que queriam?
“Almas que circulam pelos corredores do poder costumam dizer que ‘o que nos salva é a corrupção’ ”
Almas mais escoladas que circulam pelos corredores atapetados do poder costumam dizer que “o que nos salva é a corrupção”. Ou, quando não querem parecer cínicas demais, o pragmatismo, a governabilidade, o “diálogo”. Esse debate que sempre volta foi remodulado em 1990 por dois gênios da literatura mundial, Mario Vargas Llosa e Octavio Paz. Numa palestra, o peruano definiu o sistema mexicano, com o domínio do Partido Revolucionário Institucional, como “a ditadura perfeita”, pois preservava aparências democráticas e se reproduzia invariavelmente (o que não disse, mas todo mundo sabia, foi que cada presidente tinha sua enorme cota de subornos desde que acatasse o princípio do mandato único por seis anos). Na plateia, o mexicano Octavio Paz contestou. O PRI, disse, havia na verdade instituído a hegemonia de um só partido, não uma ditadura convencional. E acrescentou: “Foi criado pelo governo como instrumento contra césares revolucionários, que podem, por exemplo, se chamar Fidel Castro”.
No clássico Spartacus, o filme de Stanley Kubrick com roteiro do lista negra Dalton Trumbo, o senador romano interpretado por Charles Laughton faz uma espécie de elogio da corrupção quando um colega incensa o candidato a tirano Crasso como o único homem de Roma a escapar das práticas corrompidas da República. “Eu toleraria um pouco de corrupção, mas não a ditadura de Crasso e o fim da República”, diz.
Melhor tolerar “um pouco” de corrupção do que enfrentar césares revolucionários deveria ser um dilema que nenhum país precisa enfrentar. Mas ele vive flutuando à nossa volta.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823
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